DA MISÉRIA NO MEIO ESTUDANTIL
CONSIDERADA NOS SEUS ASPECTOS ECONÓMICO, POLÍTICO, SEXUAL E ESPECIALMENTE INTELECTUAL E DE ALGUNS MEIOS PARA A PREVENIR
I. TORNAR A VERGONHA AINDA MAIS VERGONHOSA CONFIANDO-A À PUBLICIDADE
Podemos afirmar, sem grande risco de erro, que o estudante em França é – depois do polícia e do padre -, o ser mais universalmente desprezado. Se as razões de um tal desprezo são com frequência falsas razões que resultam da ideologia dominante, as razões por que, do ponto de vista da critica revolucionária, ele, estudante, é efectivamente desprezível e desprezado, são, quanto a elas, recalcadas e dissimuladas. Os mantenedores da falsa contestação sabem porém reconhecê-las, tais razões, e nelas se reconhecer. Por isso transformam, invertendo-o, esse desprezo verdadeiro numa admiração condescendente. É deste modo que a impotente intelligentsia de esquerda (dos Temps Modernes ao Express) se surpreende perante a pretensa "ascensão dos estudantes", e que as organizações burocráticas efectivamente em declínio (do partido dito comunista à UNEF (a) ) entre si disputam, com cobiça, o apoio "moral e material" dos estudantes. Mostraremos mais à frente as razões de um tal interesse pelos estudantes e como aquelas organizações positivamente participam da realidade dominante do capitalismo superdesenvolvido, e utilizaremos este folheto para as denunciar uma a uma; pois que a desalienação outro caminho não segue senão o da alienação.
Todas as análises levadas a cabo sobre o meio estudantil negligenciaram, até hoje, o essencial. Nunca, com efeito, tais análises ultrapassam o ponto de vista das especializações universitárias (psicologia, sociologia, economia), mantendo-se, por conseguinte, fundamentalmente erróneas. Todas elas cometem aquilo a que já Fourier chamava uma leviandade metódica, "pois que se refere regularmente às questões primordiais" ignorando o ponto de vista total da sociedade moderna. O feiticismo dos factos dissimula a categoria essencial, e os detalhes fazem esquecer a totalidade. Diz-se tudo a propósito desta sociedade, excepto aquilo que ela efectivamente é: mercantil e espectacular. Os sociólogos Bourderon e Passedieu, no seu inquérito intitulado Les Héritiers: les étudiants et la culture, ficam desarmados perante as poucas verdades parciais que ainda assim conseguiram provar. E, apesar de toda a sua boa vontade, voltam a cair na moral dos professores, na inevitável ética kantiana duma democratização real através duma racionalização real do sistema de ensino, quer dizer, do ensino do sistema. E isto ao mesmo tempo que os seus discípulos, os Kravetz (1), julgam ser aos milhares a avivar o espirito. compensando o seu azedume pequeno-burocrático com o amontoar duma fraseologia revolucionária obsoleta.
A espectacu1arização (2) da reificação no capitalismo moderno impõe a cada indivíduo um papel na passividade generalizada. O estudante não escalpa a uma tal lei. Trata-se, no seu caso, de desempenhar um papel provisório, que o prepara para o definitivo papel que virá a assumir, na sua qualidade de elemento positivo e conservador, no funcionamento do sistema mercantil. Este seu papel não é outra coisa senão uma iniciação.
Iniciação que retoma, magicamente, todas as características da iniciação mítica, mantendo-se inteiramente separada da realidade histórica, individual e social. O estudante é um ser partilhado entre um estatuto presente e um estatuto futuro claramente distintos, e cuja fronteira vai ser mecanicamente transposta. A sua consciência esquizofrénica permite-lhe isolar-se numa "sociedade de iniciação", desconhecendo o seu futuro e encantando-se com a unidade mística que lhe oferece um presente ao abrigo da história. A razão de ser do derruimento da verdade oficial -quer dizer, económica – é bastante simples de desmascarar: a realidade estudantil só dificilmente se encara de frente. Numa "sociedade de abundância", o estatuto actual do estudante é a extrema pobreza. Originários, em mais de 80 % das camadas que usufruem de rendimentos superiores aos dos operários, 90 % dentre eles dispõem de um rendimento inferior ao do mais modesto assalariado. A miséria do estudante fica aquém da miséria da sociedade do espectáculo, da nova miséria do novo proletariado. Numa época em que uma parte crescente da juventude se liberta cada vez mais dos preconceitos morais e da autoridade familiar para participar, e bem cedo, das relações de exploração declarada, o estudante mantém-se ainda, a todos os níveis, numa "minoria prolongada", irresponsável e dócil. Se a sua tardia crise juvenil o opõe um tanto à família, ele aceita facilmente ser tratado como criança nas diversas instituições que regem a sua vida quotidiana (3).
A colonização dos diversos sectores da prática social limita-se a deparar com a sua mais gritante expressão no mundo estudantil. A transferência, para os estudantes, de toda a má consciência social, dissimula, na realidade, a miséria e a servidão de todos.
São, porém, de ordem bem diversa as razões em que se alicerça o nosso desprezo pelo estudante. Tais razões não dizem apenas respeito à sua miséria real; referem-se, também, à sua complacência perante todas as misérias; à sua doentia propensão para consumir, em sossego, alienação, com a esperança, perante a falta de interesse geral, de interessar a sua privação particular. As exigências do capitalismo moderno fazem com que os estudantes, na sua maioria, venham a ser quadros profissionais secundários (isto é, algo equivalente àquilo que era, no século XIX, a função do operário qualificado (4) ) .Perante o carácter miserável, que facilmente se pressente, deste futuro mais ou menos próximo que o "indemnizará" da vergonhosa miséria do presente, o estudante prefere voltar-se para o seu presente e decorá-lo com ilusórios prestígios. A compensação, em si mesma, é por demais lamentável para que nela nos detenhamos; e tão-pouco com ela poderá cantar vitória no futuro. É a razão por que se refugia num presente irrealmente vivido.
Escravo estóico, o estudante julga-se tanto mais livre quanto o tolhem todas as grilhetas da autoridade. Tal como a sua nova família, a Universidade, ele supõe-se o mais "autónomo" dos seres sociais, quando, pelo contrário, depende directa e conjuntamente dos dois mais poderosos sistemas de autoridade social: a família e o Estado. O estudante é deles o filho bem comportado e reconhecido. Seguindo a mesma lógica do filho submisso, participa de todos os valores e mistificações do sistema, e em si os concentra. Aquilo que eram ilusões impostas aos assalariados torna-se ideologia interiorizada e veiculada pela massa dos futuros quadros profissionais secundários.
Contrariamente à miséria social antiga, que produziu os mais grandiosos sistemas de compensação da história (as religiões), a miséria marginal estudantil, quanto a ela, só encontrou consolação nas mais obsoletas imagens da sociedade dominante; na repetição burlesca de todos os seus produtos alienados.
O estudante francês, na sua qualidade de ser ideológico, chega tarde demais a tudo. Todos os valores e ilusões que constituem o orgulho do seu mundo fechado estão já condenados como ilusões insustentáveis, desde há muito ridicularizadas pela história.
Recolhendo um pouco dos sobejos de prestígio da Universidade, o estudante ainda se sente satisfeito por ser estudante. Tarde demais! O ensino mecânico e especializado que recebe está tão profundamente degradado (em relação ao antigo nível da cultura geral burguesa (5)) quanto o seu próprio nível intelectual na altura em que a tal ensino acede, e isto pelo simples facto de a realidade que domina o conjunto destas coisas – o sistema económico -reclamar uma fabricação maciça de estudantes incultos e incapazes de pensar. Que a Universidade se tenha tornado uma organização – institucional – da ignorância, que a própria "alta cultura" se dissolva ao ritmo da produção em série dos professores, que todos estes professores sejam uns cretinos, de tal modo que a maior parte dentre eles provocaria a algazarra de qualquer público de liceu -, tudo isso o ignora o estudante; e, respeitosamente, continua a escutar os seus mestres, com a vontade consciente de perder todo e qualquer espírito crítico, a fim de melhor comungar na ilusão mística de se ter tornado um "estudante", isto é, alguém que seriamente se ocupa na aprendizagem de um saber sério, na expectativa de assim lhe serem confiadas as últimas verdades. Trata-se, aqui, de uma menopausa do espírito. Tudo quanto se passa hoje nos anfiteatros das escolas e das faculdades será condenado na futura sociedade revolucionária como ruído, socialmente nocivo. O estudante, desde já, dá vontade de rir.
O estudante não se dá conta sequer de que a história altera também o seu irrisório mundo "fechado". A famosa "Crise da Universidade", detalhe duma crise mais geral do capitalismo moderno, continua a ser objecto de um diálogo de surdos entre diferentes especialistas. Mas apenas traduz, muito simplesmente, as dificuldades de um ajustamento tardio deste sector especial da produção a uma transformação de conjunto do aparelho produtivo. Os -resíduos da velha ideologia da universidade liberal burguesa banalizam-se na altura em que a sua base social se dissolve. A Universidade pôde julgar-se uma força autónoma na época do capitalismo de livre-câmbio e do seu Estado liberal, que lhe concedia uma certa liberdade marginal. Na realidade, porém, ela dependia estreitamente das necessidades deste tipo de sociedade: fornecer à minoria privilegiada, que seguia estudos, a cultura geral adequada, antes de esta se integrar nas fileiras da classe dirigente, da qual, a bem dizer, mal tinha saído. Daí o ridículo desses nostálgicos professores (6) exasperados por terem perdido a sua antiga função de cães de guarda dos futuros dirigentes em proveito dessoutra, bem menos nobre, de cães de pastor que conduzem, segundo as necessidades planificadas do sistema económico, as fornadas de "colarinhos brancos" para as suas fábricas e escritórios respectivos. São eles, esses ridículos professores, que opõem os seus arcaísmos à tecnocratização da Universidade e imperturbavelmente continuam a debitar os restos duma cultura dita geral a futuros especialistas que não saberão o que fazer dela.
Mais sérios, e por conseguinte mais perigosos, são os modernistas da esquerda e os da UNEF conduzidos pelos ultras da FGEL (b) , que reivindicam uma "reforma de estrutura da Universidade", uma "reinserção da Universidade na vida social e económica", quer dizer, a sua adaptação às necessidades do capitalismo moderno. De distribuidoras da "cultura geral" para uso das classes dirigentes, as diversas faculdades e escolas, ainda adornadas com prestígios anacrónicos, são transformadas em fábricas de criação precoce de quadros secundários e de quadros médios. Longe de contestar este processo histórico que directamente subordina um dos últimos sectores relativamente autónomos da vida social às exigências do sistema mercantil, os nossos progressistas protestam contra os atrasos e fraquezas de que a sua realização padece. São eles os defensores da futura universidade ciberneticizada que, aqui e ali, se anuncia já (7). O sistema mercantil e os seus servidores modernos, eis o inimigo.
É porém normal que todo e qualquer debate passe por sobre o estudante, no céu dos seus mestres, e inteiramente lhe escape: o conjunto da sua vida -e, a fortiori, da vida – escapa ao seu entendimento.
Por virtude da sua situação económica de extrema pobreza, o estudante é condenado a um certo modo de sobrevivência bem pouco invejável. Mas, sempre satisfeito por ser aquilo que é, eleva a sua miséria trivial à categoria de um "estilo de vida": o miserabilismo e a boémia. Ora a "boémia", já longe de constituir uma solução original, nunca é autenticamente vivida a não ser na sequência duma rotura completa e irreversível com o meio universitário. Os partidários da boémia no seio dos estudantes (e todos se gabam de o ser um pouco) limitam-se pois a agarrar-se a uma versão artificial e degradada do que não passa, e no melhor dos casos, duma medíocre solução individual. Até o desprezo das velhinhas provincianas, por isso, eles merecem. Estes "originais" continuam, trinta anos depois do que fez esse excelente educador da juventude que foi Wilhelm Reich (8), a ter os comportamentos erótico-amorosos mais tradicionais, reproduzindo as relações genéricas da sociedade de classes nas suas relações intersexuais. A aptidão do estudante para se transformar em militante de toda e qualquer espécie é, aliás, da sua impotência, elucidação bastante. Na margem de liberdade individual permitida pelo espectáculo totalitário, e apesar do seu emprego do tempo mais ou menos descuidado, o estudante continua a ignorar a aventura, a ela preferindo um espaço-tempo quotidiano feito de estreiteza, ordenado em sua intenção pelas barreiras desse mesmo espectáculo.
Sem a isso ser obrigado, ele próprio trata de separar trabalho e ócio, ao mesmo tempo que proclama um desprezo hipócrita pelos "marrões" e "máquinas proavaliações". Aprova todas as separações, e vai depois gemer para círculos diversos – religiosos, desportivos, políticos ou sindicais – sobre a não-comunicação. É tão burro e tão infeliz que chega espontaneamente e em massa a confiar-se ao controlo parapolicial dos psiquiatras e psicólogos, controlo este para seu uso organizado pela vanguarda da opressão moderna e, por conseguinte, aplaudido pelos seus "representantes", que naturalmente nestes Serviços de Apoio Psicológico Universitário (SAPU) vêem uma conquista indispensável e merecida (9).
Mas a miséria real da vida quotidiana estudantil encontra a sua compensação imediata e fantástica naquilo que é o seu ópio principal: a mercadoria cultural. No espectáculo cultural, o estudante encontra naturalmente o seu lugar de discípulo respeitador. Próximo do lugar de produção sem nunca a ele aceder -o Santuário mantém-se-lhe inacessível-, o estudante descobre a "cultura moderna" na sua qualidade de espectador admirativo. Numa época em que a arte morreu, ele continua a ser o principal fiel dos teatros e dos cine-clubes, e o mais ávido consumidor do seu congelado cadáver, agora difundido, embrulhado em celofane, nos supermercados feitos para as donas-de-casa da abundância. Nisso participa ele sem reservas e de boa fé. É esse o seu elemento natural. Se as "casas da cultura" não existissem, o estudante tê-las-ia inventado. Ele é a perfeita demonstração das mais banais análises da sociologia norte-americana do marketing: consumo ostentatório estabelecimento duma diferenciação publicitária entre produtos idênticos na sua nulidade (Pérec ou Robbe-Grillet; Godard ou Lelouch).
E basta que os "deuses" que produzem ou organizam o seu espectáculo cultural surjam em cena para que ele mostre ser o seu público principal, o seu sonhado devoto. É assim que em massa assiste às demonstrações mais obscenas de tais "deuses"; e quem senão ele, estudante, povoaria as salas de tais demonstrações, quando, por exemplo, os padres-curas das diferentes igrejas vêem publicamente expor os seus diálogos sem margens (semanas do pensamento dito marxista, reuniões de intelectuais católicos) , ou quando os escombros da literatura constatam a sua impotência (cinco mil estudantes pressentes numa sessão intitulada "Que pode a Literatura?" ) .
Incapaz de reais paixões, é com as polémicas sem paixão que se delicia: com essas discussões entre as vedetas da Ininteligência sobre falsos problemas cuja função consiste em dissimu1ar os verdadeiros: os Althusser -Garaudy -Sartre -Barthes -Picard -Lefebvre -Lévi-Strauss -Halliday -Chatelet -Antoine. Humanismo-Existencialismo -Estruturalismo -Cientificismo -Novo Criticismo-Dialéctico-naturalismo -Ciberneticismo -Planetismo -Metafilosofismo.
Na sua aplicação, o estudante julga-se de vanguarda porque viu o último filme de Godard, porque comprou o último livro argumentista (10) ou porque participou no último happening duma besta chamada Lapassade. Este ignorante toma por novidades "revolucionárias", garantidas por marca, os mais descorados sucedâneos de antigas pesquisas efectivamente importantes no seu tempo, posteriormente adoçadas com vista ao mercado. A questão reside, a este respeito, para o estudante, em preservar continuamente a sua posição cultural. O estudante orgulha-se de comprar, como toda a gente compra, as reedições em livros de bolso duma série de textos importantes e difíceis que a "cultura de massas" propaga a uma cadência acelerada (11). Acontece, simplesmente, que o estudante não sabe ler, contentando-se em consumi-los com os olhos.
As suas leituras preferidas continuam a ser a imprensa especializada que orquestra o consumo delirante dos acessórios culturais; docilmente, aceita as suas imperativas decisões publicitárias, e é delas que faz a referência-tipo dos seus gostos. Ainda se delicia com o Express e o Observateur, ou então acredita que o Monde, cujo estilo se lhe apresenta por demais difícil, é realmente um jornal "objectivo" que reflecte a actualidade. Para aprofundar os seus conhecimentos gerais, sacia-se com a Planete, a revista mágica que faz acabar com as rugas e as borbulhas das velhas ideias. É com esta espécie de guias que julga participar do mundo moderno e iniciar-se na política.
Porque o estudante, mais do que quem quer que seja, mostra-se contente por ser politizado. Fá-lo, simplesmente, ignorando que nisso participa através do mesmo espectáculo. É assim que se reapropria de todos os ridículos despojos duma esquerda que foi aniquilada há mais de quarenta anos, pelo reformismo "socialista" e pela contra-revolução estalinista. Tudo isto o ignora ele ainda, ao passo que o poder o sabe claramente, e os operários de maneira confusa. Ele participa, com um orgulho imbecil, nas mais irrisórias manifestações que só a ele conseguem seduzir. A falsa consciência política encontra-se, na sua pessoa, em estado puro, constituindo o estudante a base ideal para as manipulações dos fantomáticos burocratas das organizações moribundas (do partido dito comunista à UNEF). Estas organizações programam totalitariamente as suas opções políticas; todo e qualquer desvio ou veleidade de "independência" volta a entrar, docilmente, depois dum simulacro de resistência, numa ordem que nunca foi posta em questão (12). Quando o estudante julga ir mais longe, como essas pessoas que se chamam, por virtude duma verdadeira doença da inversão publicitária, J. C. R., quando não são, nem jovens, nem comunistas, nem revolucionários, é para aderir, contente, à palavra de ordem pontifical "Paz no Vietname".
O estudante orgulha-se de se opor aos "arcaísmos" de um De Gaulle; mas não percebe que o faz em nome de erros do passado, de crimes arrefecidos (como o estalinismo na época de Togliatti-Garaudy-Krutchev-Mao) e que, deste modo, a sua juventude é ainda mais arcaica do que o poder – porque o Poder, quanto a ele, dispõe efectivamente de tudo quanto é necessário para administrar uma sociedade moderna.
O estudante, porém, não se fica por um tal arcaísmo. Ele julga dever ter, a respeito de tudo, ideias gerais, concepções coerentes do mundo que dêem um sentido à sua necessidade de agitação e de promiscuidade assexuada. Eis a razão por que, manipulado pelos mais recentes febrilismos das capelas, ele se lança sobre a velharia das velharias para adorar o cadáver pestilento de Deus e dedicar-se aos restos decompostos das religiões pré-históricas, que julga dignas de si e do seu tempo. O meio estudantil constitui -quase nem vale a pena sublinhá-lo-, juntamente com o das velhinhas provincianas, o sector onde perdura a mais forte dose de religião praticada, e continua ainda a ser a melhor "terra de missões" (ao passo que em todas as outras se devoraram já ou se expulsaram os missionários), no seio da qual padres-estudantes continuam a sodomizar, sem se ocultarem, milhares de estudantes nas suas retretes espirituais.
Bem entendido, há no seio dos estudantes pessoas de um nível intelectual satisfatório. São as que dominam, sem se cansar, os miseráveis controlos de capacidade previstos para os medíocres; e, justamente, fazem-no na medida em que compreenderam o sistema, porque o desprezam e sabem que são seus inimigos. Do sistema de ensino retiram o que este tem de melhor: as bolsas de estudo. Tirando proveito das falhas do controlo, e da sua própria lógica, que obriga actualmente a manter um pequeno sector puramente intelectual – a "investigação" -, dedicam-se tranquilamente a levar a perturbação ao mais alto nível: o seu declarado desprezo pelo sistema vai a par com a lucidez que lhes permite justamente ser mais fortes que os serventuários do sistema, e antes de mais nada intelectualmente. As pessoas a que aqui nos referimos figuram já de facto entre os teóricos do movimento revolucionário que se aproxima, e gabam-se de ser tão conhecidos como ele quando disso se começar a falar. Elas não ocultam, perante quem quer que seja, que aquilo que com tanta facilidade retiram do "sistema de estudos" é utilizado para a sua destruição. Porque o estudante não pode revoltar-se contra o quer que seja sem se revoltar contra os seus estudos; e a necessidade desta sua revolta faz-se nele sentir menos naturalmente do que no operário, que se revolta espontaneamente contra a sua condição de operário. O estudante, porém, é um produto da sociedade moderna, ao mesmo titulo que Godard e a Coca-Cola. A sua extrema alienação só pode ser contestada pela contestação da sociedade no seu conjunto. De modo algum esta crítica pode realizar-se no terreno estudantil: o estudante, como tal, apropria-se de um pseudovalor que o impede de tomar consciência do seu desapossamento real, e é por tal facto que patina no cúmulo da falsa consciência. Por toda a parte onde a sociedade moderna começa a ser contestada, todavia, isso significa que há na juventude a revolta, revolta que corresponde, de imediato, a uma crítica total do comportamento estudantil.
1. Marc Cravetz. Conheceu uma certa notoriedade nos meios dirigentes da UNEF; elegante parlamentário, cometeu o erro de se aventurar no domínio da "investigação teórica": na revista Les Temps Modernes, em 1964, publica uma apologia do sindicalismo estudantil que no ano seguinte, e na mesma revista, denunciará.
2. É evidente que empregamos os conceitos de espectáculo, papel, etc. no sentido situacionista.
3. Quando se não lhe dá merda a comer, é porque se lhe mija em cima.
4. Mas sem a consciência revolucionária deste último; o operário não alimentava a ilusão da promoção.
5. Não nos referimos à cultura de coisas como a Escola Normal Superior nem à dos Sorboniqueiros, mas à dos enciclopedistas ou de Hegel.
6. Incapazes de reivindicar o liberalismo filisteu, inventam, para uso próprio, referências às liberalidades universitárias da Idade Média, época da "democracia da não-liberdade".
7. Cf. Internatlonal Situationniste, nº 9, ."Correspondance avec un cyberneticien" e o panfielo situacionista La torture dans la vitrine contra o neo-professor A. Moles.
8. Vide A Luta Sexual da Juventude e A Função do Orgasmo.
9. Para o resto da população é necessária a intervenção da camisa de forças a fim de a levar a comparecer na fortaleza asilar do psiquiatra. Com o estudante, basta dar a entender que foram abertos no ghetto postos de controlo avançados: ele para ali se precipita, e de tal jeito que será necessário distribuir-lhe senhas numeradas.
10 A respeito da quadrilha argumentista e do desaparecimento do seu órgáo (a revista Arguments). vide o panfleto Aux Poubelles de l’Histoire, difundido pela Internacional Situacionista em 1963.
11 A este propósito, nunca será demais recomendar a solução, já praticada pelos mais inteligentes, que consiste em roubá-los.
12. Cf. as últimas aventuras da UEC e dos seus homólogos cristãos com as suas hierarquias respectivas: tais aventuras mostram que a única unidade entre toda esta gente reside na submissão incondicional aos seus chefes.
(a) UNEF: União Nacional dos Estudantes de França. Instrumento nos anos 60 da fracçao modernista e tecnocrática que aspirava à gestão da sociedade mercantil. Apêndice estudantil do partido dito comunista. desde então. (N do T.)
(b) FGEL: Federação Geral dos Estudantes Laicos, facção da UNEF (N do T.).