ATITUDE SUSPEITA
Duas pequenas anedotas, a primeira bem conhecida ilustram a anomalia perversa que o modus operandi da perversão repressiva de hoje nos impõe.
A primeira é uma velha e batida anedota sobre a Rota:
Anedota sobre a ROTA
Algum tempo atrás hove um concurso para se ver qual era a polícia mais eficaz do mundo, na qual chegaram á final o FBI a INTERPOL e a Rota.
Só faltava uma prova, que era a prova da rapidez, onde um coelho era solto numa mata e quem fosse mais rápido a achar o coelho ganhava.
Primeiro foi o FBI.
Soltaram o coelho na mata e lá foram eles fizeram uma ligação a um satélite secreto, tiraram as coordenadas e apanharam o coelho em 30 minutos.
De pois foi a INTERPOL com os seus óculos de calor acharam o coelho em 20 minutos.
Depois foi a Rota no seu jipe pela mata fora. 10 minutos depois estavam de volta. perguntaram-lhes:
-Então já? E o coelho, acharam?
-Claro, tá na mala.
Quando abriram a mala estava lá um ouriço caxeiro cheio de sangue a berrar:
-SOU UM COELHO!SOU UM COELHO!!!!!!
A segunda é um dos primeiros contos publicados de Luís Fernando Veríssimo:
ATITUDE SUSPEITA
Sempre me intriga a notícia de que alguém foi preso “em atitude suspeita”. É uma frase cheia de significados. Existiriam atitudes inocentes e atitudes duvidosas diante da vida e das coisas e qualquer um de nós estaria sujeito a, distraidamente, assumir uma atitude que dá cadeia!
– Delegado, prendemos este cidadão em atitude suspeita.
– Ah, um daqueles, é? Como era a sua atitude?
Suspeita.
– Compreendo. Bom trabalho, rapazes. E o que é que ele alega?
– Diz que não estava fazendo nada e protestou contra a prisão.
– Hmm. Suspeitíssimo. Se fosse inocente não teria medo de vir dar explicações.
– Mas eu não tenho o que explicar! Sou inocente!
– É o que todos dizem, meu caro. A sua situação é preta. Temos ordem de limpar a cidade de pessoas em atitudes suspeitas.
– Mas eu estava só esperando o ônibus!
– Ele fingia que estava esperando um ônibus, delegado. Foi o que despertou a nossa suspeita.
– Ah! Aposto que não havia nem uma parada de ônibus por perto. Como é que ele explicou isso?
– Havia uma parada sim, delegado. O que confirmou a nossa suspeita. Ele obviamente escolheu uma parada de ônibus para fingir que esperava o ônibus sem despertar suspeita.
– E o cara-de-pau ainda se declara inocente! Quer dizer que passava ônibus, passava ônibus e ele ali fingindo que o próximo é que era o dele? A gente vê cada uma…
– Não senhor delegado. No primeiro ônibus que apareceu ele ia subir, mas nós agarramos ele primeiro.
– Era o meu ônibus, o ônibus que eu pego todos os dias para ir para casa! Sou inocente!
– É a segunda vez que o senhor se declara inocente, o que é muito suspeito. Se é mesmo inocente, por que insistir tanto que é?
– E se eu me declarar culpado, o senhor vai me considerar inocente?
– Claro que não. Nenhum inocente se declara culpado, mas todo culpado se declara inocente. Se o senhor é tão inocente assim, por que estava tentando fugir?
– Fugir, como?
– Fugir no ônibus. Quando foi preso.
– Mas eu não estava tentando fugir. Era o meu ônibus, o que eu tomo sempre!
– Ora, meu amigo. O senhor pensa que alguém aqui é criança? O senhor estava fingindo que esperava um ônibus, em atitude suspeita, quando suspeitou destes dois agentes da lei ao seu lado. Tentou fugir e…
– Foi isso mesmo. Isso mesmo! Tentei fugir deles.
– Ah, uma confissão!
– Porque eles estavam em atitude suspeita, como o delegado acaba de dizer.
– O quê? Pense bem no que o senhor está dizendo. O senhor acusa estes dois agentes da lei de estarem em atitude suspeita?
– Acuso. Estavam fingindo que esperavam um ônibus e na verdade estavam me vigiando. Suspeitei da atitude deles e tentei fugir!
– Delegado…
– Calem-se! A conversa agora é outra. Como é que vocês querem que o público nos respeite se nós também andamos por aí em atitude suspeita? Temos que dar o exemplo. O cidadão pode ir embora. Está solto. Quanto a vocês…
– Delegado, com todo o respeito, achamos que esta atitude, mandando soltar um suspeito que confessou estar em atitude suspeita é um pouco…
– Um pouco? Um pouco?
– Suspeita.
VERÌSSIMO, Luís Fernando. A Grande Mulher Nua. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.
Esta última anedota sobre a execução absurda de uma regra absurda, infelizmente, perdeu até sua base objetiva, pois o dito elemento suspeito, amparado em nossa realidade atual, seria eliminado sob a mira da polícia, específicamente, a força de execução institucional de pobres que hoje se soma à temível rede de apoio de gansos (delatores e amigos de policiais, vigilantes, etc) que participam da execução sumária de vítimas dos bairros pobres de São Paulo.
As execuções sumárias se concentram preferencialmente nas regiões da cidade com maior concentração de população sem renda e com baixa renda.
Compare-se os mapas:
Mapas da população sem renda:
http://www.nevusp.org/scripts/conteudos/mapafinal.html?mapa=45
e baixa renda:
http://www.nevusp.org/scripts/conteudos/mapafinal.html?mapa=49
E a progressão das execuções sumárias em São Paulo e seu crescimento coincidente com as mesmas regiões (além do fato do salto quantitativo no início da gestão de Alckmin):
1980 a 1985:
http://www.nevusp.org/scripts/conteudos/mapafinal.html?mapa=227
1986 a 1990:
http://www.nevusp.org/scripts/conteudos/mapafinal.html?mapa=228
1991 a 1995:
http://www.nevusp.org/scripts/conteudos/mapafinal.html?mapa=229
1996 a 2000:
http://www.nevusp.org/scripts/conteudos/mapafinal.html?mapa=230
A sobreposição destes mapas revela algo sobre o seu alvo, mas outra coisa interessante é notar a sua qualificação.
Entre os anos 70 e 80, do universo de 3523 vítimas 1496 teve ocorrências na polícia.
Destes, apenas 657 eram assaltantes (16%), 301 contraventores, 189 eram envolvidos com o tráfico e 131 com brigas de rua.
Apenas 157 eram envolvidos em crimes de morte e 24 em assalto seguido de morte.
57,4 % nunca praticou um crime, isto é, 2027 pessoas que nunca cometeram um crime foram mortas.
Entre 1990 e 1992 de um universo de 1039 vítimas fatais de ações da polícia, apenas 324 estavam envolvidas em processos da justiça, apenas 30 em crimes de morte.
473 dos criminosos foram não reincidentes
Em 22 anos de ações da polícia militar, em vez da justiça direta, da “pena de morte em serviço” (bandeira do deputado Conte Lopes) para alegados meliantes mais visados como o latrocínio e estupro, em seu lugar, o ódio da sociedade manifesto na corporação matou 877 operários e ajudantes de obra, moradores dos extremos pobres da cidade. Apesar deste elemento, justifica-se a ira destes agentes noutra direção: o pobre desarmado e indefeso.
Características raciais das vítimas:
Dentre 3994 vítimas identificadas, 2012 se compões de afro-descendentes e 1932 eram brancas. (Apesar do componente racial da própria polícia ser em certa medida de mais componentes negros percentualmente do que a própria população em geral.)
Comparação entre a composição racial do efetivo da Polícia Militar (1998) com a composição racial da população do Estado de São Paulo (1991).
Composição da PM paulista |
Num. de PMs | % de PMs | População do, por cor, em % |
Branca | 56988 | 69,7 | 71,4 |
Parda | 21665 | 26,5 | 21,7 |
Preta | 2613 | 3,1 | 3,6 |
Amarela | 380 | 0,4 | 1,3 |
Outras | 16 | 0,01 | |
Total | 81662 | 100 | 100 |
Composição da PM paulista Num. de PMs % de PMs População do, por cor, em %
Fonte: Sistema de Recursos Humanos da PM, 1998
Considerando que a maior parte da população era composta de brancos, inclusive entre criminosos, pode-se concluir por um óbvio elemento racista nas ações da ROTA.
Outro dado diz respeito à própria justiça institucional funcionar de modo perverso com a população negra, como, por exemplo, na questão dos flagrantes, onde são atingidos principalmente os réus negros (58,1%) comparativamente a réus brancos (46,0%), o que mostra a maior vigilância policial sobre a população negra. Este fator deve ser levado em conta, especialmente pelo fato da maior parte dos criminosos em todos os setores ser branco em qualquer modalidade criminal. (vide gráficos do outro anexo)
Alguns dos maiores matadores da ROTA
Roberto Lopes Martínes, inventor da alegação da resistência da vítima que a torna culpada da própria morte.41 assassinatos
Gilson Lopes, segundo lugar, entre 44 e 46 pessoas, inventor da técnica de remover os cadáveres para simular socorro, transferindo o registro do óbito para o hospital.
Roberval Conte Lopes terceiro lugar, 42 vítimas, 13 delas com antecedentes criminais, em geral, furto e roubo, sem nenhuma assassinato registrado em suas fichas, provavelmente, a mando, ou pago por comerciantes.
Wanderley Mascarenhas de Souza quinto lugar, 34 assassinatos antes de Carandiru (somente atuava em presídios e cadeias, inclusive no Carandiru).
Marco Antônio da Costa, sétimo lugar, 29 assassinatos
Everaldo Borges de Souza, décimo lugar, chamado especialmente para assassinar mulheres.
Pode-se perceber o detalhe, matador de ontem, defensor da pena de morte em serviço hoje.
Morte de Policiais em Ação:
Foram mortos em ação, de 1985 a 1991, 120 policiais (30% dos óbitos entre policiais) foram em tiroteios. 56 em situações de rixa e desavença fora de expediente, 11 suicídios e quatro policiais mortos em realização de assaltos, os policiais vítimas de tiroteio em serviço em 22 anos de corporação somam 42, isto é, 3% do número de vítimas da própria PM.
São 97 civis mortos para cada vítima da PM em alegados tiroteios, o que já se mostra improvável, inclusive se levarmos em consideração o baixo treinamento e capacidade técnica dos quadros da polícia (ela é especializada em assassinato de pobres inocentes).
Características dos assassinatos da ROTA:
• Remoção do cadáver simulando socorro anulando a perícia.
• Simulação de defesa do policial contra arma de fogo da vítima, tornando-a responsável pela própria morte.
• Execução sumária que que deixa alguns indícios (pólvora residual sob a pele que só é encontrada quando o disparo de dá a menos de 2 metros e marca de queimadura, chamada de “tatuagem”, marcas de pólvora chamadas “esfumaçamento” nas roupas da vítima e incidência dos disparos de cima para baixo, o que leva a concluir na direção de uma execução sumária ).
• Em alguns casos (ou a partir de um determinado momento) o cadáver é ocultado.
As características dos atuais assassinatos coincidem, mas possuem outras variáveis, como abandono de vítimas nos locais dos crimes e condução diretamente ao IML. Houve também tentativas de simulação de socorro (mas poucos dos casos descritos, onde podemos identificar a atuação da PM), respondidas negativamente pelo Conselho Regional de Medicina, mas não houve avaliação ainda de proximidade dos tiros, apenas do ângulo do disparo.
Mudança estrutural na esfera da execução sumária:
Fazendo parte da estrutura oficial, acobertado por uma possibilidade restrita de denúncia, estamos diante de um estado que prepara e seleciona parte da composição da força de segurança especialmente para punir os pobres. A maioria da corporação policial não está envolvida em crimes, exceto um: acobertar criminosos. A estrutura e o modo de organização da policia faz com que seus quadros se protejam de modo corporativo, mesmo que não participem nem concordem com as ações de seus colegas selecionados a partir da disposição para a ação ostensiva e excessiva em atuações rotineiras.
Historicamente se constituíram unidades específicas para o assassinato em série de civis, mas com o tempo, muda-se de unidade e de relação com a instituição. Em outros tempos, os PMs matadores competiam entre si, buscando a fama e o regozijo com a glória na imprensa, atribuindo o comando da corporação diversos prêmios e bonificações extravagantes como, por exemplo, o prêmio PMzito e a glamourização nos programas radiofônicos e, posteriormente, de televisão.
Hoje parece instituir-se uma nova estruturação. Como a polícia está acostumada a lidar com inocentes desarmados, sente-se naturalmente abalada frente a um inimigo qualquer que possua o mínimo de tática e estrutura, ou mesmo que saiba atirar. Anos seguidos de investimento em seus inúteis elementos militares ostensivos, além da militarização das consideradas principais polícias civis como o DENARC e o GOE fizeram com que a polícia se tornasse algo obsoleto no caminho ao controle de qualquer coisa que não seja a própria população indefesa.
Refém entre o crime organizado e a polícia, tudo parece à beira do caos nas periferias paulistanas para quem não pertence a alguma hierarquia de comando entre ambas as facções, a oficiosa e a do terceiro setor.
Sem qualquer capacidade investigativa, ou, tornada inútil quando de posse dela, a função policial vem ganhando cada vez mais um outro papel no seio da sociedade que se formou. Aberta a vias não institucionais de repressão, vemos também suas portas abertas a participação de autônomos como “gansos” e bolsistas policiais (os policiais temporários pagos pela assistência social) dispostos a sujar as mãos em gestos covardes que se tornam corajosos quando refletidos no espelho torto da mídia. O assassinato sumário como esporte de caçada de cabeças está aberto cada vez mais para a ala fascista da sociedade que deseja aproveitar qualquer momento de controvérsia para punir aquilo que identifica como o inimigo.
Os próprios policiais cada vez mais se organizam em redes para-institucionais para relações de vingança contra os fracos. Lembro de um relato sobre uma incursão fora do expediente de um grupo de policiais que aprece ilustrar esta situação.
Frente a uma ameaça de morte por parte de um morador da periferia descendente de nordestinos um policial junta seus colegas de ronda para uma incursão fora do expediente (lembremos que há lugares onde é comum ameaçar-se de morte mutuamente pelos menores motivos, sem qualquer possibilidade de realização, as mortes incidentais e pessoais geralmente dizem respeito a causas acidentais e espontâneas, pois reza um princípio na criminologia, que parece ter certa pertinência, de que se as pessoas que visam realizar um crime e dado o tempo, pensam mais sobre o assunto, as motivações necessárias para a realização deste crime se relativizam, especialmente na ameaça contra um policial militar, ou “MIKE” num âmbito passional).
Os policiais fazem algo como um grupo de proteção que “agiliza” as questões como ameaças de morte para que o grupo “se proteja” fora do expediente e resolva estas desavenças. Associa-se uma cumplicidade e uma responsabilidade corporativa a uma outra motivação pessoal.
Policiais oriundos das ruas guardam os seus códigos das ruas, mantendo como um elemento importante o “moral”, a imagem que ele tem frente aos outros como alguém duro, violento e, deste modo, respeitável frente aos outros que encontra (especialmente os da corporação) e mesmo ao microcosmo do local onde habita e “evita o crime” para os vizinhos. Associados neste conluio, podemos ver como opera esta sociabilidade.
No caso que descrevia em questão, o policial descrevia uma operação deste tipo entrando numa favela com seus comparsas, fora do expediente, para cobrar uma rixa disfarçada de ameaça de morte (do mesmo modo como justificam suas ações institucionais) e encontra na entrada do morro um morador do bairro, paralítico, que os observa.
A primeira atitude deles é espancá-lo até que caia no chão continuando até que os demais moradores vejam. A justificativa: eles devem mostrar que são mais duros para os moradores do que os elementos que eles foram buscar na comunidade. Realizada a incursão, não o encontram neste dia, mas infelizmente o encontraram em outro.
A grande concentração de execuções num período de tempo tão curto que hoje encontramos apinhando o IML reflete a incorporação de diversos grupos de extermínio reativados e agindo conjuntamente ao já problemático grupo institucional da polícia militar. Se antes a polícia civil apenas atuava como coadjuvante, hoje se encontra muito mais ativa em relação à organização de milícias com elementos dispostos a matar e a patrocinar assassinatos.
A polícia deve declinar de seu elemento militar em prol do policial para não perder o controle sobre a desinstitucionalização e a ameaça que os seus quadros envolvidos em atividades criminosas representam. Hoje há um lugar na sociedade para a execução de pessoas inocentes vitimadas pelo desejo fascista movido por um mecanismo midiático igualmente perverso que deve mudar para não entrarmos num colapso anti-revolucionário e crônico, dada a natureza, tanto da força institucional em ação quanto do grupo que às vezes contra ela se contrapõe (e aos poucos se acomoda).
O elemento civil da polícia deve mudar sua constituição institucional e ser completamente reformada, além de declinar deste momento onde opta pela militarização de um problema policial que envolve a perda de coordenação e inteligência.
Infelizmente, não encontro possibilidade institucional para esta mudança, pois envolveria uma força política muito grande dentro da polícia capaz de resistir a uma situação provável de confronto para uma moralização da corporação que conseguisse reunir elementos confiáveis dentro dela. Acredito que isto se oporia a um princípio oposto que é o da lealdade entre os seus quadros, muitas vezes ideologia, e quando não, muitas vezes ameaça e coação.
As duas outras tentativas de alterar a estrutura da polícia pela via institucional resultaram trágicas, seguidamente as gestões Montoro em São Paulo e Brizola no Rio, ambos geraram confrontos violentos da corporação com a sociedade e o governo. Estas tentativas merecem um devido estudo, mas é um registro onde há apenas incursões pioneiras e tateantes.
Rupturas dos laços entre os policiais e os respectivos comandos se deram em situações muito particulares como a ameaça de greve das policias civis e a rebelião da polícia militar do estado contra a obrigatoriedade do anti-doping para os policiais militares, situações que não apontam sequer a abertura a uma politização de seus quadros.
Fontes:
Entrevistas com policiais
Guaracy Mingardi, Tiras, Gansos e Trutas e Estado e Crime Organizado
Núcleo de Estudos da Violência
Luís Mir, Guerra Civil
Caco Barcellos, Rota 66
Fundação SEADE