DA MISÉRIA NO MEIO ESTUDANTIL INTERNACIONAL SITUACIONISTA I

DA MISÉRIA NO MEIO ESTUDANTIL

CONSIDERADA NOS SEUS ASPECTOS ECONÓMICO, POLÍTICO, SEXUAL E ESPECIALMENTE INTELECTUAL E DE ALGUNS MEIOS PARA A PREVENIR

 I. TORNAR A VERGONHA AINDA MAIS VERGONHOSA CONFIANDO-A À PUBLICIDADE

Podemos afirmar, sem grande risco de erro, que o estudante em França é – depois do polícia e do padre -, o ser mais universalmente desprezado. Se as razões de um tal desprezo são com frequência falsas razões que resultam da ideologia dominante, as razões por que, do ponto de vista da critica revolucionária, ele, estudante, é efectivamente desprezível e desprezado, são, quanto a elas, recalcadas e dissimuladas. Os mantenedores da falsa contestação sabem porém reconhecê-las, tais razões, e nelas se reconhecer. Por isso transformam, invertendo-o, esse desprezo verdadeiro numa admiração condescendente. É deste modo que a impotente intelligentsia de esquerda (dos Temps Modernes ao Express) se surpreende perante a pretensa "ascensão dos estudantes", e que as organizações burocráticas efectivamente em declínio (do partido dito comunista à UNEF (a) ) entre si disputam, com cobiça, o apoio "moral e material" dos estudantes. Mostraremos mais à frente as razões de um tal interesse pelos estudantes e como aquelas organizações positivamente participam da realidade dominante do capitalismo superdesenvolvido, e utilizaremos este folheto para as denunciar uma a uma; pois que a desalienação outro caminho não segue senão o da alienação.

Todas as análises levadas a cabo sobre o meio estudantil negligenciaram, até hoje, o essencial. Nunca, com efeito, tais análises ultrapassam o ponto de vista das especializações universitárias (psicologia, sociologia, economia), mantendo-se, por conseguinte, fundamentalmente erróneas. Todas elas cometem aquilo a que já Fourier chamava uma leviandade metódica, "pois que se refere regularmente às questões primordiais" ignorando o ponto de vista total da sociedade moderna. O feiticismo dos factos dissimula a categoria essencial, e os detalhes fazem esquecer a totalidade. Diz-se tudo a propósito desta sociedade, excepto aquilo que ela efectivamente é: mercantil e espectacular. Os sociólogos Bourderon e Passedieu, no seu inquérito intitulado Les Héritiers: les étudiants et la culture, ficam desarmados perante as poucas verdades parciais que ainda assim conseguiram provar. E, apesar de toda a sua boa vontade, voltam a cair na moral dos professores, na inevitável ética kantiana duma democratização real através duma racionalização real do sistema de ensino, quer dizer, do ensino do sistema. E isto ao mesmo tempo que os seus discípulos, os Kravetz (1), julgam ser aos milhares a avivar o espirito. compensando o seu azedume pequeno-burocrático com o amontoar duma fraseologia revolucionária obsoleta.

A espectacu1arização (2) da reificação no capitalismo moderno impõe a cada indivíduo um papel na passividade generalizada. O estudante não escalpa a uma tal lei. Trata-se, no seu caso, de desempenhar um papel provisório, que o prepara para o definitivo papel que virá a assumir, na sua qualidade de elemento positivo e conservador, no funcionamento do sistema mercantil. Este seu papel não é outra coisa senão uma iniciação.

Iniciação que retoma, magicamente, todas as características da iniciação mítica, mantendo-se inteiramente separada da realidade histórica, individual e social. O estudante é um ser partilhado entre um estatuto presente e um estatuto futuro claramente distintos, e cuja fronteira vai ser mecanicamente transposta. A sua consciência esquizofrénica permite-lhe isolar-se numa "sociedade de iniciação", desconhecendo o seu futuro e encantando-se com a unidade mística que lhe oferece um presente ao abrigo da história. A razão de ser do derruimento da verdade oficial -quer dizer, económica – é bastante simples de desmascarar: a realidade estudantil só dificilmente se encara de frente. Numa "sociedade de abundância", o estatuto actual do estudante é a extrema pobreza. Originários, em mais de 80 % das camadas que usufruem de rendimentos superiores aos dos operários, 90 % dentre eles dispõem de um rendimento inferior ao do mais modesto assalariado. A miséria do estudante fica aquém da miséria da sociedade do espectáculo, da nova miséria do novo proletariado. Numa época em que uma parte crescente da juventude se liberta cada vez mais dos preconceitos morais e da autoridade familiar para participar, e bem cedo, das relações de exploração declarada, o estudante mantém-se ainda, a todos os níveis, numa "minoria prolongada", irresponsável e dócil. Se a sua tardia crise juvenil o opõe um tanto à família, ele aceita facilmente ser tratado como criança nas diversas instituições que regem a sua vida quotidiana (3).

A colonização dos diversos sectores da prática social limita-se a deparar com a sua mais gritante expressão no mundo estudantil. A transferência, para os estudantes, de toda a má consciência social, dissimula, na realidade, a miséria e a servidão de todos.

São, porém, de ordem bem diversa as razões em que se alicerça o nosso desprezo pelo estudante. Tais razões não dizem apenas respeito à sua miséria real; referem-se, também, à sua complacência perante todas as misérias; à sua doentia propensão para consumir, em sossego, alienação, com a esperança, perante a falta de interesse geral, de interessar a sua privação particular. As exigências do capitalismo moderno fazem com que os estudantes, na sua maioria, venham a ser quadros profissionais secundários (isto é, algo equivalente àquilo que era, no século XIX, a função do operário qualificado (4) ) .Perante o carácter miserável, que facilmente se pressente, deste futuro mais ou menos próximo que o "indemnizará" da vergonhosa miséria do presente, o estudante prefere voltar-se para o seu presente e decorá-lo com ilusórios prestígios. A compensação, em si mesma, é por demais lamentável para que nela nos detenhamos; e tão-pouco com ela poderá cantar vitória no futuro. É a razão por que se refugia num presente irrealmente vivido.

Escravo estóico, o estudante julga-se tanto mais livre quanto o tolhem todas as grilhetas da autoridade. Tal como a sua nova família, a Universidade, ele supõe-se o mais "autónomo" dos seres sociais, quando, pelo contrário, depende directa e conjuntamente dos dois mais poderosos sistemas de autoridade social: a família e o Estado. O estudante é deles o filho bem comportado e reconhecido. Seguindo a mesma lógica do filho submisso, participa de todos os valores e mistificações do sistema, e em si os concentra. Aquilo que eram ilusões impostas aos assalariados torna-se ideologia interiorizada e veiculada pela massa dos futuros quadros profissionais secundários.

Contrariamente à miséria social antiga, que produziu os mais grandiosos sistemas de compensação da história (as religiões), a miséria marginal estudantil, quanto a ela, só encontrou consolação nas mais obsoletas imagens da sociedade dominante; na repetição burlesca de todos os seus produtos alienados.

O estudante francês, na sua qualidade de ser ideológico, chega tarde demais a tudo. Todos os valores e ilusões que constituem o orgulho do seu mundo fechado estão já condenados como ilusões insustentáveis, desde há muito ridicularizadas pela história.

Recolhendo um pouco dos sobejos de prestígio da Universidade, o estudante ainda se sente satisfeito por ser estudante. Tarde demais! O ensino mecânico e especializado que recebe está tão profundamente degradado (em relação ao antigo nível da cultura geral burguesa (5)) quanto o seu próprio nível intelectual na altura em que a tal ensino acede, e isto pelo simples facto de a realidade que domina o conjunto destas coisas – o sistema económico -reclamar uma fabricação maciça de estudantes incultos e incapazes de pensar. Que a Universidade se tenha tornado uma organização – institucional – da ignorância, que a própria "alta cultura" se dissolva ao ritmo da produção em série dos professores, que todos estes professores sejam uns cretinos, de tal modo que a maior parte dentre eles provocaria a algazarra de qualquer público de liceu -, tudo isso o ignora o estudante; e, respeitosamente, continua a escutar os seus mestres, com a vontade consciente de perder todo e qualquer espírito crítico, a fim de melhor comungar na ilusão mística de se ter tornado um "estudante", isto é, alguém que seriamente se ocupa na aprendizagem de um saber sério, na expectativa de assim lhe serem confiadas as últimas verdades. Trata-se, aqui, de uma menopausa do espírito. Tudo quanto se passa hoje nos anfiteatros das escolas e das faculdades será condenado na futura sociedade revolucionária como ruído, socialmente nocivo. O estudante, desde já, dá vontade de rir.

O estudante não se dá conta sequer de que a história altera também o seu irrisório mundo "fechado". A famosa "Crise da Universidade", detalhe duma crise mais geral do capitalismo moderno, continua a ser objecto de um diálogo de surdos entre diferentes especialistas. Mas apenas traduz, muito simplesmente, as dificuldades de um ajustamento tardio deste sector especial da produção a uma transformação de conjunto do aparelho produtivo. Os -resíduos da velha ideologia da universidade liberal burguesa banalizam-se na altura em que a sua base social se dissolve. A Universidade pôde julgar-se uma força autónoma na época do capitalismo de livre-câmbio e do seu Estado liberal, que lhe concedia uma certa liberdade marginal. Na realidade, porém, ela dependia estreitamente das necessidades deste tipo de sociedade: fornecer à minoria privilegiada, que seguia estudos, a cultura geral adequada, antes de esta se integrar nas fileiras da classe dirigente, da qual, a bem dizer, mal tinha saído. Daí o ridículo desses nostálgicos professores (6) exasperados por terem perdido a sua antiga função de cães de guarda dos futuros dirigentes em proveito dessoutra, bem menos nobre, de cães de pastor que conduzem, segundo as necessidades planificadas do sistema económico, as fornadas de "colarinhos brancos" para as suas fábricas e escritórios respectivos. São eles, esses ridículos professores, que opõem os seus arcaísmos à tecnocratização da Universidade e imperturbavelmente continuam a debitar os restos duma cultura dita geral a futuros especialistas que não saberão o que fazer dela.

Mais sérios, e por conseguinte mais perigosos, são os modernistas da esquerda e os da UNEF conduzidos pelos ultras da FGEL (b) , que reivindicam uma "reforma de estrutura da Universidade", uma "reinserção da Universidade na vida social e económica", quer dizer, a sua adaptação às necessidades do capitalismo moderno. De distribuidoras da "cultura geral" para uso das classes dirigentes, as diversas faculdades e escolas, ainda adornadas com prestígios anacrónicos, são transformadas em fábricas de criação precoce de quadros secundários e de quadros médios. Longe de contestar este processo histórico que directamente subordina um dos últimos sectores relativamente autónomos da vida social às exigências do sistema mercantil, os nossos progressistas protestam contra os atrasos e fraquezas de que a sua realização padece. São eles os defensores da futura universidade ciberneticizada que, aqui e ali, se anuncia já (7). O sistema mercantil e os seus servidores modernos, eis o inimigo.

É porém normal que todo e qualquer debate passe por sobre o estudante, no céu dos seus mestres, e inteiramente lhe escape: o conjunto da sua vida -e, a fortiori, da vida – escapa ao seu entendimento.

Por virtude da sua situação económica de extrema pobreza, o estudante é condenado a um certo modo de sobrevivência bem pouco invejável. Mas, sempre satisfeito por ser aquilo que é, eleva a sua miséria trivial à categoria de um "estilo de vida": o miserabilismo e a boémia. Ora a "boémia", já longe de constituir uma solução original, nunca é autenticamente vivida a não ser na sequência duma rotura completa e irreversível com o meio universitário. Os partidários da boémia no seio dos estudantes (e todos se gabam de o ser um pouco) limitam-se pois a agarrar-se a uma versão artificial e degradada do que não passa, e no melhor dos casos, duma medíocre solução individual. Até o desprezo das velhinhas provincianas, por isso, eles merecem. Estes "originais" continuam, trinta anos depois do que fez esse excelente educador da juventude que foi Wilhelm Reich (8), a ter os comportamentos erótico-amorosos mais tradicionais, reproduzindo as relações genéricas da sociedade de classes nas suas relações intersexuais. A aptidão do estudante para se transformar em militante de toda e qualquer espécie é, aliás, da sua impotência, elucidação bastante. Na margem de liberdade individual permitida pelo espectáculo totalitário, e apesar do seu emprego do tempo mais ou menos descuidado, o estudante continua a ignorar a aventura, a ela preferindo um espaço-tempo quotidiano feito de estreiteza, ordenado em sua intenção pelas barreiras desse mesmo espectáculo.

Sem a isso ser obrigado, ele próprio trata de separar trabalho e ócio, ao mesmo tempo que proclama um desprezo hipócrita pelos "marrões" e "máquinas proavaliações". Aprova todas as separações, e vai depois gemer para círculos diversos – religiosos, desportivos, políticos ou sindicais – sobre a não-comunicação. É tão burro e tão infeliz que chega espontaneamente e em massa a confiar-se ao controlo parapolicial dos psiquiatras e psicólogos, controlo este para seu uso organizado pela vanguarda da opressão moderna e, por conseguinte, aplaudido pelos seus "representantes", que naturalmente nestes Serviços de Apoio Psicológico Universitário (SAPU) vêem uma conquista indispensável e merecida (9).

Mas a miséria real da vida quotidiana estudantil encontra a sua compensação imediata e fantástica naquilo que é o seu ópio principal: a mercadoria cultural. No espectáculo cultural, o estudante encontra naturalmente o seu lugar de discípulo respeitador. Próximo do lugar de produção sem nunca a ele aceder -o Santuário mantém-se-lhe inacessível-, o estudante descobre a "cultura moderna" na sua qualidade de espectador admirativo. Numa época em que a arte morreu, ele continua a ser o principal fiel dos teatros e dos cine-clubes, e o mais ávido consumidor do seu congelado cadáver, agora difundido, embrulhado em celofane, nos supermercados feitos para as donas-de-casa da abundância. Nisso participa ele sem reservas e de boa fé. É esse o seu elemento natural. Se as "casas da cultura" não existissem, o estudante tê-las-ia inventado. Ele é a perfeita demonstração das mais banais análises da sociologia norte-americana do marketing: consumo ostentatório estabelecimento duma diferenciação publicitária entre produtos idênticos na sua nulidade (Pérec ou Robbe-Grillet; Godard ou Lelouch).

E basta que os "deuses" que produzem ou organizam o seu espectáculo cultural surjam em cena para que ele mostre ser o seu público principal, o seu sonhado devoto. É assim que em massa assiste às demonstrações mais obscenas de tais "deuses"; e quem senão ele, estudante, povoaria as salas de tais demonstrações, quando, por exemplo, os padres-curas das diferentes igrejas vêem publicamente expor os seus diálogos sem margens (semanas do pensamento dito marxista, reuniões de intelectuais católicos) , ou quando os escombros da literatura constatam a sua impotência (cinco mil estudantes pressentes numa sessão intitulada "Que pode a Literatura?" ) .

Incapaz de reais paixões, é com as polémicas sem paixão que se delicia: com essas discussões entre as vedetas da Ininteligência sobre falsos problemas cuja função consiste em dissimu1ar os verdadeiros: os Althusser -Garaudy -Sartre -Barthes -Picard -Lefebvre -Lévi-Strauss -Halliday -Chatelet -Antoine. Humanismo-Existencialismo -Estruturalismo -Cientificismo -Novo Criticismo-Dialéctico-naturalismo -Ciberneticismo -Planetismo -Metafilosofismo.

Na sua aplicação, o estudante julga-se de vanguarda porque viu o último filme de Godard, porque comprou o último livro argumentista (10) ou porque participou no último happening duma besta chamada Lapassade. Este ignorante toma por novidades "revolucionárias", garantidas por marca, os mais descorados sucedâneos de antigas pesquisas efectivamente importantes no seu tempo, posteriormente adoçadas com vista ao mercado. A questão reside, a este respeito, para o estudante, em preservar continuamente a sua posição cultural. O estudante orgulha-se de comprar, como toda a gente compra, as reedições em livros de bolso duma série de textos importantes e difíceis que a "cultura de massas" propaga a uma cadência acelerada (11). Acontece, simplesmente, que o estudante não sabe ler, contentando-se em consumi-los com os olhos.

As suas leituras preferidas continuam a ser a imprensa especializada que orquestra o consumo delirante dos acessórios culturais; docilmente, aceita as suas imperativas decisões publicitárias, e é delas que faz a referência-tipo dos seus gostos. Ainda se delicia com o Express e o Observateur, ou então acredita que o Monde, cujo estilo se lhe apresenta por demais difícil, é realmente um jornal "objectivo" que reflecte a actualidade. Para aprofundar os seus conhecimentos gerais, sacia-se com a Planete, a revista mágica que faz acabar com as rugas e as borbulhas das velhas ideias. É com esta espécie de guias que julga participar do mundo moderno e iniciar-se na política.

Porque o estudante, mais do que quem quer que seja, mostra-se contente por ser politizado. Fá-lo, simplesmente, ignorando que nisso participa através do mesmo espectáculo. É assim que se reapropria de todos os ridículos despojos duma esquerda que foi aniquilada há mais de quarenta anos, pelo reformismo "socialista" e pela contra-revolução estalinista. Tudo isto o ignora ele ainda, ao passo que o poder o sabe claramente, e os operários de maneira confusa. Ele participa, com um orgulho imbecil, nas mais irrisórias manifestações que só a ele conseguem seduzir. A falsa consciência política encontra-se, na sua pessoa, em estado puro, constituindo o estudante a base ideal para as manipulações dos fantomáticos burocratas das organizações moribundas (do partido dito comunista à UNEF). Estas organizações programam totalitariamente as suas opções políticas; todo e qualquer desvio ou veleidade de "independência" volta a entrar, docilmente, depois dum simulacro de resistência, numa ordem que nunca foi posta em questão (12). Quando o estudante julga ir mais longe, como essas pessoas que se chamam, por virtude duma verdadeira doença da inversão publicitária, J. C. R., quando não são, nem jovens, nem comunistas, nem revolucionários, é para aderir, contente, à palavra de ordem pontifical "Paz no Vietname".

O estudante orgulha-se de se opor aos "arcaísmos" de um De Gaulle; mas não percebe que o faz em nome de erros do passado, de crimes arrefecidos (como o estalinismo na época de Togliatti-Garaudy-Krutchev-Mao) e que, deste modo, a sua juventude é ainda mais arcaica do que o poder – porque o Poder, quanto a ele, dispõe efectivamente de tudo quanto é necessário para administrar uma sociedade moderna.

O estudante, porém, não se fica por um tal arcaísmo. Ele julga dever ter, a respeito de tudo, ideias gerais, concepções coerentes do mundo que dêem um sentido à sua necessidade de agitação e de promiscuidade assexuada. Eis a razão por que, manipulado pelos mais recentes febrilismos das capelas, ele se lança sobre a velharia das velharias para adorar o cadáver pestilento de Deus e dedicar-se aos restos decompostos das religiões pré-históricas, que julga dignas de si e do seu tempo. O meio estudantil constitui -quase nem vale a pena sublinhá-lo-, juntamente com o das velhinhas provincianas, o sector onde perdura a mais forte dose de religião praticada, e continua ainda a ser a melhor "terra de missões" (ao passo que em todas as outras se devoraram já ou se expulsaram os missionários), no seio da qual padres-estudantes continuam a sodomizar, sem se ocultarem, milhares de estudantes nas suas retretes espirituais.

Bem entendido, há no seio dos estudantes pessoas de um nível intelectual satisfatório. São as que dominam, sem se cansar, os miseráveis controlos de capacidade previstos para os medíocres; e, justamente, fazem-no na medida em que compreenderam o sistema, porque o desprezam e sabem que são seus inimigos. Do sistema de ensino retiram o que este tem de melhor: as bolsas de estudo. Tirando proveito das falhas do controlo, e da sua própria lógica, que obriga actualmente a manter um pequeno sector puramente intelectual – a "investigação" -, dedicam-se tranquilamente a levar a perturbação ao mais alto nível: o seu declarado desprezo pelo sistema vai a par com a lucidez que lhes permite justamente ser mais fortes que os serventuários do sistema, e antes de mais nada intelectualmente. As pessoas a que aqui nos referimos figuram já de facto entre os teóricos do movimento revolucionário que se aproxima, e gabam-se de ser tão conhecidos como ele quando disso se começar a falar. Elas não ocultam, perante quem quer que seja, que aquilo que com tanta facilidade retiram do "sistema de estudos" é utilizado para a sua destruição. Porque o estudante não pode revoltar-se contra o quer que seja sem se revoltar contra os seus estudos; e a necessidade desta sua revolta faz-se nele sentir menos naturalmente do que no operário, que se revolta espontaneamente contra a sua condição de operário. O estudante, porém, é um produto da sociedade moderna, ao mesmo titulo que Godard e a Coca-Cola. A sua extrema alienação só pode ser contestada pela contestação da sociedade no seu conjunto. De modo algum esta crítica pode realizar-se no terreno estudantil: o estudante, como tal, apropria-se de um pseudovalor que o impede de tomar consciência do seu desapossamento real, e é por tal facto que patina no cúmulo da falsa consciência. Por toda a parte onde a sociedade moderna começa a ser contestada, todavia, isso significa que há na juventude a revolta, revolta que corresponde, de imediato, a uma crítica total do comportamento estudantil.

1. Marc Cravetz. Conheceu uma certa notoriedade nos meios dirigentes da UNEF; elegante parlamentário, cometeu o erro de se aventurar no domínio da "investigação teórica": na revista Les Temps Modernes, em 1964, publica uma apologia do sindicalismo estudantil que no ano seguinte, e na mesma revista, denunciará.
2. É evidente que empregamos os conceitos de espectáculo, papel, etc. no sentido situacionista.
3. Quando se não lhe dá merda a comer, é porque se lhe mija em cima.
4. Mas sem a consciência revolucionária deste último; o operário não alimentava a ilusão da promoção.
5. Não nos referimos à cultura de coisas como a Escola Normal Superior nem à dos Sorboniqueiros, mas à dos enciclopedistas ou de Hegel.
6. Incapazes de reivindicar o liberalismo filisteu, inventam, para uso próprio, referências às liberalidades universitárias da Idade Média, época da "democracia da não-liberdade".
7. Cf. Internatlonal Situationniste, nº 9, ."Correspondance avec un cyberneticien" e o panfielo situacionista La torture dans la vitrine contra o neo-professor A. Moles.
8. Vide A Luta Sexual da Juventude e A Função do Orgasmo.
9. Para o resto da população é necessária a intervenção da camisa de forças a fim de a levar a comparecer na fortaleza asilar do psiquiatra. Com o estudante, basta dar a entender que foram abertos no ghetto postos de controlo avançados: ele para ali se precipita, e de tal jeito que será necessário distribuir-lhe senhas numeradas.
10 A respeito da quadrilha argumentista e do desaparecimento do seu órgáo (a revista Arguments). vide o panfleto Aux Poubelles de l’Histoire, difundido pela Internacional Situacionista em 1963.
11 A este propósito, nunca será demais recomendar a solução, já praticada pelos mais inteligentes, que consiste em roubá-los.
12. Cf. as últimas aventuras da UEC e dos seus homólogos cristãos com as suas hierarquias respectivas: tais aventuras mostram que a única unidade entre toda esta gente reside na submissão incondicional aos seus chefes.

(a) UNEF: União Nacional dos Estudantes de França. Instrumento nos anos 60 da fracçao modernista e tecnocrática que aspirava à gestão da sociedade mercantil. Apêndice estudantil do partido dito comunista. desde então. (N do T.)
(b) FGEL: Federação Geral dos Estudantes Laicos, facção da UNEF (N do T.).

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DA MISÉRIA NO MEIO ESTUDANTIL – INTERNACIONAL SITUACIONISTA II


 II. NÃO BASTA QUE O PENSAMENTO PROCURE REALIZAR-SE; É NECESSÁRIO QUE A REALIDADE TRATE DE DESCOBRIR O SEU PENSAMENTO

Após um longo período de sono letárgico e de contra-revolução permanente, esboça-se, desde há alguns anos, um novo período de contestação de que parece ser portadora a juventude. Mas a sociedade do espectáculo, na representação que faz de si mesma e dos seus inimigos, impõe as suas categorias ideológicas para a compreensão do mundo e da história. Ela conduz tudo quanto aí se desenrola à ordem natural das coisas, encerrando as verdadeiras novidades que anunciam a sua superação no contexto restrito da sua ilusória novidade. A revolta da juventude contra o modo de vida que se lhe impõe não é, na realidade, mais do que o sinal precursor duma vasta subversão que englobará o conjunto dos indivíduos que sentem cada vez mais a impossibilidade de viver; não é mais do que o prelúdio da próxima época revolucionária. Só que a ideologia dominante e os seus órgãos diários, segundo mecanismos experimentados de inversão da realidade, não podem deixar de reduzir este movimento histórico real a uma pseudocategoria socio-natural: a Ideia de Juventude (cuja essência consistiria na revolta). Reduzindo, deste modo, uma nova juventude da revolta à eterna revolta da juventude – que renasceria em cada geração para se apagar quando o "jovem é tomado pela seriedade da produção e pela actividade com vista a fins concretos e verdadeiros". A "revolta dos jovens" foi e é ainda objecto duma verdadeira praga jornalística, que dela faz o espectáculo duma "revolta" possível oferecida à contemplação para impedir que se a viva, como esfera aberrante -já integrada- necessária ao funcionamento do sistema social; esta revolta contra a sociedade tranquiliza a sociedade porque se a imagina como coisa parcial, e como coisa parcial que como tal se mantenha, no apartheid das "questões da juventude" -do mesmo modo que haveria um problema feminino ou um problema negro -, supondo-se, assim, que haverá de durar apenas uma parte da vida. Na realidade, porém, se de facto existe um "problema da juventude" no interior da sociedade moderna é porque a crise profunda desta sociedade é ressentida com a acuidade maior pela juventude (1). Produto por excelência desta sociedade moderna, ela própria é moderna, quer para nela se integrar sem reservas, quer para a recusar radicalmente. O que é digno de admiração não é tanto que a juventude seja revoltada, mas sim que os "adultos" se mostrem tão resignados. Coisa aliás que não tem uma explicação mitológica, mas outrossim histórica: a geração precedente conheceu todas as derrotas e consumiu todas as mentiras do período de desagregação do movimento revolucionário.

Considerada em si mesma, a "juventude" constitui um mito publicitário já profundamente ligado ao modo de produção capitalista, como expressão do seu dinamismo. Esta ilusória primazia da juventude tornou-se possível com a nova arrancada da economia, após a Segunda Guerra Mundial, na sequência da introdução maciça no mercado de toda uma categoria de consumidores mais maleáveis, papel este que assegura um diploma de integração na sociedade do espectáculo. Mas a explicação dominante do mundo encontra-se de novo em contradição com a realidade socio-económica (porque atrasada em relação a esta), e é justamente a juventude que começa por afirmar um irresistível furor de viver, insurgindo-se espontaneamente contra a chatice quotidiana e o tempo morto que o velho mundo continua a segregar através das suas diferentes modernizações. A fracção revoltada da juventude exprime a pura recusa, sem a consciência duma perspectiva de superação; exprime a sua recusa niilista. Esta perspectiva busca-se e constitui-se por toda a parte do mundo. Do que precisa é de atingir a coerência da crítica teórica e a organização prática duma tal coerência.

Ao nível mais sumário, os "Blusões Negros", e isto em todos os países, exprimem com a maior violência aparente a recusa de se integrarem. Mas o carácter abstracto da sua rejeição não lhes deixa qualquer possibilidade de escaparem às contradições de um sistema de que são o produto negativo e espontâneo. Os "Blusões Negros" são produzidos por todas as costuras da ordem actual: pelo urbanismo dos grandes centros habitacionais, pela decomposição dos valores, pela extensão dos ócios consumíveis cada vez mais chatos, pelo controlo humanitário-policial cada vez mais alargado ao conjunto da vida quotidiana, pela sobrevivência económica da célula familiar privada de qualquer significado. Os "Blusões Negros" desprezam o trabalho mas aceitam as mercadorias. O que quereriam era poder dispor de tudo quanto a publicidade lhes mostra, imediatamente e sem que tivessem de pagar. Esta contradição fundamental domina por inteiro a sua existência, e é ela o contexto que retém e aprisiona a sua tentativa de afirmação no sentido da busca duma verdadeira liberdade no emprego do tempo, da afirmação individual e da constituição de um género de comunidade. (Simplesmente, tais microcomunidades recompõem, à margem da sociedade desenvolvida, um primitivismo em que a miséria real inelutavelmente recria a hierarquia no grupo. Esta hierarquia, que só pode afirmar-se na luta contra outros grupos, isola cada um dos grupos e, no seio de cada grupo, o indivíduo.) Para sair desta contradição, o "Blusão Negro" acaba por se ver perante a necessidade de trabalhar para poder comprar mercadorias – e, aqui, todo um sector da produção é expressamente constituído para a sua recuperação como consumidor (motos, guitarras eléctricas, vestuário, discos, etc) -, ou então tem de atacar as leis da mercadoria, quer de forma primária, roubando-a, quer duma forma consciente, elevando-se à crítica revolucionária do mundo da mercadoria. O consumo porém abranda os costumes destes jovens revoltados, vindo a sua revolta a cair no pior dos conformismos. O mundo dos "Blusões Negros" só tem como perspectiva a tomada de consciência revolucionária ou a obediência cega nas fábricas.

Os Provos constituem a primeira forma de superação da experiência dos "Blusões Negros", a organização da sua primeira expressão :política. Surgiram por virtude de um encontro entre alguns detritos da arte decomposta em busca de êxito e uma massa de jovens revoltados em busca de afirmação. A sua organização permitiu a uns e a outros avançar e aceder a um novo tipo de contestação. Os "artistas" trouxeram com eles algumas tendências, ainda muito mistificadas, no sentido do jogo, revestidas de um confuso amontoado ideológico; os jovens revoltados só tinham por eles a violência da sua revolta. Desde a formação da sua organização, as duas tendências mantiveram-se distintas; a massa sem teoria viu-se desde logo sob a alçada tutelar duma ínfima camada de dirigentes suspeitos, que procuram manter o "poder" de que dispõem através da segregação duma ideologia provotista. A violência dos "Blusões Negros", em vez de passar, no plano das ideias, para uma tentativa de superação da arte, foi o reformismo neo-artístico que prevaleceu. Os Provos são a expressão do último reformismo produzido pelo capitalismo moderno: o da vida quotidiana. Quando se mostra necessária pelo menos uma revolução ininterrupta para se transformar a vida, a hierarquia Provo julga -tal como Bernstein julgava transformar o capitalismo em socialismo através das reformas- que basta serem aplicados alguns melhoramentos para que a vida quotidiana se modifique. Os Provos, ao optarem pelo fragmentário, acabam assim por aceitar a totalidade. Para se dotarem de uma base, os seus dirigentes inventaram a ridícula ideologia do Provotariado (mistela artístico-política inocentemente composta dos restos bolorentos duma festa que não conheceram), destinada, segundo eles, a opor-se à pretensa passividade e ao emburguesamento do proletariado, formulário este, vazio e pretensioso, de todos os cretinos do século. Porque perderam a esperança de transformar a totalidade, perdem a esperança nas únicas forças que contêm a esperança duma superação total. O proletariado é o motor da sociedade capitalista, sendo por isso o seu perigo mortal; tudo é feito para o reprimir (partidos, sindicatos burocráticos, polícia e, mais ,frequentemente do que contra os Provos, colonização de toda a sua existência), na medida em que ele é a única força realmente ameaçadora. Os Provos disso não compreenderam nada; mantêm-se, deste modo, incapazes de fazer a crítica do sistema de produção, ficando, do mesmo passo, prisioneiros de todo o sistema. E quando, num motim operário anti-sindical, a sua base aderiu à violência directa, os dirigentes viram-se completamente ultrapassados pelo movimento, não vendo, no seu desvario, nada melhor do que denunciar os "excessos" e apelar ao pacifismo, renunciando lastimavelmente ao seu programa, que consistia nisto: provocar as autoridades para mostrar o seu carácter repressivo (clamando que eram provocados pela polícia). Para cúmulo, apelaram, pela rádio, os jovens amotinados a que se deixassem educar pelos "Provos", quer dizer, pelos dirigentes os quais largamente puseram à mostra que o seu vago "anarquismo" não passava de um novo embuste. A revoltada base dos Provos só pode aceder à crítica revolucionária começando por se revoltar contra os seus chefes, o que significa aderir às forças revolucionárias objectivas do proletariado e desembaraçar-se de gente como um Constant, artista oficial da Holanda monárquica, ou como um De Vries, parlamentário falhado e admirador da polícia inglesa. Só assim os Provos podem juntar-se à autêntica contestação moderna, que neles já dispõe duma base real. Se pretendem realmente transformar o mundo, que abandonem todos quantos pretendem contentar-se com a sua reabilitação.

Ao revoltarem-se contra os seus estudos, os estudantes norte-americanos puseram imediatamente em causa uma sociedade que tem necessidade de tais estudos. Do mesmo modo que a sua revolta (em Berkeley e alhures) contra a hierarquia universitária se afirmou, desde logo, como uma revolta contra todo o sistema social baseado na hierarquia e na ditadura da economia e do Estado. Ao recusarem-se a integrar as empresas a que os seus estudos especializados muito naturalmente os destinavam, põem profundamente em causa um sistema de produção no qual todas as actividades, bem como o seu produto, escapam por inteiro aos seus autores. Assim, através de tentativas, e duma confusão ainda muito importante, a juventude norte-americana acaba por procurar, na "sociedade da abundância", uma alternativa revolucionária coerente. Em larga medida ela mantém-se vinculada aos dois aspectos relativamente acidentais da crise americana: os Negros e o Vietname; e as pequenas organizações que constituem a "Nova Esquerda" disso se ressentem imenso. Se, na sua forma, se faz sentir uma autêntica exigência de democracia, a debilidade do seu conteúdo subversivo fá-las cair em contradições perigosas. A hostilidade em relação à política tradicional das velhas organizações é facilmente recuperada pela ignorância em relação ao mundo político, que se traduz por uma grande falta de informação e por ilusões a respeito do que efectivamente se passa no mundo. A hostilidade abstracta perante a sua sociedade condu-los à admiração ou ao apoio dos seus inimigos mais aparentes: as burocracias ditas socialistas, a China ou Cuba. É assim que se depara, num grupo como o Resurgence Youth Movement, simultaneamente com uma condenação à morte do Estado e com um elogio da "Revolução Cultural" conduzida pela mais gigantesca burocracia dos templos modernos: a China de Mao. Ao mesmo tempo que a sua organização semilibertária e não-directiva corre a toda a altura o risco, devido a uma manifesta falta de conteúdo, de cair na ideologia da "dinâmica dos grupos" ou no universo fechado da Seita. O consumo maciço de droga é a expressão duma miséria real e o protesto contra esta miséria real: ela constitui a busca falaciosa de liberdade num mundo sem liberdade, a crítica religiosa de um mundo que superou ele próprio a religião. Não é por acaso que se a encontra sobretudo nos meios beatniks (verdadeira direita dos jovens revoltados), centros da rejeição ideológica e da aceitação das mais fantásticas superstições (zen, espiritismo. misticismo da "New Church" e outras inúteis merdas como o gandhismo ou o humanismo…). Através da sua tentativa de busca de um programa revolucionário, os estudantes norte-americanos cometem o mesmo erro que os Provos e proclamam ser "a classe mais explorada da sociedade"; eles precisam, desde hoje, de compreender que não têm interesses distintos de todos quantos sofrem a opressão generalizada e a escravidão mercantil.

A Leste, o totalitarismo burocrático começa também a produzir as suas forças negativas. A revolta dos jovens é ali particularmente virulenta, e só é conhecida através das denúncias que dela fazem os diferentes órgãos do aparelho ou as medidas policiais que adopta para as conter. É assim que tomamos conhecimento de que uma parte da juventude já não "respeita" a ordem moral e familiar (tal como existe na sua mais detestável forma burguesa), se entrega à "libertinagem", despreza o trabalho e já não obedece à polícia do partido. Na URSS, chega-se mesmo a nomear expressamente um ministro para combater a vadiice rufia. Paralelamente porém a esta revolta difusa procura afirmar-se uma contestação mais elaborada, e os grupos ou pequenas revistas que vivem na clandestinidade surgem e desaparecem segundo as flutuações da repressão policial. O facto mais importante consistiu na publicação, pelos jovens polacos Kuron e Modzelewski da sua Carta-Aberta ao Partido Operário Polaco. Neste texto, afirmam de modo expresso a necessidade da abolição das relações de produção e das relações sociais actuais e consideram que, para tal fim, "a revolução é inelutável". A intelligentsia dos países de Leste procura actualmente tornar conscientes e formular claramente as razões desta crítica que os operários concretizaram em Berlim Leste, em Varsóvia e em Budapeste – a crítica proletária do poder de classe burocrático. Esta revolta tem profundamente contra si a desvantagem de começar por pôr os problemas reais, bem como a sua solução. Se nos outros países o movimento é possível, mantendo-se no entanto o objectivo mistificado, nas burocracias de Leste a contestação não alimenta ilusões e os seus objectos são conhecidos. Trata-se, para ela, de inventar as formas da sua realização, de abrir o caminho que aí conduz.

Quanto à revolta dos jovens ingleses, esta encontrou a sua primeira expressão organizada no movimento antiatómico. Esta luta parcial, vinculada à volta do vago programa da Comissão dos Cem -que pôde congregar cerca de 300 mil manifestantes-, levou a cabo o seu mais belo gesto na Primavera de 1963 com o escândalo do R.S.G. 6 (2). Uma tal luta não podia senão vir a decair, por falta de perspectivas, recuperada pelos escombros da política tradicional e pelas boas almas pacifistas. O arcaísmo do controlo na vida quotidiana, característico da Inglaterra, não pôde resistir ao assalto do mundo moderno, e a decomposição acelerada dos valores seculares engendra tendências profundamente revolucionárias na crítica de todos os aspectos de modo de vida (3). É necessário que as exigências desta juventude se juntem à resistência duma classe operária que se situa entre as mais combativas do mundo, a dos shop-stewards e das greves selvagens; o êxito das suas lutas só em perspectivas comuns pode ser procurado. O desmoronar da social-democracia no poder constitui apenas uma possibilidade suplementar no sentido de uma tal conjugação. As explosões que um tal encontro ocasionará mostrar-se-ão muito mais temerárias do que tudo quanto se pôde ver em Amsterdão. O motim provotário, perante um tal encontro, não passará de uma brincadeira de crianças. Só daí pode surgir um verdadeiro movimento revolucionário, no qual as necessidades práticas terão encontrado a sua resposta.

O Japão é o único dentre os países industrialmente avançados onde esta fusão da juventude estudantil e dos operários de vanguarda já se realizou. Zengakuren, a famosa organização dos estudantes revolucionários e a Liga dos Jovens Trabalhadores Marxistas, constituem as duas importantes organizações formadas segundo a orientação comum da Liga Comunista Revolucionária . Esta formação põe-se já o problema da organização revolucionária. Simultaneamente, e sem ilusões, combate o capitalismo no Ocidente e a burocracia dos países ditos socialistas. Agrupa já alguns milhares de estudantes e operários organizados numa base democrática e anti-hierárquica, na base da participação de todos os membros em todas as actividades da organização. São deste modo os revolucionários japoneses os primeiros no mundo a levar a cabo desde já grandes lutas organizadas, referindo-se a um programa avançado e com uma larga participação das massas. Incessantemente, milhares de operários e estudantes saem à rua e afrontam violentamente a polícia japonesa. Todavia, a L.C.R., e se bem que os combata firmemente, não explica completa e concretamente os dois sistemas. Procura ainda definir com precisão a exploração burocrática, do mesmo modo que ainda não conseguiu formular explicitamente as características do capitalismo moderno, a critica da vida quotidiana e a crítica do espectáculo. A Liga Comunista Revolucionária, no fundamental, continua a ser uma organização proletária clássica. É presentemente a mais importante formação revolucionária no mundo, e deve constituir, desde já, um dos pólos de discussão e de congregação para a nova crítica proletária no mundo.

1. No sentido de que a juventude se não limita a ressenti-la, procurando exprimi-la.
2. Durante o qual os partidários do movimento antiatómico descobrirm, tornaram público e a seguir invadiram os abrigos antiatómicos u1tra-secretos reservados aos membros do Governo.
3 Estamos a pensar na excelente revista Heatwave, cuja evolucão parece indicar um radicalismo cada vez mais rigoroso. Endereço: Redclife Rd., 13. London SW 10. (Bem entendido, esta e outras indicações semelhantes estão fora de uso. N. do T .).
4. Kaihosha, c/o Dairyulso, 3 Nakanoekimae, Nakanoku, Tóquio, Japão. Zengakuren, Hirota Building 2-10, Kandajimbo cho, Chlyoda-Ku, Tóquio. Japão.

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DA MISÉRIA NO MEIO ESTUDANTIL – INTERNACIONAL SITUACIONISTA III


III.CRIAR POR FIM A SITUAÇÃO QUE IMPOSSIBILITE QUALQUER REGRESSO AO PASSADO

"Ser de vanguarda é caminhar a par da realidade" (1). A critica radical do mundo moderno precisa de ter agora por objecto e como objectivo a totalidade. Ela precisa de ter :por objecto, inseparavelmente, o seu passado real, aquilo que ele é efectivamente, e as perspectivas da sua transformação. Isto porque, para poder dizer toda a verdade do mundo actual, e a fortiori para ;formular o projecto da sua inteira subversão, é necessário poder revelar-se toda a sua história oculta, quer dizer, encarar de forma inteiramente desmistificada e fundamentalmente critica a história de todo o movimento revolucionário internacional, há mais de um século inaugurada pelo proletariado dos países do Ocidente, encarando deste modo as suas "derrotas" e as suas "vitórias". "Este movimento contra o conjunto da organização do velho mundo há muito tempo já que acabou" (2); e acabou sem êxito. A sua última manifestação histórica consistiu na derrota da revolução ,proletária em Espanha (em Barcelona, em Maio de 1937). Todavia, tanto os seus "insucessos" oficiais como as suas "vitórias" oficiais têm de ser analisados à luz dos seus prolongamentos, e restabelecidas as suas verdades respectivas. Deste modo, podemos afirmar que "há derrotas que constituem vitórias e vitórias mais vergonhosas que derrotas" ( Karl Liebknecht na véspera do seu assassínio) . Com efeito, a primeira "derrota" do poder proletário, a Comuna de Paris, constitui na realidade a sua primeira grande vitória já que, pela ,primeira vez, o proletariado primitivo pôde assim afirmar a sua capacidade histórica para dirigir livremente o conjunto da vida social. Da mesma ,forma, a sua primeira grande "vitória", a revolução bolchevista, não passa, feitas as contas, da sua mais pesada derrota. O triunfo da ordem bolchevista coincide com o movimento de contra-revolução internacional, iniciado com o esmagamento dos espartaquistas pela "social-democracia" alemã. O seu comum triunfo mostrou-se mais profundo do que a sua aparente oposição, e esta ordem bolchevista não passava, afinal, de um novo disfarce e de uma figura particular da velha ordem. Os resultados da contra-revolução russa foram, com efeito, os seguintes: internamente o estabelecimento e o desenvolvimento de um novo modo de exploração, o capitalismo burocrático de Estado; externamente, a multiplicação das secções da Internacional dita comunista, sucursais destinadas a defender aquele capitalismo e a propagar o seu modelo.

Nas suas diferentes variantes burocráticas e burguesas, o capitalismo mostrava-se de novo florescente – sobre os cadáveres, agora, dos marinheiros de Cronstadt e dos camponeses da Ucrânia, dos operários de Berlim, Kiel, Turim, Xangai e, mais tarde, de Barcelona.

A III Internacional, aparentemente criada pelos bolchevistas para lutar contra os restos da social-democracia reformista da II Internacional, e para agrupar a vanguarda proletária nos "partidos comunistas revolucionários", estava por demais ligada aos seus criadores e aos seus interesses para poder realizar, onde quer que fosse, a verdadeira revolução socialista. A II Internacional constituía, na realidade, a verdade da III. Muito cedo, o modelo russo impôs-se às organizações operárias do Ocidente, e as evoluções respectivas foram uma única e mesma coisa. À ditadura totalitária da burocracia, nova classe dirigente, sobre o proletariado russo, correspondia, no seio destas organizações, o domínio de uma camada de burocratas políticos e sindicais sobre a grande massa dos operários, cujos interesses se tornaram francamente contraditórios com os desses dirigentes. O monstro estalinista perseguia a consciência operária, ao mesmo tempo que o capitalismo, em vias de burocratização e de superdesenvolvimento, resolvia as suas crises internas e, arrogantemente, afirmava a sua nova vitória, cuja permanência reclama. Uma mesma forma social, em aparência divergente e variada, toma conta do mundo, e é assim que os princípios do velho mundo continuam a governar o nosso mundo moderno. Os mortos perseguem ainda, como um pesadelo, o cérebro dos vivos.

No seio deste mundo, múltiplas organizações pretensamente revolucionárias limitam-se a combatê-lo em aparência, no seu próprio terreno, através das maiores mistificações. Todas elas invocam ideologias mais ou menos petrificadas, limitando-se de facto a participar na consolidação da ordem dominante. Os sindicatos e os partidos políticos forjados pela classe operária com vista à sua própria emancipação passavam entretanto, de meros reguladores do sistema, a propriedade privada de dirigentes que trabalham com vista à sua emancipação particular, conseguindo um estatuto no seio da classe dirigente duma sociedade que não pensam sequer pôr em questão. O programa real destes sindicatos e partidos limita-se a retomar. insipidamente, a fraseolgia "revolucionária", e a aplicar de facto as palavras de ordem do mais amenizado reformismo, visto o próprio capitalismo se tornar oficialmente reformista. Onde puderam tomar o poder – em países mais atrasados do que a Rússia -, o resultado dessa tomada do poder limitou-se à reprodução do modelo estalinista do totalitarismo contra-revolucionário (3). E onde isso não aconteceu constituem o complemento estático e necessário (4) ao auto-regulamento do capitalismo burocratizado, a contradição indispensável à manutenção do seu humanismo policial. Por outro lado, continuam a ser, em relação às massas operárias, os garantes indefectíveis e os incondicionais defensores da contra-revolução burocrática, bem como os dóceis instrumentos da sua política externa. Num mundo fundamentalmente impostor, eles são os portadores da mais radical impostura, activando-se em favor da perenidade da ditadura universal da Economia e do Estado. Tal como o afirmam os situacionistas, "um modelo social universalmente dominante, que tende ao auto-regulamento totalitário, só aparentemente é combatido por falsas contestações situadas, em permanência, no seu próprio terreno, ilusões que, pelo contrário, reforçam este modelo. O pseudo-socialismo burocrático não passa do mais grandioso destes disfarces do velho mundo hierárquico do trabalho alienado" (5). O sindicalismo estudantil, nisto tudo, não passa, quanto a ele, da caricatura duma caricatura, a repetição burlesca e inútil de um sindicalismo degenerado.

A denúncia teórica e prática do estalinismo, em todas as suas formas, tem de constituir a banalidade de base de todas as futuras organizações revolucionárias. É evidente que em França, por exemplo, onde o atraso económico ainda faz recuar a consciência da crise, o movimento revolucionário só das ruinas do estalinismo destruído poderá renascer. A destruição do estalinismo tem de tornar-se o delenda Carthago da última revolução da pré-história.

Esta tem ela própria de romper definitivamente com a sua própria pré-história, e extrair toda a sua poesia do futuro. Os "bolchevistas ressuscitados", que representam a farsa de "militantismo" nos diferentes grupúsculos esquerdistas, são mofas emanações do passado, e de modo nenhum anunciam o futuro. Resto do grande naufrágio da "revolução traída", apresentam-se como os féis defensores da ortodoxia bolchevista: a defesa da URSS é a sua insuportável fidelidade e a sua escandalosa demissão.

Só nos famosos países subdesenvolvidos (6), onde eles próprios ratificam o subdesenvolvimento teórico, ,podem conservar ilusões. De Partisans (a) (órgão dos estalino-trotskismos reconciliados) a todas as tendências e meias tendências que entre si disputam "Trotski" no interior e no exterior da IV Internacional, reina uma mesmíssima ideologia revolucionarista e uma mesmíssima incapacidade prática e teórica para compreender os problemas do mundo moderno. Separam-nos, da Revolução, quarenta anos de história contra-revolucionária. Não têm razão por já não estarem em 1920, e em 1920 já não tinham razão. A dissolução do grupo "ultra-esquerdista" Socialisme ou Barbarie (b) , após a sua divisão em duas fracções, a "modernista cardanista" (c) e a "marxista antiquada" ( de Pouvoir Ouvrier) (d) , prova, se tal fosse necessário, que não pode haver revolução fora do moderno, nem pensamento moderno fora da crítica revolucionária a reinventar (7). Tal dissolução é significativa na medida em que qualquer separação entre estes dois aspectos cai inevitavelmente, quer no museu da pré-história revolucionária terminada, quer na modernidade do poder, isto é, na contra-revolução dominante: Voix ouvriere ou Arguments.

Quanto aos diversos grupúsculos "anarquistas", todos eles prisioneiros desta denominação, nada mais possuem para além desta ideologia reduzida a um mero rótulo: o incrível Monde Libertaire (e) , evidentemente redigido por estudantes, atinge o mais fantástico grau da confusão e da parvoíce. Essa gente tolera efectivamente tudo, visto tolerarem-se uns aos outros.

A sociedade dominante, que se gaba da sua permanente modernização, tem agora de encontrar a quem falar, isto é, à negação modernizada que ela própria produz (8): "Deixemos agora aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos e de os chorar". As desmistificações práticas do movimento histórico desembaraçam a consciência revolucionária dos fantasmas que a perseguiam; a revolução da vida quotidiana encontra-se perante as tarefas imensas que tem de realizar. A revolução, tal como a vida que anuncia, precisa de ser reinventada. Se o projecto revolucionário continua fundamentalmente o mesmo (a abolição da sociedade de classes), isso acontece porque em nenhures as condições em que se forma foram radicalmente transformadas. Trata-se de o retomar, tal projecto, com um radicalismo e uma coerência ampliados pela experimentada falência dos seus antigos portadores, a fim de evitar que a sua realização fragmentária conduza a uma nova divisão da sociedade.

A luta entre o poder e o novo proletariado só se pode manifestar com base na totalidade; é por isso que o futuro movimento revolucionário precisa de abolir, no seu seio, tudo quanto tenda a reproduzir os produtos alienados do sistema mercantil (9). Ele precisa de ser, simultaneamente, a sua crítica viva e a negação que em si mesma contém todos os elementos da superação possível. Tal como bem o entendeu Lukács (para o aplicar, porém, a um objecto que disso não era digno, o partido bolchevista), a organização revolucionária é uma mediação necessária entre a teoria e a prática, entre o homem e a história, entre a massa dos trabalhadores e o proletariado constituído em classe. As tendências e divergências "teóricas" ,precisam de se transformar imediatamente numa questão de organização se pretendem mostrar a via da sua realização. A questão da organização constituirá a sentença final do novo movimento revolucionário, o tribunal perante o qual será julgada a coerência do seu .projecto essencial: a realização internacional do poder absoluto dos Conselhos Operários, tal como .foi esboçado pela experiência das revoluções proletárias deste século. Uma tal organização tem de salientar a critica radical de tudo aquilo que alicerceia a sociedade que combate, a saber: a produção mercantil, a ideologia sob todos os seus disfarces, o Estado e as separações por ele impostas.

A cisão entre teoria e .prática constitui o escolho em .que tropeçou o velho movimento revolucionário. Só os momentos mais altos das lutas proletárias superaram esta cisão e depararam com a sua verdade. Nenhuma organização conseguiu ainda saltar por sobre este Rodes. A ideologia, por mais "revolucionária" que se apresente, está sempre ao serviço dos chefes, e é o sinal de alarme que designa o inimigo dissimulado. É a razão por que a critica da ideologia tem de constituir, em última análise, o problema central da organização revolucionária. Só o mundo alienado produz a impostura; e a impostura não poderia reaparecer no interior do que pretende conter a verdade social sem que esta organização deixasse de se transformar, ela própria, numa nova impostura, num mundo fundamentalmente impostor.

A organização revolucionária que ,projecta realizar o poder absoluto dos Conselhos Operários deve constituir o terreno onde se esboçam todos os aspectos positivos deste poder. Por isso precisa de levar a cabo uma luta mortal contra a teoria leninista da organização. A revolução de 1905 e a organização espontânea dos trabalhadores russos em sovietes era já uma crítica em actos (10) desta teoria nefasta. Mas o movimento bolchevista teimava em acreditar que a espontaneidade operária não poderia ultrapassar a consciência "trade-unionista" e que seria, por isso, incapaz de apreender "a totalidade". Eis, porém, o que isto significava: degolar o proletariado a fim de ,permitir que o partido "encabeçasse" a Revolução. Não se pode contestar, tão impiedosamente como o fez Lenine, a capacidade histórica do proletariado para se libertar ,por si próprio, sem contestar a sua capacidade para gerir inteiramente a sociedade futura. Numa tal perspectiva, a palavra de ordem "todo o poder aos sovietes" não significava senão a conquista dos sovietes pelo partido, a instauração do Estado do partido em vez do "Estado" em deperecimento do proletariado em armas.

É todavia esta palavra de ordem que se mostra necessário retomar radicalmente, desembarançando-a da má fé dos bolchevistas. O proletariado só pode entregar-se ao jogo da revolução se o fizer para conquistar um mundo por inteiro; de contrário não é coisíssima nenhuma. A forma única do seu poder, a autogestão generalizada, não pode ser partilhada com qualquer outra força. Ao mesmo tempo, e na medida em que ele é a dissolução efectiva de todos os poderes, não poderá tolerar qualquer limitação (geográfica ou de outra ordem); os compromissos que aceitar transformam-se de imediato em comprometimentos, em demissão. "A autogestão deve constituir simultaneamente o meio e o fim da luta actual. Ela é, não só aquilo que, na luta, está em jogo, mas igualmente a forma adequada desta luta. É para si mesma a matéria que activa e a sua própria pressuposição" (11).

A critica unitária do mundo é a garantia da coerência e da verdade da organização revolucionária. Tolerar a existência dos sistemas de opressão (na medida em que envergam uma fatiota "revolucionária", por exemplo) num ponto qualquer do mundo consiste em reconhecer a legitimidade da opressão. Do mesmo modo, se uma tal crítica tolera a alienação num qualquer domínio da vida social, é porque aceita a fatalidade de todas as reificações. Não basta ser-se partidário do poder abstracto dos Conselhos operários; é necessário mostrar o seu significado concreto: a supressão da produção mercantil e, por conseguinte, a supressão do proletariado. A lógica da mercadoria é a racionalidade inicial e última das sociedades actuais; é ela a base do auto-regulamento totalitário destas sociedades, comparáveis a puzzles cujas peças, tão pouco semelhantes em aparência, na realidade são equivalentes. A reificação mercantil constitui o obstáculo essencial duma emancipação total, da livre edificação da vida. No mundo da produção mercantil, a praxis não se realiza em função de um objectivo determinado e de modo autónomo, mas sim por força de directivas :provindas de forças exteriores (f) .E se as leis económicas dão a impressão de se transformar em leis naturais duma espécie peculiar, isso acontece na medida em que a sua força se baseia unicamente na "ausência de consciência daqueles que nisso participam".

O principio da produção mercantil é este: o extravio do indivíduo na criação caótica e inconsciente de um mundo que escapa inteiramente aos seus criadores. O núcleo radicalmente revolucionário da autogestão generalizada é, pelo contrário, a direcção consciente, por todos, do conjunto da vida. A auto-gestão da alienação mercantil limitar-se-ia a fazer de todos os homens os programadores da sua própria sobrevivência: é a quadratura do circulo. A tarefa dos Conselhos Operários não consistirá portanto na auto-gestão do mundo existente, mas na sua transformação qualitativa ininterrupta – isto é, na superação concreta da mercadoria (da mercadoria enquanto gigantesco desvio da produção do homem por ele próprio).

Esta superação implica naturalmente a supressão do trabalho e a sua substituição ,por um novo tipo de actividade livre; o que significa a abolição de uma das separações fundamentais da sociedade moderna: a separação entre um trabalho cada vez mais reificado e ócios passivamente consumidos. Certos grupúsculos, hoje em liquefacção, como S. ou B. ou P.O.(12), e apesar disso congraçados com base na moderna palavra de ordem do poder operário, continuam a seguir, no tocante a esta questão central, o velho movimento operário, na via do reformismo do trabalho e da sua "humanização". É o próprio trabalho que agora se torna necessário atacar. Longe de ser uma "utopia", a sua supressão é condição primeira para a superação efectiva da sociedade mercantil, para a abolição na vida quotidiana de cada indivíduo da separação entre o "tempo livre" e o "tempo de trabalho", sectores complementares duma vida alienada onde indefinidamente se projecta a contradição interna da mercadoria entre valor de uso e valor de troca. Só fora desta oposição poderão os homens fazer da sua actividade vital um objecto da sua vontade e da sua consciência, e contemplarem-se eles próprios num mundo que eles próprios terão criado. A democracia dos Conselhos Operários é o enigma solucionado de todas as separações actuais; é ela que torna "impossível tudo o que existe fora dos indivíduos".

O domínio consciente da história pelos homens que a fazem: é esta a totalidade do projecto revolucionário. A história moderna, tal com toda a história passada, é o produto da praxis social, o resultado – inconscientemente – de todas as actividades humanas. Na época do seu domínio totalitário, o capitalismo produziu aquilo que é a sua nova religião: o espectáculo. O espectáculo é a realização terrena da ideologia. Nunca, anteriormente, o mundo tão bem andara de pés para o ar. "E tal como a crítica da religião, a crítica do espectáculo constitui, hoje em dia, a condição primeira para a existência de qualquer critico" (13).

Isto porque, historicamente, o problema da revolução se põe à .humanidade. A acumulação, cada vez mais grandiosa, dos meios materiais e técnicos, só pode comparar-se à insatisfação cada vez mais profunda de todos. A burguesia e a sua herdeira a Leste, a burocracia. não podem dispor do modo de utilização deste superdesenvolvimento que constituirá a base da poesia do futuro, e isto justamente na medida em que ambas trabalham em prol da manutenção duma ordem antiga. Quanto muito, uma e outra dispõem apenas do segredo do seu uso policial. Ambas se limitam a acumular o capital e, por isso, o proletariado; e o proletário é todo o indivíduo sem qualquer poder sobre o emprego a dar à sua vida, e que o sabe. A oportunidade histórica do novo proletariado reside em ser o único herdeiro consequente da riqueza sem valor do mundo burguês; riqueza que se trata de transformar e de superar, no sentido do homem total buscando a apropriação total da natureza e da sua própria natureza. Esta realização da natureza do homem só pode ter sentido através da satisfação sem limites e da multiplicação infinita dos desejos reais que o espectáculo recalca e expulsa para as zonas longínquas do inconsciente revolucionário, e que só fantasticamente é capaz de realizar, no delírio onírico da sua publicidade. Porque a realização efectiva dos desejos reais, quer dizer, a abolição de todas as pseudonecessidades e de todos os pseudodesejos, diariamente criados pelo sistema para perpetuar o seu poder, não pode conseguir-se sem a supressão do espectáculo mercantil e sem a sua superação positiva.

A história moderna só pode ser libertada e as suas inumeráveis aquisições livremente utilizadas pelas forças que recalca e expulsa: os trabalhadores sem qualquer poder sobre as condições, o sentido e o produto das suas actividades. No século XIX, o proletariado era já o herdeiro da filosofia; ele tornou-se agora o herdeiro da arte moderna e da primeira critica consciente da vida quotidiana. Não poderá suprimir-se sem realizar, ao mesmo tempo, a arte e a filosofia. Transformar o mundo e alterar a vida são para ele uma única e a mesma coisa, as inseparáveis palavras de ordem que acompanharão a sua supressão enquanto classe, a dissolução da sociedade presente enquanto reino da necessidade, e o acesso por fim possível ao reino da liberdade. A crítica radical e a reconstrução livre de todos os procedimentos e valores impostos pela realidade alienada são o seu programa máximo, e a criatividade liberta na construção de todos os momentos e acontecimentos da vida constitui a única poesia que poderá reconhecer, a poesia feita por todos, o iniciar da festa revolucionária. As revoluções proletárias serão festas ou não serão coisíssima nenhuma, porque a vida que anunciam será ela também criada sob o signo da festa. O jogo é a racionalidade última desta festa; viver sem tempos mortos e gozar sem impedimentos são as únicas regras que poderá reconhecer.

1. International Situationiste, nº 8.
2. Idem, nº 7.
3 A realizaçao eferctiva deste modelo consiste na tendência a industrializar o país, através da clássica acumulação primitiva à custa do campesinato, acumulação esta acelerada pelo terror burocrático.
4. Desde há 45 anos que em França o partido dito comunista não dá um passo no sentido da tomada do poder, e o mesmo acontece em todos os países avançados onde o exército dito vermelho não chegou.
5. "Les Luttes de classes en Algérie", Internationale Situationniste, n. 10.
6. A respeito do papel que desempenharam na Argélia vide "Les luttes de classes em Algérie", Internationale Situationiste, n. 10.
7. Internationale Situationniste, nº. 9.
8. "Adresse aux révolutionnaires…", Internationale Situationniste, nº. 10.
9. Definido este pela predominância do trabalho-mercadorla.
10. Depois da crítica teórica levada a cabo por Rosa Luxemburg.
11. Les luttes de classes en Algérie-, Ibidem.
12. Socialisme ou Barbarie, Pouvoir Ouvrier, etc. Pelo contrário, um grupo como I. C. O.*, ao opor-se à constituição duma qualquer organização e duma teoria coerente, fica assim condenado à inexistência.
* I. C. O.: Informations et Correspondences Ouvrières, boletim mensal publicado de Outubro de 1958 a Junho de 1973, por um grupo anti-sindical partidário dos conselhos operários. Resultante duma cisão de Socialisme ou Barbarie, este grupo pretendia lutar contra o dirigismo, limitando-se a digundir informações sobre as lutas operárias e a favorecer os contactos entre operários radicais. Pode consultar-se a seu respeito a revista Internationale Situationniste, nºs 11 e 12. Do grupo I. C. O. existe publicado em português o livro Luta de classes na Polónia (Centelha, Coimbra, 1976), tímida tradução de Capitalisme e lutte de classes en Pologne, 1970-71 (Spartacus, Paris, 1975), obra de que foi amputada pela Centelha toda a parte teórica, fundamental para a compreensão dos acontecimentos sociais na Polónia e, por extensão, nos países de capitalismo de Estado.
13. Internationale Sltuatlonniste. nº. 9.
(a) Partisans: revista terceiro-mundista (1961-1972) editada pelo trotskista François Maspéro. (N. do T.).
(b) Sociallsme ou Barbarie: revista fundada em 1949 e que se mantém até 1966. Leva inicialmente a cabo uma útil actividade de clarificação teórica, baseada numa crítica clara do estalinismo. Entre os seus principais animadores contam-se Cornelius Castoriadis e Henry Simon, de quem há textos editados em Português (N. do T.)
(c) "Cardanista": de Paul Cardan, um dos pseudónimos de Castoriadis (N. do T.) .
(d) Pouvolr Ouvrier: orgão da tendência mais leninista que teve origem em Sociallsme ou Barbarle. (N. do T.).
(e) Le Monde Libertaire: órgão oficial da Federação Anarquista (francesa). (N. do T.).
(f) Isto é, de forças exteriores ao indivíduo. (N. do T.).

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Algumas questões obre o spray de pimenta

 

Algumas questões sobre o spray de pimenta

(Texto baseado em materiais disponíveis on-line e em testes do Grupo de Trabalho de avaliação de armas não-letais)

O spray de pimenta utiliza componentes que produzem um efeito inflamatório e não apenas iritante conforme se imagina. O princípio ativo elemento atribuído é o óleo de pimenta, em geral da família Capsicum (pimenta vermelha, pimentão, dedo de moça), que contém a capsicina (8-metil-N-vanilil-6-nonenamida) um alcalóide lipófilo (solúvel em gordura).  

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d8/Capsaicin_chemical_structure.png.

O óleo de pimenta natural atua com maior força sobre áreas sensíveis da pele sendo particularmente doloroso em contato com as mucosas e os olhos. O efeito depende em grande parte da quantidade de gás pimenta que entre em contato com a vítima, podendo demorar, em seu efeito mais forte, em torno de trinta a quarenta e cinco minutos com efeitos secundários ao longo de algumas horas que gradualmente se reduzem, como irritação contínua dos olhos e outros.

Há também outras duas variantes para o spray de pimenta: o gás de tripla-ação que pode conter conjuntamente gás-lacrimogêneo (C.S – gás ortocloro benzil malonitrila) ou ainda silicone, o que permite prolongar seu efeito por mais tempo preservando-o da desnaturação imediata (uso em nuvem ou granada para saturação de ambiente). O período estendido de exposição pode potencializar lesões advindas de seus efeitos, como irritação persistente da pele e efeitos alérgicos, ainda pouco estudados em relação ao nível de toxicidade, como, por exemplo, análise de risco ambiental e para a saúde humana.  

Outro componente estranho utilizado conjuntamente, ou substituto, pode ser o ácido pelagórgico morfólido, variante sintética do óleo de pimenta desenvolvido na Rússia, de que se tem poucas notícias, sofrendo acusação de possuir efeitos mais tóxicos que os do óleo natural.

Em grandes quantidades, o óleo de pimenta pode ser letal e seu consumo excessivo acidental tem sido atribuído como causa de alguns casos de morte de crianças na Índia. Seu efeito, curiosamente só atinge os mamíferos, os demais animais como aves e répteis não sofrem seus efeitos.

            No Brasil o principal, aliás, único fabricante deste produto é a “Condor tecnologias não-letais”, possuindo diversos formatos e “espargidores”, recebendo o nome de “agente incapacitante” e podendo se associar em alguns equipamentos com gás C.S., este mais comum de se encontrar em uso pelas forças armadas.

 http://www.condornaoletal.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=%5FtemplatePortugues&infoid=17&sid=3&tpl=printerview   

Os principais componentes ativos causdores da ardência nas pimentas do gênero Capsicum. 

Capsaicinóide Abrev. Ocorrência  Escala Scoville

Estrutura Química
Capsicina C 69% 15,000,000
Dihidrocapsicina DHC 22% 15,000,000
Ortodihidrocapsicina NDHC 7% 9,100,000
Homodihidrocapsicina HDHC 1% 8,600,000
Homocapsicina HC 1% 8,600,000

 http://www.homesteadcollective.org/mpg/science/minorcap2.shtml 

Primeiros Socorros:

Sair da área infectada e do alcance dos espargidores é a primeira grande sugestão, principalmente em operações onde se pretende saturar o ambiente de gás incapacitante. 

Dentro do que se conhece, não há neutralização imediata completa para o spray de pimenta, mas seus efeitos podem ser minimizados ou parados.

A água também não neutraliza prontamente o efeito do spray, pois, como já foi dito, a capsicina é liposolúvel (solúvel em óleos e gorduras) e dissolve rapidamente no óleo da pele, mas se separa da água.

Apesar de que, quando não se tem nada melhor, não há opção exceto utilizar uma garrafa de água com espargidor (tipo “Gatorade Sport”) diretamente sobre os olhos com a cabeça inclinada para baixo, de modo que a água só atinja os olhos sem escorrer pelo rosto ou pescoço.

Após isto, passa-se à secagem dos olhos com uma toalha limpa e seca de algodão (algo hidrófilo, isto é, que chupe a água) sem esfregar pelo rosto. O processo constitui em extrair o óleo, passando-se a seguir a tentar aliviar o efeito de ardência na pele e nas mucosas (pode-se forçar cuspe e lacrimejar intensamente, limpando a laringe e os olhos).      

Ao fazer isto nos olhos, deve-se evitar o contato diretamente com a substância, utilizando luvas ou  qualquer outra coisa que posso aliviar.

 

Um sabão neutro (que não seja a base de gordura) como o sabão de côco, detergente suave (como o antigo “Opção Verde” ou neutros) junto à um ventilador num local ventilado, surtirão algum efeito.

Outros problemas podem advir do uso de incapacitantes compostos, como quando se soma com gás lacrimogêneo, que possui outros efeitos diferentes, além de outro processo de neutralização, estamos testando a sugestão de neutralização com  metabissulfito de sódio dissolvido em leite utilizando a seguir protetor solar,  após a limpeza da pele com água e a toalha limpa e seca. Mas nada disso tem surtido um efeito muito radical, além de não dispormos de uma quantidade suficiente para testes mais conclusivos, ou mesmo uma amostra estável para o teste em espectrofotômetro para gases ou absorção atômica em chama de acetileno.

Não podemos, portanto, concluir pela presença de silicone, C.S., ou substituto sintético do óleo de pimenta conjuntamente com os sprays de pimenta em uso pela polícia (fabricante condor), nem por sua implicação na análise de risco para avaliação de toxicidade de químicos no estado de vapor.

 Outras sugestões descrições de primeiros socorros vide:http://www.inf.ufsc.br/barata/gaslac25.html 

Finalmente alguém mais olhou o texto, então ele não é mais meu.

Esta avaliação é de natureza técnica, e ainda pouco consistente no interim sobre o impacto do óleo de pimenta.

Em segundo lugar, falta uma avaliação jurídica específica para este ítem em especial, mas a crítica que vale para o agente lacrimogêneo C.S., vale para este caso. Pode-se iniciar este problema pela falta de uma avaliação de toxicidade e periculosidade, mesmo que seja composto de elemento de origem natural, ainda que sobre isto eu tenha dúvidas, o que mudaria o seu efeito e avaliação.

Como exemplo, a diferença entre espargir um agrotóxico sobre pessoas e aspergir um agrotóxico com adição de sulfatos (que permite ao composto penetrar na pele), é aquilo que permite classificá-lo já como arma química com um potencial letal muito maior, e não somente um efeito secundário.

Estendendo este raciocínio para o spray de pimenta, pode-se concluir que o spray ganha um efeito potencial muito maior em relação à irritação das vias respiratórias, o que pode levar à produção excessiva de líquido no pulmão, em resposta ao agente, o que poderia levar ao afogamento dada à inundação das vias respiratórias com acúmulo do líquido que reveste o espaço pleural.

A irritação da pleura (membrana que reveste o pulmão) pode causar o derrame pleural ou outro tipo de inflamação (a pleurisia seca), que após o desaparecimento da inflamação podem-se formar aderências fazendo as camadas pleurais se unirem, podendo ter então efeito letal em decorrência de falência pulmonar.

Atenciosamente

D

Técnico em Saneamento Ambiental e estudante de Filosofia

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PARTIDO E CLASSE – Anton Pannekoek

ANTON PANNEKOEK

(1873-1960)

Nasce em 1873 nos Países Baixos. Entra para o Partido Social-Democrata Holandês em 1902. Participa com Hermann Gorter na redação do órgão teórico deste partido Nieuwe Tijd. Fixa-se na Alemanha em 1905, onde ensina nas escolas do Partido Social-Democrata. Em 1909 vai para Bremen, onde participa na luta fraccionária contra o aparelho do S.P.D. Polémica contra Kautsky em 1912. Membro da esquerda zimmervaldiana. Co-fundador do P.C. holandês em 1918. Rompe com a I. C. com base no apoio aos movimentos dos conselhos contra o aparelho dos partidos. As suas ideias têm certa influência sobre o movimento revolucionário da época. Até á sua morte (1960) foi o principal teórico dos conselhos operários.

Pannekoek também era astrônomo e se torna um dos fundadores da astrofísica lecionando sobre o assunto no fim da vida, estranhamente foi homenageado dando-se seu nome a uma cratera no lado escuro da lua.

Partido e Classe
Por Anton Pannekoek

É cada vez mais evidente que qualquer suposta vanguarda que pretenda, de acordo com seu programa, dirigir ou impor-se às massas, por meio de um ‘partido revolucionário’, se revela na prática, um fator reacionário, em razão de suas concepções.

 

PARTIDO E CLASSE

No momento atual, em que a crença no partido tornou-se um freio para a capacidade de acão da classe operária, criar um novo partido só pode ter como finalidade dirigir e dominar o proletariado. Faz-se necessário distinguir: a) o partido é uma organização construída em torno de certas idéias políticas; b) a classe é um agrupamento baseado em interesses materiais comuns. Pertencer a um partido significa ligar-se a um grupo de pessoas que mantém pontos de vista semelhantes nas questões políticas. O pertencimento à mesma classe é determinado pela função desempenhada na produção, função que cria e desenvolve a consciência dos interesses comuns. Mais do que nunca, a classe operária somente poderá afirmar-se e vencer com a condição de assumir o seu próprio destino.

Durante o período do desenvolvimento dos partidos operários, difundiu-se a ilusão de que esses partidos poderiam englobar todos os trabalhadores, seja como militantes ou como simpatizantes. Acreditava-se estar superando a diferença entre classe e partido. Mas o partido continuou sendo uma minoria e, além disso, começou a ser alvo das críticas de outros grupos operários, conheceu várias rupturas, enquanto seu caráter experimentava freqüentes mudanças e seu programa era revisado ou interpretado em um sentido diverso.

Os programas dos partidos operários apresentavam a revolução social como o resultado final da luta de classes. A vitória dos operários sobre o capital significaria a criação de uma sociedade livre e igualitária, socialista ou comunista. Mas, enquanto durasse o capitalismo, a luta não podia superar o marco das necessidades imediatas e da defesa do nível de vida. O parlamento era o lugar no qual se enfrentavam as diferentes classes sociais: grandes e pequenos capitalistas, latifundiários, camponeses, artesãos, operários, cujos interesses específicos eram defendidos por seus deputados. Todos lutavam para aumentar sua parte no produto social. Assim, a função do partido operário consistia em atuar no parlamento de modo a representar os interesses dos trabalhadores, que, em troca, forneciam-lhe os votos necessários para aumentar sua influência política.

Quando um partido operário tem muitos deputados, alia-se com outros partidos contra as formações políticas mais reacionárias, para formar uma maioria parlamentar. Uma vez instalados, os representantes se tornam incapazes de atuar em defesa dos reais interesses dos trabalhadores. Na prática, a maioria parlamentar continua pertencendo às classes exploradoras. Os eventuais ministros – socialistas ou comunistas, tanto faz – inclinam-se diante dos interesses do capital: propõem medidas para satisfazer as reivindicações imediatas dos trabalhadores e pressionam os demais partidos para que as façam adotar, convertendo-se em mediadores que se dedicam a convencer os trabalhadores de que tais pequenas reformas são conquistas importantíssimas, desviando-os da luta de classes.

Os partidos operários só tem um objetivo: tomar o poder e exercê-lo. Não contribuem para a emancipação do proletariado, pois sua meta é governá-lo. Mas apresentam seu domínio como se fosse a autêntica emancipação do proletariado. Tais partidos são aparelhos que lutam pelo poder e, após enquadrar os militantes na linha justa, utilizam todos os meios, visando à constante expansão de sua esfera de influência.

O partido operário de tipo leninista tem como fundamento a idéia de que a classe operária necessita de um grupo de dirigentes capazes de expropriar os capitalistas em seu nome e em seu lugar, e , portanto, de constituir um novo governo. Isto é, a convicção de que a classe operária é incapaz de fazer a revolução. Segundo esta concepção, os chefes criam a sociedade comunista por decreto.

Lênin (Que Fazer? -1902), inspirando-se em Kautsky, propõe a criação de um partido de vanguarda, formado por "revolucionários profissionais" e rigidamente centralizado, sob a direção dos intelectuais. A divisão do trabalho, tão eficaz e racional na organização capitalista da produção, tem sido o modelo da concepção leninista da organização revolucionária, que subordina os operários aos intelectuais, atribuindo a estes a função dirigente. O resultado é que, logo após a revolução, a "eficácia" do partido leninista, que até então se limitara a aparelhar as organizações de massas, se estende e se afirma como "ditadura do proletariado". Uma nova classe dominante, os tecnoburocratas ou gestores, assume o poder em nome do proletariado e mantém, no essencial, as relações de produção/exploração capitalistas, mudando apenas sua forma superestrutural ou jurídico-política: o capitalismo de mercado se transforma em capitalismo de estado.

A expressão "partido revolucionário" é, pois, uma contradição nos seus termos. Um partido seria revolucionário se o termo revolução significasse troca de governo ou, no máximo, tomada do poder por uma nova classe exploradora e opressora.

A alternativa é: a) as massas trabalhadoras, sem deixar o terreno livre aos partidos, continuam a sua luta: organizam-se autonomamente, nas fábricas e oficinas, para destruir o poder do capital e formam os conselhos operários – entrando, inevitavelmente, em conflito com o ‘partido revolucionário’, que considera a ação direta do proletariado um fator de desordem. Ou então, b) as massas trabalhadoras se adaptam à doutrina do partido, entregam-lhe a direção da luta, seguem obedientemente suas palavras de ordem e, por fim, convencidas de que o novo governo abolirá as relações de produção capitalistas, voltam à passividade. Abandonando a iniciativa ao partido, os trabalhadores permitem que o inimigo de classe mobilize todas as suas forcas (econômica, política, Ideológica e militar) e derrube o novo governo ou o adapte a seus interesses, transformando-o em instrumento de conservação das relações de produção capitalistas.

Todas as vezes em que as massas trabalhadoras, após derrubar um governo, aceitaram ser novamente governadas, por mais revolucionário que se pretendesse o partido ao qual entregaram o poder, o que aconteceu foi a substituição de uma classe dominante por outra. Assim ocorreu com a revolução russa, quando o partido bolchevique apoderou-se dos sovietes e, através de um golpe de mão, tomou o poder e implantou o capitalismo de estado.

É cada vez mais evidente que qualquer suposta vanguarda que pretenda, de acordo com seu programa, dirigir ou impor-se às massas, por meio de um ‘partido revolucionário’, se revela na prática, um fator reacionário, em razão de suas concepções.

Anton Pannekoek, março de 1936

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BIOPOLÍTICA E BIOPOTÊNCIA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO Peter Pal Pelbart

BIOPOLÍTICA E BIOPOTÊNCIA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO
Peter Pàl Pelbart

O Imperador da China resolveu, um belo dia, construir uma muralha para se proteger dos nômades, vindos do Norte. A construção mobilizou a população inteira por anos a fio. Conta Kafka que ela foi empreendida por partes : um bloco aqui, outro ali, outro acolá, e não necessariamente eles se encontravam. De modo que entre um e outro pedaço de muralha construído em regiões desérticas abriam-se grandes brechas, lacunas quilométricas (1). O resultado foi uma muralha descontínua cuja lógica ninguém entendia, já que ela não protegia de nada nem de ninguém. Talvez apenas os nômades, na sua circulação errática pelas fronteiras do Império, tinham alguma noção do conjunto da obra. No entanto, todos supunham que a construção obedecesse a um plano rigoroso elaborado pelo Comando Supremo, mas ninguém sabia quem dele fazia parte e quais seus verdadeiros desígnios. Enquanto isso, um sapateiro residente em Pequim relatou que já havia nômades acampados na praça central, a céu aberto, diante do Palácio Imperial, e que seu número aumentava a cada dia (2). O próprio imperador apareceu uma vez na janela para espiar a agitação que eles provocavam. O Império mobiliza todas suas forças na construção da Muralha contra os nômades, mas eles já estão instalados no coração da capital enquanto o Imperador todo poderoso é um prisioneiro em seu próprio palácio.

Kafka dá poucas indicações sobre os nômades. Eles têm bocas escancaradas, dentes afiados, comem carne crua junto a seus cavalos, falam como gralhas, reviram os olhos e afiam constantemente suas facas. Não parecem ter a intenção de tomar de assalto o palácio imperial. Eles desconhecem os costumes locais e imprimem à capital em que se infiltraram sua esquisitice. Ignoram as leis do Império, parecem ter sua própria lei, que ninguém entende. É uma lei-esquiza, dizem Deleuze-Guattari (3). Por que esquiza ? Talvez pela semelhança do nômade com o esquizo. O esquizo está presente e ausente simultaneamente, ele está na tua frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está dentro e fora, da conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura, da linguagem.. Ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha, dificilmente ele entra em confronto direto com aquilo que recusa, não aceita a dialética da oposição, que sabe submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza, escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterrritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um território subjetivo.

Como pode o Império lidar com um território subjetivo de tal natureza ? Mas como pode ele deixar de lidar precisamente com isso ? Por mais que um Imperador tenha Muralhas concretas a construir, Império algum pode ficar indiferente a essa dimensão subjetiva sobre a qual ele se assenta primordialmente, sob pena de esfacelar-se – o que é ainda mais verdadeiro nas condições de hoje. De fato, como poderia o Império atual manter-se caso não capturasse o desejo de milhões de pessoas ? Como conseguiria ele mobilizar tanta gente caso não plugasse o sonho das multidões à sua mega-máquina planetária ? Como se expandiria se não vendesse a todos a promessa de uma segurança, de uma felicidade, o desejo de um modo de vida ? Afinal, o que nos é vendido o tempo todo, senão isto : maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir ? O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida – e mesmo quando nos referimos apenas aos estratos mais carentes da população, ainda assim essa tendência é crescente. Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que acessamos constantemente, absorvemos maneiras de viver e sentidos de vida, consumimos toneladas de subjetividade. Chame-se como se quiser isto que nos rodeia, capitalismo cultural, economia imaterial, sociedade de espetáculo, era da biopolítica, o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de relação entre o capital e a subjetividade. O capital, como o disse Jameson, através da ascensão da mídia e da indústria de propaganda, teria penetrado e colonizado um enclave até então aparentemente inviolável, o Inconsciente. Mas esse diagnóstico é hoje insuficiente. Ele agora não só penetra nas esferas as mais infinitesimais da existência, mas também as mobiliza, ele as põe para trabalhar, ele as explora e amplia, produzindo uma plasticidade subjetiva que ao mesmo tempo lhe escapa por todos os lados, obrigando o próprio controle a nomadizar-se.

O Império contemporâneo, diferentemente do Império chinês do conto de Kafka, já não funciona na base de muralhas e trincheiras, e os últimos acontecimentos demonstraram cabalmente a falência da lógica da fortaleza. O Império se nomadizou completamente. Ou melhor, ele é a resposta política e jurídica à nomadização generalizada. Ele mesmo depende da circulação de fluxos de toda ordem a alta velocidade, fluxos de capital, de informação, de imagem, de bens, mesmo e sobretudo de pessoas (4). Claro que nem tudo circula da mesma maneira por toda parte, e nem todos extraem dessa circulação os mesmos benefícios. O novo capitalismo em rede, que enaltece as conexões, a movência, a fluidez, produz novas formas de exploração e de exclusão, novas elites e novas misérias, e sobretudo uma nova angústia – a do desligamento. O que Castel chamou de desfiliação, e Rifkin de desconexão. Ser ameaçado de desconexão, de desengate – sabemos que a maioria se encontra nessa condição, de desplugamento efetivo da rede. O problema se agrava quando o direito de acesso às redes, como o diz Rifkin (e agora trata-se não só da rede no sentido estrito, tecnológico e informático, mas das redes de vida num sentido amplo) migra do âmbito social para o âmbito comercial. Em outras palavras : se antes a pertinência às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos dependia de critérios intrínsecos tais como tradições, direitos de passagem, relações de comunidade e trabalho, religião, sexo, cada vez mais esse acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis para uma grande maioria. O que se vê então é uma expropriação das redes de vida da maioria da população, através de mecanismos cuja inventividade e perversão parecem ilimitadas.

Mas não deveríamos deixar-nos embalar por um determinismo tão apocalíptico quanto complacente. Parafraseando Benjamin, seria preciso escovar esse presente a contrapelo, e examinar as novas possibilidades de reversão vital que se anunciam nesse contexto. Pois nada do que foi evocado acima pode ser imposto unilateralmente de cima para baixo, já que essa subjetividade vampirizada, essas redes de sentido expropriadas, esses territórios de existência comercializados, essas formas de vida visadas não constituem uma massa inerte e passiva à mercê do capital, mas um conjunto vivo de estratégias. A partir daí, seria preciso perguntar-se de que maneira, no interior dessa mega-máquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de se agregar, de trabalhar, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de auto-valorização. Num capitalismo conexionista, que funciona na base de projetos em rede, como se viabilizam outras redes que não as comandadas pelo capital, redes autônomas, que eventualmente cruzam, se descolam, infletem ou rivalizam com as redes dominantes ? Que possibilidade restam, nessa conjunção de plugagem global e exclusão maciça, de produzir territórios existenciais alternativos àqueles ofertados ou mediados pelo capital ? De que recursos dispõe uma pessoa ou um coletivo para afirmar um modo próprio de ocupar o espaço doméstico, de cadenciar o tempo comunitário, de mobilizar a memória coletiva, de produzir bens e conhecimento e fazê-los circular, de transitar por esferas consideradas invisíveis, de reinventar a corporeidade, de gerir a vizinhança e a solidariedade, de cuidar da infância ou da velhice, de lidar com o prazer ou a dor ? (5)

Mais radicalmente, impõe-se a pergunta : que possibilidades restam de criar laço, de tecer um território existencial e subjetivo na contramão da serialização e das reterritorializações propostas a cada minuto pela economia material e imaterial atual ? Como reverter o jogo entre a valorização crescente dos ativos intangíveis tais como inteligência, criatividade, afetividade, e a manipulação crescente e violenta da esfera subjetiva ? Como detectar modos de subjetivação emergentes, focos de enunciação coletiva, territórios existenciais, inteligências grupais que escapam aos parâmetros consensuais, às capturas do capital e que não ganharam ainda suficiente visibilidade no repertório de nossas cidades ?

Há alguns anos no Brasil eram visíveis configurações comunitárias diversas, ora mais ligadas à Igreja, ora ao Movimento dos Sem-Terra, ora às redes de tráfico, ou provenientes de movimentos reivindicatórios e estéticos diversos, como o hip-hop, ou modalidades de ‘inclusão às avessas’ proporcionado pelas gangues de periferia (6), mantendo com as redes hegemônicas graus de distância ou enlace diversos. Eu não saberia dizer o que está nascendo hoje nos centros urbanos brasileiros, muito menos nas demais cidades do planeta. Mas há um fenômeno que me intriga, entre outros. No contexto de um capitalismo cultural, que expropria e revende modos de vida, não haveria uma tendência crescente, por parte dos chamados excluídos, em usar a própria vida, na sua precariedade de subsistência, como um vetor de auto-valorização ? Quando um grupo de presidiários compõe e grava sua música, o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua singularidade, sua percepção, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de "morar" na prisão, de gesticular, de protestar, de rebelar-se – em suma, sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é disso que fizeram um vetor de existencialização, é essa vida que eles capitalizaram e que assim se auto-valorizou e produziu valor. É claro que num regime de entropia cultural essa "mercadoria" interessa, pela sua estranheza, aspereza, visceralidade, ainda que facilmente também ela possa ser transformada em mero exotismo étnico de consumo descartável. Mas a partir desse exemplo extremo e ambíguo, eu perguntaria, também à luz dos nômades de Kafka a quem me referi no início, se não precisaríamos de instrumentos muito esquisitos para avaliar a capacidade dos chamados ‘excluídos’ ou ‘desfiliados’ ou ‘desconectados’ de construirem territórios subjetivos a partir das próprias linhas de escape a que são impelidos, ou dos territórios de miséria a que foram relegados, ou da incandescência explosiva em que são capazes de transformar seus fiapos de vida em momentos de desespero coletivo.

Utilizando de maneira originalíssima textos de Gabriel Tarde, Maurizio Lazzarato debruçou-se recentemente sobre um feixe de questões correlatas (7), das quais reteríamos a seguinte: Que capacidade social de produzir o novo está disseminada por toda parte, sem estar essa capacidade subordinada aos ditames do capital, sem ser proveniente dele e nem depender de sua valorização ? A idéia de Tarde relida por Lazzarato, e que eu retomo nesse contexto de maneira excessivamente suscinta, é que todos produzem constantemente, mesmo aqueles que não estão vinculados ao processo produtivo. Produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. Cada variação, por minúscula que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e novas formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a subjetividade não é efeito ou superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência psíquica e política.

Nesse contexto, as forças vivas presentes por toda parte na rede social deixam de ser apenas reservas passivas à mercê de um capital insaciável, e passam a ser consideradas elas mesmas um capital, ensejando uma comunialidade de auto-valorização. Ao invés de serem apenas objeto de uma vampirização por parte do Império, são positividade imanente e expansiva que o Império se esforça em regular, modular, controlar. A potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, afetação recíproca, produção de laço, capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Uma economia imaterial que produz sobretudo informação, imagens, serviços, não pode basear-se na força física, no trabalho mecânico, na automatismo burro, na solidão compartimentada. São requisitados dos trabalhadores sua inteligência, sua imaginação, sua criatividade, sua conectividade, sua afetividade – toda uma dimensão subjetiva e extra-econômica antes relegada ao domínio exclusivamente pessoal e privado, no máximo artístico. Como o diz Toni Negri, agora é a alma do trabalhador que é posta a trabalhar, não mais o corpo, que apenas lhe serve de suporte. Por isso, quando trabalhamos nossa alma se cansa como um corpo, pois não há liberdade suficiente para a alma, assim como não há salário suficiente para o corpo. Em todo caso, que a alma trabalhe significa, nos termos que mencionávamos há pouco, que é a vitalidade cognitiva e afetiva que é solicitada e posta a trabalhar. O que se requer de cada um é sua força de invenção, e a força-invenção dos cérebros em rede se torna tendencialmente, na economia atual, a principal fonte do valor. É como se as máquinas, os meios de produção tivessem migrado para dentro da cabeça dos trabalhadores e virtualmente passassem a pertencer-lhes. Agora sua inteligência, sua ciência, sua imaginação, isto é, sua própria vida passaram a ser fonte de valor. A associação e cooperação entre uma pluralidade de cérebros prescinde, no limite, da mediação do capitalista, tão decisiva num regime fordista.

Podemos retomar nosso leitmotiv : todos e qualquer um, e não apenas os trabalhadores inseridos numa relação assalariada, detêm a força-invenção, cada cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode tornar-se vetor de valorização e de autovalorização. Assim, o que vem à tona com cada vez maior clareza é a biopotência do coletivo, a riqueza biopolítica da multidão. É esse corpo vital coletivo reconfigurado pela economia imaterial das últimas décadas que, nos seus poderes de afetar e de ser afetado e de constituir para si uma comunialidade expansiva, desenha as possibilidades de uma democracia biopolítica.

Duas palavrinhas ainda. Uma a respeito do termo biopolítica e outra a respeito do termo multidão. Biopolítico foi o termo forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, sobre a população enquanto massa global afetada por processos de conjunto. Um grupo de teóricos, majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida. A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo-sem-órgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico, aquém da divisão biológico/mecânico, individual/coletivo, humano/inumano. Assim, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza, se descola de sua acepção biológica para ganhar uma amplitude inesperada e ser, portanto, redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault : biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida. A biopolítica como poder sobre a vida toma a vida como um fato, natural, biológico, como zoè, ou como diz Agamben, como vida nua, como sobrevida. É o que vemos operando na manipulação genética, mas no limite também no modo como são tratados os prisioneiros da Al Qaeda em Guantánamo, ou os adolescentes infratores nas instituições de "reeducação" em São Paulo – e os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, não seriam a tentativa de reversão a partir desse ‘mínimo’ que lhes resta, o corpo nú ? (8). Em contrapartida, a biopolítica concebida como potência de variação de formas de vida equivale à biopotência da multidão, tal como referida acima.

Ainda uma palavra sobre a multidão. Tradicionalmente o termo é usado de maneira pejorativa, indicando um agregado indomável que cabe ao governante domar e dominar. Já o povo é concebido como um corpo público animado por uma vontade única. Com efeito, como o diz Paolo Virno (9), e nas condições contemporâneas isso é ainda mais visível, a multidão é plural, centrífuga, refratária à unidade política. Ela não assina pactos com o soberano, não delega a ele direitos, inclina-se a formas de democracia não representativa. Talvez ela seja regida por uma lei-esquiza, tal como os nômades de Kafka. Numa fórmula sugestiva, Virno ainda diz : a multidão deriva do Uno, o povo tende ao Uno. O que é esse Uno do qual a multidão deriva ? Para ir rápido, é o que Simondon chamou de realidade pré-individual (e que os pré-socráticos chamavam de a-peiron, Ilimitado), que Tarde referiu como virtualidade, que Marx designou por intelecto geral. Chamemo-lo de caldo biopolítico, esse magma material e imaterial, corpo-sem-órgãos que precede cada individuação – a potência ontológica comum. De qualquer modo, por menos que se saiba que desenho pode ter uma democracia biopolítica, sabemos ao menos que ela está nas antípodas do que Canetti definiu com sendo a lógica da massa, com sua composição homogênea e compacta, com sua direção única e liderança unitária. A multidão, na sua configuração acentrada e acéfala, no seu agenciamento esquizo, testemunha de um outro desejo e de uma outra subjetividade.

Eu concluo. Talvez Foucault continue tendo razão : hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploração (de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade, que prevalecem. Talvez a explosividade desse momento tenha a ver com a extraordinária superposição dessas três dimensões.

Volta a pergunta insistente : Como pensar as subjetividades em revolta ? Como mapear o sequestro social da vitalidade na desmesurada extensão do Império e na sua penetração ilimitada, tendo em vista as modalidades de controle cada vez mais sofisticadas a que ele recorre, sobretudo quando ele se realavanca na base do terrorismo generalizado e da militarizaçao do psiquismo mundial ? Mas como mapear igualmente as estratégias de reativação vital, de constituição de si, individual e coletiva, de cooperação e auto-valorização das forças sociais à margem do circuito formal da produção ? Como acompanhar as linhas de êxodo e desinvestimento ativo dos ‘excluídos’, evitando enclausurá-los no território da exclusão, a exemplo daqueles que os privam da dimensão subjetiva e das linhas de escape que eles secretam a cada passo ? Em que medida a virtualidade da multidão extrapola o sistema produtivo atual com suas vampirizações, os modelos de subjetivação que ele engendrou (por exemplo, o do trabalhador assalariado), os cálculos do poder que ele suscita, a captura imperial e suas linhas de comando ? Além de recusar o sistema de valores e de exploração hegemônicas, como cria ela suas próprias possibilidades irredutíveis, mesmo quando isso é feito a céu aberto, nem que o Imperador esteja por perto, à espreita, espiando para ver no que poderia ele capitalizar aquilo que dele escapa ?

Não sei o quanto as poucas páginas de Kafka sobre a Muralha da China refletem a paranóia do Império contemporâneo, com suas estratégias frustradas para proteger-se dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo contingente não pára de aumentar no coração da capital, numa vizinhança de intimidação crescente e num momento em que, como diria Kafka, sofre-se de enjôo marítimo mesmo em terra firme. Não sei o quanto os nômades de Kafka, na sua indiferença ostensiva em relação ao Império, não podem ajudar a pensar a lógica da multidão. Seja como for, em Kafka uma ironia fina vai solapando a solene consistência do Império. Há algo no funcionamento do Império que é puro disfuncionamento. Quando nas Conversas com Kafka, Janoush diz ao escritor checo que vivemos num mundo destruído, este responde : "Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado." Rachaduras e estalos que Kafka dá a ver, e que a situação contemporânea escancara. Talvez o desafio atual seja intensificar esses estalos e rachaduras a partir da biopotência da multidão. Afinal o poder, como diz Negri inspirado em Espinosa, é superstição, organização do medo : "Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo : este ponto … é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais exploradas ; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe ; pois tudo isso é a vida e não a morte." (10)

1. F. Kafka, A grande muralha da China, São Paulo, Europa América, 1976.
2. F. Kafka, "Uma folha antiga" (texto complementar ao A grande muralha da China), in Um médico rural, trad. Modesto Carone, São Paulo, Cia das Letras, 1999.
3. G. Deleuze e F. Guattari, Kafka – Por uma literatura menor, Rio de Janeiro, Imago, 1977.
4. Cf. Toni Negri e Michael Hardt, Empire, Paris, Exils Ed. 2000.
5. F. Guattari, "Restauração da Cidade Subjetiva", in Caosmose, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.
6. Glória Diógenes, Cartografias da cultura e da violência. Gangues, galeras e o movimento hip hop, São Paulo-Fortaleza, Secretaria da Cultura e do Desporto, 1998.
7. M. Lazzarato, Invention et travail dans la coopération entre cerveaux, Essai sur la théorie sociale de la différence de Gabriel Tarde, à paraître.
8. Maria Cristina Vicentin, Rebeliões da juventude, tese, inédito.
9. Paolo Virno, "Multitudes et principe d’individuation", in Multitudes n. 7, Paris, 2001.
10. T. Negri, Exílio, São Paulo, Iluminuras.
Fonte: Multitudes (http://multitudes.samizdat.net).

 

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POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE – Gilles Deleuze

 

SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE*

POST-SCRIPTUM

Gilles Deleuze

 1.HISTÓRICO 

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"), depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51, de Rosselini, pode exclamar, ao ver operários, "pensei estar vendo condenados…".  

Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania, cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (taxar mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser. 

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior ", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas. 

II. LÓGICA

 Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro.

Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do "salário por mérito" tenta a própria educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa. Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a   moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote – o rebanho e cada um dos animais – mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios).

Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se "dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou "bancos". É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes. 

É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a "alma" da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.

 III. PROGRAMA 

Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal. 

O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas "substitutivas", ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empresa" em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina "sem médico nem doente", que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria "dividual" a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.

 *DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226. 

Tradução de Peter Pál Pelbart 

Texto extraído do site Baile de Máscaras  (www.informarte.net/bailedemascaras)

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther, p.9

9. "O bom e velho tempo"

Entre as formas particulares do ardil do interesse humano, existe a que pode ser chamada de expediente do "velho e bom tempo passado". Ele consiste em dar uma ênfase especial ao que existe de obsoleto e fora de moda em nossas ações e ambiente. Provavelmente o culto americano da novidade produz uma espécie de ressentimento em todo aquele que não desfruta dos últimos benefícios da civilização tecnológica, ao passo que mesmo aqueles que vivem com a técnica moderna parecem se tornar cada vez mais frios com o avanço do progresso. Thomas propõe uma supercompensação a esse sentimento, enfatizando o caráter tradicional e genuíno do velho e familiar, vendo-os como algo que possui uma espécie de pátina que falta às novidades. Porém, assim, acontece que a própria pátina acaba vítima do padrão publicitário que promove as novidades, passando a fazer parte de um conhecido esquema da propaganda comercial. Na descrição da igreja de Thomas, por exemplo, glamouriza-se sua falta de glamour:

"De igreja temos muito pouco aqui. Nós não temos nenhuma janela de vidro colorido. Não temos grande quantidade de mármore e tijolos. Temos apenas uma velha e pequena igreja. A coisa toda não custa mais do que $ 3600. Mas, gente, mesmo fora daqui nos amamos Cristo. E estamos tentando servi-lo com o melhor de nossa capacidade. Se você está cansado da vida e pensa que Deus não existe mais, por que não vir até aqui esta noite … Acredite que você vai trazer sua velha Bíblia. Aquela velha Bíblia que você amava e foi sendo deixada de lado com o passar dos anos … Talvez ela pertença a seu velho pai, a sua mãe ou alguém mais. Vamos, traga-a, você vai, não ? (7/7/35)

Ratificando a condição de desabrigados daqueles que não podem ter boas coisas, Thomas capitaliza o ressentimento e frustração, ao interpretá-la como um modo de vida moralmente superior. Além disso, a denúncia, por ele feita, do "mármore e das janelas de vidro colorido", que são aqui uma espécie de sucedâneos religiosos do batom e maquiagem, se encaixa muito bem em sua postura ascética, anti-sensual e anti-hedonista, que ele aliás compartilha com praticamente todos os agitadores fascistas.

Detrás do ardil do interesse humano se esconde pois o ideal dos pobres tradicionalistas e anti-liberais que, a despeito de sua pobreza, se contentam com a vida tal como é e estão prontos a se sacrificar, para manter as condições que lhes fazem sofrer, em troca dos prazeres ambíguos que advêm da possibilidade de se sentirem de algum modo superiores aos ricos tanto quanto aos descontentes.

"Hoje eu vejo diante de mim uma grande multidão de pequenas mulheres, com as mão calejadas de esfregar os chão, de manejar os canos de lavagem. Eu vejo uma enorme hoste daquelas que jamais se puseram de joelhos perante o comunismo mundial. Eu vejo uma enorme hoste de feminilidade, de mulheres que estão fazendo economia, rezando, trabalhando para que o evangelho magnífico do filho de Deus continue a se espalhar pelo Mundo." (12/6/35)

Resumindo a atitude pessoal que Thomas simula, pode-se afirmar que ele sublinha o elemento pessoal, a similaridade entre ele e a audiência e a totalidade da sua esfera do interesses como uma forma de dar compensação emocional para as vidas frias e alienadas da maioria das pessoas e, em especial, dos inumeráveis indivíduos isolados pertencentes à classe média baixa [que formam sua audiência]. A proximidade e calor que caracterizam sua abordagem, e o rádio fortalece, ajudam-no a agarrá-los. O sucedâneo de sua solidão e isolamento não é pois solidariedade mas obediência. Thomas defende as formas de euforia obsoletas e quase pré-capitalistas contra as bem desenhadas condições da atualidade, visando preparar sua transformação em algo ainda mais adequado a elas, o estado totalitário. O individualismo de fachada por ele pregado, por isso, nada mais faz do que fortalecer a tendência com a qual se procura dispor do indivíduo através de sua incorporação a uma coletividade, onde ele pode se sentir abrigado mas, também, onde ele nada mais representa.

 

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther, p.8

8. "Interesse humano"

Thomas se dirige a uma audiência que tem de ser imaginada como sendo formada, em sua maioria, pelas pessoas da classe média baixa desapontada, em geral as mais velhas e solitárias, as mulheres em particular. É o que permite dar conta de uma de suas atitudes favoritas : o ardil do interesse humano, o fingimento deliberado de proximidade pessoal, calor e intimidade. Essa atitude já mostrou seu valor, por exemplo, através do tremendo apelo que revelam as personagens centrais dos seriados femininos. Thomas se apresenta como uma espécie de filósofo de cozinha, o sujeito humilde, simpático e bom, com coração de ouro, que, embora de modo algum viva confortavelmente, antes pensa em sua vizinha, trazendo-lhe conforto e dando-lhe algum tipo de ajuda. Apesar de o expediente do interesse humano empregado por Thomas se relacionar com sua audiência específica, deverá ser notado que ele também pode ser encontrado entre a grande maioria dos agitadores fascistas norte-americanos, como Phelps, embora quase não se faça presente na propaganda nazista. Aparentemente, a pressão da tecnologia e a cultura de negócio altamente centralizada deste país são tamanhas que os que vivem sob essa pressão pedem um "narcótico forte". Devido a sua falsa imediaticidade, que leva a voz distante para dentro da casa do pequeno grande homem, o rádio é um meio particularmente adequado para se lançar mão desse expediente.

Thomas parece ser capaz de falar com total facilidade sobre os assuntos mais íntimos de sua vida às pessoas mais estranhas, mesmo em se tratando de experiências em relação às quais, qualquer um que as tenha tido, seria totalmente reservado.

"Deus chamou-me; e não me chamou senão quando minha mãe estava em seu leito de morte; quando ela me pediu para ficar a seu lado e disse: "antes de você nascer eu o ofereci a Deus, o ofereci para ser ministro do Filho de Deus." (7/6/35)

Thomas sugere que essa experiência provocou uma completa mudança em sua vida, uma espécie de conversão augustiana. "Minha vida mudou imediatamente. Passei a odiar as coisas carnais que eu amava" (7/6/35). Embora seja fato que sua verdadeira família não seja de nenhum modo feliz, toda ela é chamada a servir às finalidades propagandísticas. Exemplo disso é quando ele menciona a doença de sua esposa e pede à comunidade para orar por ela, apesar de, um pouco mais tarde, esclarecer que, no final das contas, ele não está assim tão doente. Quando tem um acesso de tosse, Thomas a usa para dar um toque pessoal e aparecer como "[ser] humano", sem esquecer de sublinhar seu ilimitado espírito de sacrifício. "Se eu tossir hoje, sei que vocês me perdoarão e irão perceber que eu tenho trabalhado com grande dificuldade" (6/6/35). Do mesmo modo, finge possuir um interesse íntimo nos assuntos familiares do ouvinte. Sempre há pessoas doentes, descendo a ladeira, que sofrem sob condições humilhantes: a todos ele manifesta sua simpatia. "Eu espero que cada um de vocês tenha uma boa noite de descanso, que você recupere suas forças e esteja pronto para o grande dia de amanhã, tanto quanto foi grande o de hoje" (25/5/35). Thomas divide suas alegrias não menos do que suas dores, e sabe usar o orgulho que eles tem em seu filho mais novo. "[Gente !] Vamos deixar os homens e mulheres que não se deixam governar por sua emoções e que me escutam a essa hora da manhã olhar nos olhos azuis de seu bebê" (28/5/35)

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas, p.7

7. " O pequeno grande homem"

Deixando de lado as implicações inconscientes de maior alcance, verifica-se que o expediente do mensageiro pertence a uma estrutura de propaganda fascista muito mais geral. Ele indica uma constelação característica do conjunto das relações existentes entre o locutor e sua audiência. Representando a integração psicológica de sua audiência como um todo, o agitador é ao mesmo tempo fraco e forte; fraco, na medida em que cada membro da multidão é concebido como um ser capaz de identificá-lo como o líder que, por isso, não deve ser muito superior ao seus seguidores; forte, na medida em que representa o poderio de uma a coletividade que é alcançada através da unificação daqueles a quem ele se dirige. A imagem que ele exibe de si mesmo é a de um "pequeno grande homem" com um toque de incógnito, daquele que percorre os mesmos caminhos de toda a gente sem ser reconhecido mas que, enfim, se revela ser o salvador. Ele quer ao mesmo tempo identificação íntima e distância adulatória; por isso sua figura é propositalmente contraditória. Contando que as memórias sejam curtas, ele se baseia muito mais na divergência das disposições inconscientes, as quais ele apela de acordo com a ocasião, do que em convicções racionais realmente consistentes.

Existem duas grandes evidências específicas em relação ao expediente do pequeno grande homem. A primeira é a atitude thomasiana em relação ao dinheiro, ou a maneira como ele fala de suas preocupações financeiras. Até onde se sabe, Thomas não possui um esquema de sustentação financeira mais forte, apesar de o papel que ele desempenhou na campanha Merriam-Simclair (assim como outros fatores) sugira que ele não carece totalmente de importantes patrocinadores. Mesmo que seja verdade que ele tenha de se sustentar com base em pequenas contribuições, oferecidas pelos seus ouvintes, a maneira como ele fala sobre o dinheiro é extraordinária. A total falta de apreço pela dignidade libera-o para a toda a hora pedir dinheiro. Em seu caminho, não existem os escrúpulos religiosos que poderiam impedi-lo de misturar religião e finanças do modo que o faz, isto é, um modo que seria revoltante para qualquer pessoa religiosa. Todos as suas falas são temperadas com pedidos desavergonhados e chorosos de fundos. Alguém poderia dizer que ele faz o papel de pedinte. Este hábito era comum no período de ascensão do nacional socialismo, particularmente entre 1930 e 1933, quando o partido, por vezes atritado com seus patrocinadores, coletava dinheiro de rua em rua. Técnica idêntica também é aplicada por outros agitadores anti-semitas norte-americanos. Seria estreiteza de visão subestimar o valor psicológico dessa atitude mendicante. Geralmente as pessoas estão prontas a atribuir um alto valor às coisas pelas quais elas fazem sacrifícios financeiros. O dinheiro funciona como um vínculo, mas isso não explica o suficiente porque o líder arregimentador, em flagrante contraste com sua idéia de grandeza, joga com a condição de pedinte. Homens ambiciosos, como Thomas ou Phelps, por certo estão mais interessados em sua carreira política do que em seus modestos ganhos financeiros; e por certo sabem o que estão fazendo quando reiteram seu pedidos de cents e dólares. A tentativa de explicação deveria ser buscada no sentimento universal de insegurança das massas no presente estágio econômico. Excetuando-se os muito ricos, ninguém mais se sente senhor de sua fortuna econômica mas, ao contrário, como objeto de forças econômicas superiores muito grandes, que atuam cegamente. Cada um sente que, de algum modo, está a mercê da sociedade; o espectro do pedinte se agiganta por detrás do imaginário psicológico de cada indivíduo. O agitador fascista lida com essa disposição. Assumindo a atitude do pedinte, ele não só parece se colocar no mesmo caminho daqueles a quem ele se dirige: psicologicamente, ele toma para si a tarefa de pedir, de sofrer a humilhação do qual seu seguidor tem medo para, assim, redimi-lo simbolicamente da vergonha de ser um pedinte, ao fingir que assume essa função de modo vicário e santificado.

Em relação a Thomas, a postura de pedinte via de regra assume o aspecto de uma chantagem emocional, não muito diferente da técnica "Ablass" empregada pela Igreja Católica Romana nos primórdios da Era Burguesa. Indiretamente ao menos, ele sugere que, ajudando-o a pagar suas contas, se pode comprar o reinos dos céus.

"Conservamos um registro acurado de cada dólar que é dado a este movimento, por isso conhecemos exatamente cada penny que entra, de onde vem e para onde vai o dinheiro. Eu convoco o espírito divino para falar direto a seu coração, agora que você tem parte neste grande movimento que se espalha pela América. Relembre que nós precisamos pagar nossas contas, as contas da rádio e do escritório." (23/5/35)

Evidentemente, Thomas conta com a complicada atitude psicológica que a maioria das pessoas tem com o dinheiro – um vestígio da má consciência que elas sentem por tudo o que é seu – em suas tentativas de desviar "a parte de Deus" para seus próprios bolsos. Ele também apela ao espírito de barganha ao qual são sensíveis os americanos, ao sentimento de que tudo tem seu devido preço, de que tudo pode ser expresso em termos de seu equivalente financeiro. Convém notar que essa é a linha seguida pelos anunciantes de sopas, que esperam que as donas de casa comprem seu produto em troca das novelas que eles lhes patrocinam. Em Thomas essa idéia se combina com o expediente da infatigabilidade. "Eu estou sacrificando cada onça de minha energia cerebral nesta grande causa. Eu penso se poderia apelar a vocês, para que algumas pessoas me enviem U$ 10" (25/5/35). Ainda mais importante, porém, é o fato de que ele não só suplica por dinheiro mas também fala o tempo todo sobre suas dificuldades financeiras, e não se contém em descrever a si mesmo como alguém que se comprometeu com obrigações financeiras maiores do que as que realmente pode bancar. Por isso, ele precisa da ajuda de seus seguidores, que [parecem] capazes de extrair uma formidável satisfação da sua disponibilidade em ajudar o pequeno grande homem que possui as suas mesmas preocupações. Afinal, assim, eles podem até mesmo se considerar seus superiores financeiros, e seu reconhecimento de que não sabe agir com dinheiro pode servir de apelo aos instintos predatórios de seus seguidores.

A estratégia de propaganda thomasiana é pois uma mistura típica, em que se conjugam a pomposidade de um homem que tem de dirigir grandes negócios e o choro dos desapontados. A seguinte citação é característica de sua forma de se posicionar:

"Eu vejo uma crise desta missão no futuro. Minha secretária financeira apresentou ontem a fatura da tipografia, contratada durante o mês de maio, e que chega a U$ 800. Confesso que não sabia o quanto as contas acumularam. Descobri que naquele mês nos enviamos quase 100 mil cópias de todo o tipo de literatura. Durante o mês de maio as contas de impressão e correios nos custaram somente 20 dólares. Agora eu tenho de tomar uma decisão e escolher uma ou outra coisa. Eu tenho de fazer um apelo muito definido no sentido de que vocês me ajudem a reduzir o valor dessa conta, ou vou ter de parar de uma vez com o correio. Sem dúvida, eu não poderei mandar mais nada até que esta conta seja paga. Eu não posso deixar esta conta acumular. Eu não penso que esta seja a vontade de Deus. Eu a desconheço. Eu não havia percebido que a fatura de impressos de maio, a mais alta na história deste movimento, tinha chegado a tanto. É claro que nós agradecemos a Deus por isso. Isso indica a extensão deste movimento, mas também indica, meus queridos, que nós todos devemos nos ajoelhar esta manhã e fazer deste assunto o principal pedido da oração do dia "4/6/35).

Thomas, como se fosse um executivo, alude à sua secretaria financeira e a sua necessidade de U$ 800. Traduzido em termos psicológicos, isso pode significar: "Eu tenho mais poder do que dinheiro".

A mistura de grandeza e insignificância não se limita porém apenas às matérias monetárias. A atitude pessoal inteira de Thomas oscila entre as matérias práticas, menores e cotidianas e as proclamações grandiosas, reunidas sem qualquer processo lógico intermediário. As matérias são simplesmente identificadas umas com as outras, de modo que mesmo o mais pobre dos ouvintes pode se sentir elevado em seu status no campo das idéias. Nem Thomas nem os ouvintes se preocupam com a maneira como suas limitadas existências privadas se comunicam com as esferas da abstração social e religiosa. Aparece aqui um travesti de pensamento, retirado da velha tradição teológica, que é manipulado com a finalidade de tirar vantagem da sisudez bitolada e desiludida dos pobres, através da transposição de certas idéias altissonantes a seu imaginário […].

A técnica se aplica até mesmo ao conceito de vida eterna, ao ser concebida para o pequeno grande homem que tem medo de todo o tipo de doença. Com ela, a eternidade se torna uma espécie de seguro de vida:

"Agora, você sabe o que é a vida eterna ? Ela significa sempre e sempre. Significa uma vida que não tem fim. Significa uma vida onde não haverá morte. Significa uma vida onde não haverá doença. Significa uma vida onde não haverá sofrimento". (24/5/35)

Como essas promessas são totalmente irrealizáveis dentro da sociedade existente e, portanto, escapam a qualquer controle racional, Thomas torna-as tão pródigas o quanto são os devaneios da criança na qual ele deseja transformar seus ouvintes.

"A vida eterna significa que você e eu, cada homem e cada mulher que aceita o Filho do Deus vivo viverá dezenas de milhares de anos, dezenas de milhões de anos, dez bilhões de anos, dez trilhões de anos. E você pode multiplicar por dez todas essas grandezas. Significa no todo as épocas de todas as épocas. Isso não vale a pena ?" [7](24/5/35)

Lembremos que Himler, em um discurso famoso, predisse que o Terceiro Reich duraria de 20 a 30 mil anos. Vangloriar-se com trilhões de anos de vida e, então, perguntar humildemente se não vale a pena é a mais perfeita expressão da idéia do pequeno grande homem, da qual deseja se valer Thomas. Ele combina as idéias de trilhões de anos com as de um bom investimento. Ele é o corretor confiável, que dispõe da eternidade.

O expediente do "pequeno grande homem", a mistura de sublimidade e sobriedade, combina-se também com o expediente da infatigabilidade numa sentença que revela total desprezo para com qualquer senso de proporção:

"Roguem a Deus para que ponha no coração e mente desta grande audiência a idéia de que eles [?] não terão paz, noite e dia, até que todos mandem buscar essa literatura vital que nós expedimos sem encargos" (24/5/35).

Thomas estabeleceu uma relação psicológica imediata entre a paz de espírito e a demanda de seus pequenos panfletos. Somente sendo incansável ao pedir esta literatura vital tem-se alguma chance de se conseguir dormir.

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