NOSSO DIA DE TREINAMENTO – Texto sobre o filme Tropa de Elite

NOSSO DIA DE TREINAMENTO

Uma parte interessante do filme Tropa de Elite parece ser o treinamento
Com efeito, uma das principais questões de hoje é: Como, nos termos atuais se preparam aqueles que exercem as funções mais sombrias da sociedade e que a modernidade parecia ter extinguido: o carrasco, o torturador, o enganador profissional?

De outro modo, como a sociedade naturaliza o uso destas funções, plásticas em verdade, e passa a adaptar estes processos ao cotidiano de modo regular e planejado, mesmo quando aqueles que as exercem parecem não gostar dela ou mesmo sofrer durante seu exercício sem receber outros ganhos adicionais em relação ao seu uso que não “bens simbólicos de investidura” social ou participações menores. Haveria algo maior dentro destas questões ainda por descobrir?

Seriam as pessoas todas adaptativas socialmente, tendo como pressuposto as adaptações ao seu meio (e às específicas formas de estratificação material e simbólica) e sua determinação em meio a ele no entendimento de que este meio se desenvolve em relação a um “bem” qualquer como fim (acompanhando o desenvolvimento das forças produtivas ou da civilização), ou ainda, em nosso contexto, parte desta determinação onde o meio progressivamente muda deteriorando as estruturas de “amenização” que seriam fruto da negociação com as lutas entre estes sujeitos nunca plenamente determinados (como os direitos sociais no Wellfare State) e que hoje apenas servem de controle e ajustamento (como o lazer que se torna indústria cultural).

E, por fim, o que podemos pressupor como material humano dado nas pessoas? Podemos associar psicanálise e funcionalismo imaginando que as pessoas psiquicamente partem da solidariedade, da demanda de afeto, reconhecimento ou de dependência material do outro, de outro modo da solidariedade ou podemos imaginá-lo em meio à agressividade da luta de vida e morte?

ENTRANDO NA TROPA DE ELITE: O TREINAMENTO E SUAS REGRAS
Para entrar no BOPE deve-se ser “capaz de tudo”, i.e., ser capaz de negar todos os aspectos de humanidade.

Por princípio, podem-se negar quaisquer valores sociais para adentrar no coletivo, mesmo que o coletivo alegadamente se valha de sua defesa para justificar-se. Na teoria os valores se manteriam de modo crítico e relativo ainda que distanciados, mas na prática afirma-se o social como pior que o coletivo.
No treinamento o neófito deve dominar-se em meio à série de negações que colocam os treinadores para situar-se em meio ao estado de exceção que lá é instaurado.
Negar a si, por si mesmo, adentrando este espaço é o essencial para a seguir identificar-se com o coletivo e desejar afirmar este mesmo coletivo, negando-se para poder afirmá-lo, reconstituindo-se no espaço que o coletivo permite ao se identificar com ele.
Desejar afirmar o coletivo é assentir na negação de si e do “meio social” de onde se parte em nome do novo coletivo a que se quer integrar, para a seguir identificar-se com o coletivo negando o meio social de onde se parte.
 É necessário, para a atuação propagada de afirmação da violência, justificá-la a partir de contextos específicos que permitiriam torná-la aceitável, porém qualquer parece se tornar aceitável e, muitas vezes, o corpo é muito pouco para conseguir receber a violência justificada que avança sobre o corpo “em nome” do social e do coletivo, aliás, o perigo é de que qualquer coisa progressivamente se torne intolerável e passe a justificar a ação violenta por mecanismos reconhecidos.
 Este “em nome” deve ser entendido como a determinação da ordem simbólica, da Lei, mas ao situar-se acima dela pode suspendê-la, realizando os diversos ajustes entre a força policial militar e a lei que pode adequar as situações concretas à mesma. A lei que registra e julga a ação da polícia é a que ela própria legisla fora da constituição em um fórum separado, o direito militar e a lei marcial como se estivesse sempre em suspensão da lei como em confronto contra um ataque estrangeiro dos suspeitos. Dizia Clemenceau, que não é bem nenhum pacifista que “o direito militar está para o direito, assim como a música militar está para a música”.
 No caso de se acusar ágüem por algo é sempre pela transmissão hierárquica da culpa de um superior para o subalterno isolando-o, ou no contexto de alguém que é “Laranja” em alguma operação maior, mesmo algo posto pela instituição e ilegal, caso tenha conseqüências legais, estas serão sofridas não pela responsabilidade institucional, mas pelo subalterno mais exposto e menos envolvido. Esta parece ser a chave da passagem da polícia com leis hipócritas, hierarquia ilegítima, onde o soldado é supérfluo e a polícia eficiente que mata sem a lei e que cada membro incorpora o princípio de hierarquia  e respeito pelo superior mesmo que agindo sozinho e não questionando a missão recebida e o que possa acontecer para isto o treinamento se justifica.
 A diferença entre “Elite da tropa” e “Tropa de elite”, o livro e o filme, é uma mudança radical e abrupta, isto é, de uma crítica da corporação policial que se separa da sociedade, passa-se à construção de um mecanismo de áudio e vídeo aparentemente criado para a identificação com a violência que desde há um tempo está sendo vendida pela imprensa tentando gerar a identificação com a “Tropa de elite” que mata sem piedade. Uma mudança tão radical se dá entre “Elite da tropa” e “Tropa de Elite” quanto a que há entre o Mussolini pai, membro da segunda internacional e seu filho, criador do fascismo que o mataria. José Padilha, o diretor, aparece com um terrível canto de cisne que destruiria mil Estamiras, fuzilaria todo o público do ônibus 174 e se juntaria ao público do seriado 24 horas justificando o injusto em nome da justiça.
 Todo o processo de subjetivação e sua posterior naturalização passam à instrumentalização dos sujeitos, incorporando procedimentos automáticos de resposta que se insiram em dinâmicas complexas onde se responde ao mal que se sofre e se causa pela vinculação a um grupo, tornando-se o menos particular e individual possível em seu seio, ao apagar traços do meio social violentado que parece querer aparecer o tempo todo através da culpa interiorizada, fruto da cultura, ou das tradições compartilhadas, mesmo se ambiguamente expostas por entre a cultura de massa.
 Parece que os dilemas éticos dos protagonistas ao não serem resolvidos na sociedade levam à sua completa negação, o que, mesmo no contexto do seu desajuste psíquico, da solidão e do sofrimento, torna-se um procedimento automático, eficaz e pragmático em seu exercício ao ser identificado e administrado com a frieza e a técnica que o treinamento permite.

A história destas violências se incorpora no processo ao qual se adapta, e o meio agredido também absorve tal violência.
 
 Os novos filmes de aventura mal disfarçados de exposição da realidade , expõe o que se evita seguindo uma escada sangrenta em direção à representação de uma violência sublime que choque absolutamente. Uma busca pela catarse  (ou naturalização) através da representação do horror que em geral o expectador não representa permite o arrebatamento momentâneo que, após naturalizado, pode incitar à busca imediata de um novo “sublime”não representado até aquele instante, obrigando numa próxima investida a se provocar a sensibilidade contra a insensibilidade que o espectador é treinado para suportar no seu lugar físico estático em meio ao bombardeio incansável de imagens rápidas e violentas, que exigem uma presença de espírito acrescida para resistir-lhe  em meio ao Blitzkrieg de imagens que se pronunciam de forma “realista”  que chega a estetizar o sangue e a tortura numa trilha sonora que garante a colagem do que não se relacionaria pelo ritmo do rock e suas associações com o próprio tema do BOPE, o famigerado “funk proibidão” do BOPE (não o que inicia o filme, mas o que é utilizado pelo próprio BOPE) feito para assustar as pessoas em suas violentas incursões.

 Se este caminho, o da articulação estilizada das imagens funcionou para a identificação com o assaltante do ônibus 174 e com Estamira, assim como Lars Von Trier o fazia com suas personagens femininas (ex. Dançando no Escuro e a trilha sonora que a segue), agora serve para a identificação com o pólo oposto, o do atacante, transgressor e repressor, cuja aceitabilidade é inserida num fluxo intermitente de relações que dificultam o juízo, dando lugar à facilidade com identificações imediatas e de excitação de emoções mais primárias como a raiva que, mantida em fluxo no nexo de vingança, perde seu objeto (a pessoa que causou o mal) em meio à suas representações fetichistas, sejam pessoas que se tornaram objetos plenamente reificados, ao se tornarem obstáculo como que gelatinoso ou plástico, mas não irresistível no caminho do BOPE em sua técnica de invasão fluída pelos caminhos das habitações dos corpos contra o qual se projetam ou ainda os próprios corpos, que de tão reificados não permitem lá encontrar aquele que causou o mal, a não ser como signo rememorativo ou representação fetichista, no contexto em que aquilo que se manipula não é mais uma pessoa, como na situação de tortura  ou na plena redução do outro à vontade do agressor como no caso em que é baleada a face do traficante, incrivelmente branco, pelo aspirante a chefe do BOPE, incrivelmente negro, mesmo que fruto de um texto plausível de um homem branco e crítico da corporação que, vindo do BOPE, escreveu o livro que inspirou tal filme.
 A ira se excita pela vingança e fluiria de modo crescente sem se consumir em meio aos corpos abatidos mantendo a ligação entre diversos casos seguidos que vinculam cada vez mais sua raiva particular aos desígnios da instituição.
 A formação de um psicopata homicida aceitável  parece se adequar a uma invocação para a sua aceitação e, posteriormente, quando já reconhecidos os pares, a naturalização dos piores sentimentos das pessoas e a recusa dos sentimentos partilhados com a sociedade que interditassem tal impulso, exceto aqueles sentimentos que sirvam como instância de reconhecimento de sua vontade irresistível na busca de realização constante do gozo que não se consome.
 O lugar desta inversão é facilmente reconhecido no lugar do BOPE e nos EUA em protagonistas de filmes de ação mais recentes que assumem positivamente um lado maligno contra a maldade que combatem, desejando se reconhecer nesta ação, não como mocinhos, mas como combatentes maus do mal.

Narrador
 Que lugar há como crítica para esta ironia tão sutil como a que constrói o narrador personagem que pode deturpar os fatos para torná-lo aceitável, posto que é personagem e é onisciente. Ora, segundo a tradição crítica poderíamos encontrar um espaço possível de crítica na posição do narrador, desconstruindo a narrativa ao identificar e expor o fio condutor da trama com a perversidade verificável do mesmo. prontamente poderíamos nos deter no fato clássico na literatura de que é alguém prejudicando outros com um fim que em si é tão nobre quanto o daquele que ele derruba, destrói e engana para conseguir realizar os seus fins próprios, no caso da relação entre os personagens Capitão Nascimento e o aspirante André Matias.
 Mas a relação entre os dois mereceria ser tomada como constituintes do sentido de todo o filme levando-o à desconstruí-lo como identificação da violência para a idéia de uma crítica? Acredito que em meio de todos os elementos do filme esta instância fica algo apagada.
 Se tomarmos a possibilidade de crítica, neste caso, deveríamos possuir também outros elementos de reconhecimento, ou pistas, afinal, nos trechos onde se explica a trama, percebemos a forma mimética à do documentário, com voz  in off nos trechos onde não ocorrem ações violentas, ficando clara a referência ao filme “Notícias de uma Guerra Particular”, de outro modo, nas cenas em que se desenvolve o acompanhamento da formação do personagem do Capitão Nascimento, também não notamos nesta figura nenhum tipo de cinismo, como em outros personagens, ou mesmo o pressentimento de que a realização de uma tarefa dura como a sua fosse servir como desígnio de suas necessidades para além da missão cumprida em si mesma. Ora, para este caso, fica tal possibilidade comprometida pela própria posição do personagem de realizar ele próprio a lei na missão que lhe é designada, posto possuir um mandato de suspensão de qualquer norma legal em seu exercício.
 Esta posição o identifica à chamada Força de Lei, identidade entre transgressão e repressão, que funciona como um pequeno estado de sítio, conforme descrevem e concluem vários autores em contextos diferentes . Como exemplo, pensemos na demonstração de Walter Benjamin sobre o caso da polícia: 

“Do primeiro se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a restrição de não se proporem novos fins. O poder* da polícia se emancipou dessas duas condições. É um poder* instituinte do direito – cuja função característica não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito – e um poder* mantenedor do direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins do poder* policial seriam sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade o “direito” da polícia é o ponto em que o estado – ou por impotência ou devido às inter-relações imanentes a qualquer ordem judiciária – não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, “por questões de segurança”, a polícia intervém em inúmeros casos, em que não existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal ao longo de uma vida regulamentada por decretos. Ao contrário do direito que, na “decisão” fixada no espaço e no tempo, reconhece uma categoria metafísica, graças à qual ele faz jus à crítica, a observação da instituição da polícia não encontra nenhuma essência. Seu poder* é amorfo, como é amorfa sua aparição espectral, inatacável e onipresente na vida dos países civilizados. E, apesar de a polícia amiúde ter o mesmo aspecto em toda a parte, não se pode negar que seu espírito é menos arrasador na monarquia absoluta – onde ela representa o poder* do soberano, que reúne plenos poderes legislativos e executivos – do que nos regimes democráticos, onde sua existência, não sublimada por nenhuma relação desse tipo, testemunha a maior degenerescência imaginável do poder*. Todo poder* enquanto meio é, ou instituinte ou mantenedor de direito. Não reivindicando nenhum desses dois atributos, renuncia a qualquer validade. Portanto, qualquer poder* enquanto meio, mesmo no caso mais favorável, tem a ver com a problemática geral do direito.”        
                   
   Com isto quero fazer ver que a partir do exemplo do Capitão Nascimento a única contradição efetiva que se põe, isto é, se neste caso a instância de “poder instituinte” realiza algo em nome de si ou do universal que representa, a lei, negando-a, no entanto, para isso. Continuemos para tentar compreender o protocolo que faz isto acontecer.

Ressentimento:Transferir ou Partilhar a Dor

“É muito útil perguntarmo-nos se não temos imagens depreciativas ou degradantes de outros grupos em nossa própria cabeça e se, quando encontramos indivíduos desses grupos, não procuramos involuntariamente a prova de que é correto o quadro estereotipado do grupo que temos em mente”
NOBERT ELIAS

Alguém que não tem algo, em vez de buscar tê-lo, detêm-se e troca esta falta (e a possibilidade de ter este algo) pela retaliação da “humilhação” (não reconhecimento) que sente frente à alguém que tem esse algo que ele não tem.

 No filme Tropa de Elite quando um policial negro bate no rapaz consumidor de maconha numa marcha pela paz realiza-se a articulação da expiação de dois ressentimentos, um é o da pessoa negada socialmente que vincula seu ódio ao fato de se bater num hipócrita, isto é, aquele que faz valer seus interesses particulares em nome de um valor universal. No caso, a hipocrisia reflete uma relação com o reconhecimento social ou mesmo do valor simbólico de expiar sua “culpa de classe” e de seu envolvimento com o tráfico através da passeata pela paz abstrata que prega, pois que ele, em verdade, sustenta e mantém o que aparentemente parece negar até para si mesmo, aliviando a sua consciência (ainda que agindo racionalmente com relação a um valor que ele materialmente contradiz).
O outro ressentimento é o de alguém de uma classe mais abastada que poderá assentir com a violência sobre o rapaz, posto que se expia a culpa que ele próprio sente ao colocar como se aquele que apanha, ao evocar a culpa da violência às condições de dominação econômica à que são expostos os habitantes do morro carioca perigosamente próximo, fizesse uma impostação e mentisse, sendo, deste modo, o verdadeiro responsável segundo o nexo causal do filme, tanto pelo tráfico, posto que é consumidor de maconha (segundo o filme manteria o tráfico e não se ligaria à condições outras que não essa), quanto de sua culpa, ao atribuir hipocritamente a culpa a outro responsável, de classe mais abastada, que se vê como cidadão de bem que deseja segurança, mas que além disso tem medo do morro e deseja sua repressão (seu controle), mantendo com isso distanciada a culpabilidade do processo à dominação econômica.
O que ambos têm em comum é que ao se negar o hipócrita, nega-se o valor verdadeiro que ele porta  e que falsamente anuncia como se os realizasse, no caso, um germe de crítica social, a solidariedade para com quem sofre e a paz. Este processo de expiação permite compreender melhor como passamos muitas vezes pela negação de valores que seriam reconhecidamente universais num acordo comum de um outro valor universal.
Para tanto, desvia-se a atenção do local onde se dá a crítica que causa certo incômodo para a negação de uma outra característica reconhecidamente indesejável, ruim ou perversa, no caso, a hipocrisia, isto é, a falsa sinceridade com um protocolo coletivamente partilhado que evoca um tensionamento com valores narcísicos e a sensação de “traição” e falta para com a verdade anunciada no contexto do filme.
 O interessante a notar neste caso particular é o fato de que juntam-se num mesmo acordo duas classes separadas socialmente em relação a um mesmo objeto mutuamente negado, ainda que se vinculem de modo tergiversado, estes se relacionam por um tipo de unidade construída que possibilita uma cumplicidade perversa, num acordo entre classes, a princípio opostas como explorador e explorado, mas que se unem contra um mesmo valor rejeitado representado na figura de uma pessoa que a encarna, cuja negação do corpo realiza a negação de um mesmo valor por ambos os grupos sociais distintos.
Deste modo, gera-se um acordo de estratificação em que dois grupos opostos pela situação de classe se opõe como um mesmo estrato a um terceiro, identificado como o jovem que é tanto consumidor de maconha (para além da criminalização do consumo) quanto jovem de oposição idealista, com referência a um único valor, isto é, a crítica à violência que segundo o filme este mesmo gera como causa, além da questão racial que se sobrepõe, quando acusa-se ao jovem branco (o traficante e o consumidor) o mal que se exerce sobre a população negra da periferia, ficando alheio à crítica da situação econômica, como se este jovem também a encarnasse como elite branca, subtraindo a dominação econômica realizada por outros homens brancos que não os do filme ou a cúpula de governos.
Para as classes abastadas e em pânico, é necessário adaptarem-se à violência que causam, à exclusão e à necessidade da manifestação de seu lado mais cruel para manterem-se afastadas e coerentes consigo mesmo enquanto valor. O filme permite elementos para negar a empatia com a dor do outro, situando-se ao lado do profissional que causa o sofrimento por necessidade de sua ação racional contra um inimigo tão terrível que necessita suspender qualquer norma (o outro descartável que instiga o medo pela possibilidade de retaliação, posto que resiste ao controle total), mesmo que obedecendo a uma ordem sem sentido (simular uma paz inexistente para a visita do papa), permitindo, além disso, deslocar sua culpa, fruto do reconhecimento do lugar que ocupa na sociedade, atribuindo-a a um outro.
Que o fim de todo o percurso seja irracional, um evento espetacular num local inapropriado que envolve uma referência religiosa, isto se perde pelo fato de que sua execução racional torna-se um fim em si mesmo e poucos tomam como algo negativo o fato de que a sua realização envolva manipular pessoas ou fazê-las perder sua subjetividade em prol da realização eficiente de uma ação para uma corporação ao qual se vinculam, mesmo que algumas pessoas morram e outras sejam torturadas.
O fato que se destaca como valor é o mero fato de alguém ser capaz de realizar ações eficientemente como poucos poderiam (ser especial, imprescindível, não descartável como os seus inimigos) e não ter resistências internas ou externas capazes de detê-los, isto é, o fato de, nesta fantasmagoria, o automatismo acrítico, desde que capaz de realizar os desígnios indiferentes dados por um outro, seu superior, talvez faça ver e compensar o extremo inverso, isto é, o fato de que as pessoas ainda se sintam incapazes (inseguros) de adaptar-se às resistências que advém ao realizar o que sentem necessário contra os outros, deste modo, o filme ajuda no treinamento das pessoas em relação à capacidade de adaptar-se e acostumar com o sofrimento alheio. Lembrando do caso do romance Azul e Dura, seria o incômodo que aquele livro apresentava que este filme parece resolver ao eliminar um resto de empatia com o outro que possa trazer às elites e às “classes médias” protagonistas certo desconforto em seu cotidiano numa sociedade em conflito.
O exemplo do Capitão Nascimento, como um novo tipo de herói, e como alguém que consegue realizar eficientemente os fins a ele atribuídos, mostra que ser eficaz e bem enquadrado na sociedade prescinde de qualquer idéia de felicidade ou de bem estar, sendo necessário apenas apostar no sangue frio de realizar os fins em si mesmos das tarefas à que somos atribuídos na vida permitindo que tudo continue funcionando apesar do horror.
No entanto, existe também uma moeda de troca que permite entender a recepção do filme por outras classes que é ligada ao reconhecimento da humilhação sofrida, isto é, troca-se um valor por outro, a  promessa de felicidade pela reparação da humilhação social sofrida, deste modo se espera não que as pessoas deixem de sofrer (paradigma de solidariedade), mas que todos sofram como estes sofrem, como o princípio de uma reciprocidade da dor. A idéia é que haja a sinceridade de partilhar a dor e não a hipocrisia (ou esperança) de que a felicidade poderia se estender às demais pessoas.
Esta é a maior lição que o filme Tropa de Elite parece dar às pessoas, uma compilação sobre o ajustamento social contemporâneo, algo de grande vulto que parece pressentir um novo pacto social para o, quem sabe, futuro.

Conclusão

Para deixar um último problema, lembremos do caso da professora que em meio à incapacidade de preparar aulas para os alunos que nem as desejavam, nem as sentiam necessárias, atendeu ao pedido destes e optou pelo entretenimento, executando este mesmo filme de que tratamos em sala de aula na sua versão pirata (aliás, o filme pirata de melhor resolução de todos os tempos), o que foi denunciado pela mãe de um aluno à polícia e lhe trouxe problemas legais relativos aos direitos autorais do filme, o que também é sintomático, além do alarde nos jornais sobre o caso.
Sobre este ponto, evoco o seguinte trecho de um filósofo alemão que parece trazer um dos aspectos da crítica possível à situação, nos termos de algo como uma “crise da civilização”, crise em relação àquilo que cultivamos e que refletiria no que sentimos como fim do humanismo, deste mesmo princípio que anima os direitos humanos, representado pelo advento de nosso novo herói, o Capitão Nascimento, pois acredito que isso vá um pouco além da querela sobre o espírito que anima o filme ser ou não fascista .
 
“Assim como na Antigüidade o livro perdeu a luta contra os teatros, hoje a escola poderá ser vencida na batalha contra as forças indiretas de formação, a televisão, os filmes de violência e outras mídias desinibidoras, se não aparecer uma nova estrutura de cultivo capaz de amortecer estas estruturas. ”
PETER SLOTERDJINK

NOTAS

1 Como lembra João Bernardo na página 854 de Labirintos do Fascismo: “para o corpo de oficiais o único critério é o objectivo a atingir, e perante ele a vida de seus soldados não tem mais valor que a dos militares inimigos”.
2 Como bem lembrou um amigo a referência ao prof. Janine quando escreveu um texto que prenuncia tudo o mais que advém: “Dizer o Indizível”.
3 Pode-se pensar em  Tropa de Elite como Anti-tragédia que visa retirar o amor e a piedade da representação de um ato violento, como se fruto habitual da tekhné ou do hábito para que não se tenha nem terror, mas euforia e piedade, mas fúria.
4 Referência ao texto de Walter Benjamin: “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, disponível em: http://www.dorl.pcp.pt/images/SocialismoCientifico/texto_wbenjamim.pdf
Isto é, plano americano, no enquadramento e cortes num tipo de seqüência e articulação que as pessoas naturalizam e passam a tomar como representação do real. O corte e a montagem devem ser os mais próximos do cânon, que é a forma em que as pessoas são mais treinadas e podem ignorar mais facilmente sentindo apenas o fluir da seqüência, sem imaginar o aspecto da montagem, tamanho o grau de familiaridade com a articulação das imagens dos filmes de padrão Hollywoodiano. 
5 A tortura permite o acesso ao corpo, mas não à verdade, em outras palavras, como fugir do paradoxo lógico de que a pessoa dirá qualquer coisa para se livrar da tortura quando for suficientemente intensa, seja aplicando a dor no próprio corpo ou no corpo de outro com o qual se preocupe, seja relatado sob este recurso verdadeiro ou falso. Outro caso é o contexto da tortura na Polícia Civil cujo método investigativo é, em geral, tributário da tortura um tanto pró-forma que se realiza segundo um tipo de ritual, isto é, o ladrão ou traficante confessaria antecipadamente, mas, sem a tortura e, sabendo que será preso e que conviverá com outros presos ligados ao seu grupo, praticamente aceita recebê-la, pois, sem isto, não seria aceita sua delação pelos demais o que o tornaria passível de execução, permutando a morte pela mão dos pares pela tortura pela mão da polícia que torna sua falta aceitável. Neste contexto onde todos sabem do mecanismo, funciona quase como a expiação da falta em relação à solidariedade do grupo criminoso ao qual pertença, já em outros contextos a tortura aplicada é sempre punitiva, visando marcar a falta no próprio corpo do condenado impondo a marca absurda da lei ferida cujo corpo deve suportar, quase como a descrição de Kafka sobre a Colônia Penal.
6 “A força o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambigüidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é eu)”, CANDIDO, Antonio. “A Verdade da repressão” In: Teresina, etc. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. p.117.
7 Agamben e Derrida “Força de Lei” (no sentido de posição institucional que possibilita suspender a lei), ou da ação pura contra o enquadramento jurídico em Walter Benjamin em “Crítica da Violência, Crítica do Poder”, ou ainda a questão já levantada por Paulo Arantes e Antônio Cândido “A verdade da Repressão” da identidade para a figura do policial que exerce seu pequeno estado de sítio entre repressão e transgressão, ou ainda na relação Kant com Sade de Lacan: Le seminaire, Livre VII: L’éthique de la psychanalyse, Paris: Seuil, 1986, chap. VI.  e "Kant avec Sade," in Écrits, Paris: Seuil, 1966, p. 765-790.  e Adorno e Horkheimer, Excurso II Juliete ou Esclareciemtno e Moral.
8 IN: http://www.insrolux.org/textosmarxistas/walterbenjamim001.htm
Esta reflexão segue após a conversa com diversas pessoas que viram o filme, vindos de classes sociais diferentes.
9 Lembrando o aforismo de La Rochefouauld, “A Hipocrisia é uma homenagem que o vício faz à virtude”. O Hipócrita não realiza o valor, mas também não o nega, se o valor é real, não será o hipócrita a negá-lo.
10Para esta questão, o livre pensador João Bernardo, autor de Labirintos do Fascismo apresenta uma abordagem que segui para entender o problema onde não se entende o fascismo e o seu advento de modo mais rigoroso sem entender, não a composição e propagação de ideologias de pretensas elites que sempre se identificam com as categorias raciais e econômicas contra os outros grupos da sociedade como se estivessem acima destas, a questão principal é entender como se juntam grupos opostos economicamente, que se mantêm contrários e podem mesmo se odiar, mas que se mantém relacionados numa mesma estrutura social contra outro grupo social diferenciado por uma estratificação de ordem não puramente econômica. Mesmo que aqueles que sofram no sistema pretensamente denunciem seu sofrimento e mesmo que se revoltem e se organizem, a estrutura se mantém coesa se esta revolta se projete contra um outro e, principalmente, se forem respeitadas as instituições que garantem a estratificação social e a permanência deste acordo, Como uma revolta e um engajamento, mas pela ordem e, por isso, dentro da mesma.

Douglas Anfra

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