A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas, p. 6

6. O expediente do "mensageiro"

Existe uma última característica específica que Thomas aplica a si mesmo e que é especialmente valiosa de notar, na medida em que, embora abertamente contradiga a imagem do líder, é provável que, em sentido mais profundo, seja intrinsencamente conexa ao tipo de liderança fascista. Trata-se da idéia de que o locutor não é em si mesmo o salvador mas somente o seu mensageiro. Nas falas de Thomas, o esquema do mensageiro é tomado do arsenal teológico, do papel de São João Batista.

"João tinha bom senso o bastante para saber que ele não podia ocupar aquele lugar. Reconheceu que ele tinha seu próprio dom, mas não ia caminhar à luz da cruz de Jesus. Eis uma formidável verdade que você e eu precisamos reconhecer e obedecer. Se essa mensagem que estou dando hoje glorifica Martin Luther Thomas ou qualquer outro ser humano, está destinada ao fracasso. Mas se esta mensagem da grande Cruzada Cristã americana eleva o filho de Deus, o movimento será vocacionado para o sucesso. … Eu não sei quais são os talentos mundanos que você possui. Talvez você seja apenas um mensageiro. Hoje ser um mensageiro é a melhor coisa do mundo. Hoje, eu sou um mensageiro de Deus. Você também é" (23/5/35).

Nosso interesse em relação ao ponto não é a bem calculada confusão entre assuntos espirituais e mundanos – a cruz de Jesus e a Cruzada Cristã Americana. Preocupamo-nos com a idéia de mensageiro e a afirmação thomasiana de que ele é um profeta muito mais do que a resposta às expectativas que ele desperta. Isso pode parecer um aspecto acidental deste agitador em particular, tendo pouco em comum com a essência da propaganda fascista, onde se espera que o próprio líder trabalhe pela salvação. Porém não deveria ser ignorado que, nos primeiros dias dos nazismo, Hitler também empregou o expediente do mensageiro, chamando-se de mero tambor ("Ich bin nur der Trommler"). A razão óbvia desse expediente é, obviamente, que muitos líderes fascistas eram originalmente muito mais propagandistas do que verdadeiros políticos – o que é em si mesmo um aspecto significativo de nossa atual sociedade, onde as fronteiras entre o real e o propagandeado tem se tornado tão volúveis. Entretanto, existe aqui o envolvimento de uma questão psicossociológica mais profunda. Uma referência ocasional a seu pai feita por Thomas pode jogar alguma luz sobre a mesma : "Meu pai foi um homem muito cerebral. Desafortunadamente, seu filho não herdou nenhum de seus nervos cerebrais" (29/5/35). A humildade irônica e propagandística assim exposta mal esconde o antagonismo do locutor com seu pai (um antagonismo que aparece em outras passagens, particularmente quando Thomas contrasta seu fervor religioso com o suposto agnosticismo paterno). Mein Kampf não deixa dúvida de que Hitler também tinha severos conflitos práticos e psicológicos com seu pai. Dificilmente ousaríamos demais interpretando o expediente do mensageiro ou tambor como expressão do desejo de o locutor se apresentar como a imagem do filho, como o que ainda não é "o homem" em si mesmo [4]. Casualmente, a ênfase no contraste do conceito de Filho em oposição ao do Deus Pai é um dos principais pontos dos contorcionismos teológicos de Thomas. O Agitador que deseja que os seguidores o imitem e com ele se identifiquem apresenta-se não só como seu superior, como um homem forte, mas ao mesmo tempo como o contrário. É fraco como eles os são; é aquele que, antes de redimir, precisa ser redimido. Em resumo, é um filho sujeito a autoridade paterna, dependente e colocado a serviço de algo bem maior do que ele mesmo [5]. A entidade maior assim referida todavia não é mais o pai. Embora vaga e totalmente indefinida, todos os estímulos indicam que se trata da coletividade formada por todos os "filhos" reunidos pela organização fascista. Isto é uma coletividade em cujo poder se pretende que possa haver uma compensação psicológica pela fraqueza de cada elemento individual. A imagem do agitador fascista não é mais paternalista. O fato reflete o declínio da família como unidade econômica independente e auto-sustentada na presente fase de desenvolvimento social. Na medida em que o pai deixa de ser o mantenedor da vida familiar, também deixa de ser representar a agência social mais importante psicologicamente. Stalin possui algo do patriarcalismo oriental. Em Mussolini os aspectos patriarcais são levemente sugeridos. Em Hitler e sua imagem coletiva eles estão totalmente ausentes. Hitler representa antes de mais nada o filho rebelde e neuroticamente debilitado, que tem sucesso por causa dessa debilidade, que lhe permite confundir-se com seus iguais dentro do movimento. Líder fascista é o que adquire poder a medida em que "desiste de si mesmo" e se rende à coletividade: ele deriva sua autoridade dessa última, representando-a em todas as expressões simbólicas de sua responsabilidade. A tendência a salientar que ele não é o salvador, mas apenas o seu mensageiro ou representante, é um sinal disso. Apelando sobretudo a pessoas de classe médias com forte perfil cristão, Thomas é, como um todo, mais patriarcal do que os mais eficientes tipos de líderes fascistas. Convém notar porém que isso não o torna menos perigosos, já que suas qualificações específicas permitem que afete grupos sociais que de outro modo seria muito difícil de atingir através da propaganda [6]. Entretanto ele não pode dispensar totalmente o caráter filial do fascismo, como se pode ver em suas declarações de humildade, sua devoção a algo maior do que si mesmo e suas condição de mero mensageiro do que está por vir. O verdadeiro ardil psicológico do fascismo consiste no fato de que, através de certos mecanismos inconscientes, o mensageiro é transformado naquele a quem se supõe que ele anuncia

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas, p. 5

5. O expediente da "infatigabilidade"

Embora se refira à sua honestidade perseguida, à sua falta de egoísmo e a sua devoção às grandes causas, Thomas raras vezes esquece de sugerir sua infatigabilidade. Ele lê centenas de cartas por dia; gasta toda a sua energia. Seu cabelo clareou muito cedo devido a seus incansáveis esforços. Ele se sacrifica e trabalha de um modo incomparavelmente maior do que seus seguidores: "Deixem-me repetir que meu trabalho é uma obra de amor. Eu apenas peço que você se sacrifique comigo. Eu não peço que você trabalhe tão duro como eu" (22/5/35). A infatigabilidade, estranhamente porém, também é uma das principais características que ele atribui a seus inimigos. Os bolcheviques nunca estão cansados; trabalham na subversão dia e noite, minando a estrutura da sociedade americana enquanto a gente boa está dormindo. "Relembrem, os comunistas nunca saem de férias. O demônio reaparece a todo momento. Você e eu, porém, precisamos trabalhar noite e dia porque temos menos pão." (31/5/35). É clara a afinidade desse expediente com o bordão "Acorda Alemanha".

As implicações psicológicas são muitas e não totalmente consistentes. Acima de tudo, existe o desejo de "provocar", que pode ser visto como o arquétipo de toda a agressividade e é um dos impulsos centrais de que se vale o fascismo para real e ideologicamente perpetuar a necessidade de trabalhar duro e, assim, obter justificativa para a disciplina e opressão. A referida atitude, fundada em tendência socioeconômicas, permeia as últimas ramificações psicológicas do fascismo inteiro. Psicologicamente, não se permite que ninguém durma nesse regime: uma das torturas favoritas aplicadas pelos governos autoritários é interromper o sono de hora em hora, até que nervos arrebentem. A fúria fascista para com quem dorme – no sentido de que deixa as coisas em paz – reflete-se na ênfase dada pelo líder fascista a seu modo incansável de ser; ela ajuda a torná-lo exemplo para seus seguidores. A infatigabilidade é uma expressão psicológica do totalitarismo. Nenhum descanso deve ser dado até que tudo esteja medido, entendido e organizado; e como este objetivo jamais vai ser alcançado, é necessário o esforço incansável de cada militante [2].

Embora a infatigabilidade seja destacada, o agitador todavia não deseja provocar um verdadeiro despertar, uma atitude lúcida e consciente entre seus seguidores. Para ser exato, deseja-os ativos e prontos para fazer coisas, mas desde que sob um tipo de feitiço. Existe um elemento de verdade no comentado "hipnotismo de massa" promovido pelo fascismo. Apesar dessa referência muitas vezes subestimar o elemento altamente racional dos movimentos de massa fascistas, isto é, a esperança de ganhos materiais e de melhoramento no status social, pode-se endossá-la em grande parte: a atividade esperada pela propaganda fascista é a de um hipnotizado, antes que a de indivíduos conscientes e responsáveis. No caso, por exemplo, a insistência na infatigabilidade funciona com uma espécie de narcótico. Exatamente porque se espera que o seguidor adormeça e aja enquanto estiver adormecido, conta-se a ele, um sem número de vezes, que ele deve estar acordado e que ele não deve dormir. A relação entre cair no sono e ser incansável é pois altamente ambivalente, e os agitadores dela se alimentam. Aquele que está prestes a cair no sono e ouve que tem de ser incansável e que é incansável, pode oferecer muito menos resistência à vontade de seu líder do que o faria de outra maneira. Assim, ele pode ser levado a crer que está vacinado contra o próprio contágio que o ameaça.

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas, p.4

4. O expediente do "inocente perseguido".

A seleção de qualidades especiais que o locutor direta ou indiretamente reclama possuir assume significado somente em relação aquelas conspicuamente ausentes. Além de sugerir seus méritos como líder, ele sublinha, por exemplo, sua honestidade e integridade, seguindo assim os velhos padrões da propaganda eleitoral. Entretanto jamais se refere aos recursos particulares de que dispõe para fazer o trabalho mal-definido a que se propõe. Nada é dito de sua formação profissional, perfil político, erudição ou aspecto pessoal que o possa qualificar como líder político. Ao invés, satisfaz-se com vagas referências ao chamado de Deus. A propaganda pessoal e a vaguidade sobre si mesmo configuram um sentido específico. Aparte a possibilidade de calcular a disseminada aversão ao político profissional e talvez a qualquer tipo de especialista, um sentimento baseado na resistência enraizada e inconsciente à divisão do trabalho vigente, Thomas emprega a vaguidade de sua própria imagem como uma câmara de projeção de quaisquer fantasias da audiência. Ele se exibe como uma espécie de quadro vazio, que pode ser preenchido pelas mais contraditórias concepções por parte dos ouvintes. Ele pode ser imaginado por eles como um clérigo humano e benevolente ou um soldado negligente, como um ser humano altamente emocional ou um homem tarimbado na vida prática, como um observador perspicaz que sabe tudo das estórias de bastidores e como uma alma pura que prega no deserto. A vaguidade sobre sua própria personalidade é um meio de integração correlato à vaguidade de seus objetivos políticos. Ambas servem para manter reunidos os diferentes tipos de ouvintes que, quanto menos sabem exatamente quem ele é e o que ele representa, mais cegamente estão dispostos a segui-lo. Determinado abstracionismo, mesclado com umas poucas referências concretas à vida cotidiana, é uma das caraterísticas-padrão do agitador fascista.

Existem, porém, alguns traços específicos que ocorrem repetidas vezes. Em primeiro, a reiteração de sua própria inocência. Ele não é apenas um personagem irretocável e privado de egoísmo. Devido às suas elevadas qualidades morais, ele está sujeito à constante perseguição, às ameaças e conspirações de seus inimigos. Thomas várias vezes chega ao ponto de dizer que ele pode ser envenenado a qualquer momento ou, então, que sua igreja (que, a propósito, é sua propriedade privada) pode ser incendiada. "As pessoas escreverão todo o tipo de coisa. Contra mim elas escrevem tudo. Escrevem que vão me matar" (22/5/35). Outros agitadores fascistas da costa oeste, como [George] A. Phelps, também fazem uso do expediente do inocente perseguido, desenvolvido pelos nazistas. Caracteristicamente, os últimos chamavam sua guarda de elite mais agressiva e da qual os membros da Gestapo são recrutados de SS, Schtzstaffel, isto é, "corpos de proteção". O expediente do inocente perseguido serve a um duplo propósito. Em primeiro lugar, ele permite que se interprete as ameaças ao líder como ameaças a todos e, ainda, que se racionalize a agressividade, convertendo-a em autodefesa. "Ouçam cristãos, vocês se lembram do que eu disse: se eles me perseguirem, vão perseguir vocês" (13/7/35). O exemplo mais saliente desse truque se encontra na desculpa global do hitlerismo, referido como um "mecanismo de auto-defesa" pelo Padre [Charles Edward] Coughlin. Foi tomado de empréstimo da alta política. Desde que César atacou os gauleses semi-selvagens com seu exército altamente treinado e explicou sua guerra de conquista como resultado de medidas de proteção absolutamente necessárias, a agressão militar tem sido chamada de defesa. Afinado intimamente com todos os padrões de conduta imperialistas, o fascismo foi o primeiro a adaptar esse expediente aos objetivos da política interna e até mesmo à construção ideológica destinada à ação individual. Há, porém, uma profunda implicação psicológica neste mecanismo. Espera-se que sirva de estímulo para a violência, não que seja levado a sério.

A psicanálise mostrou como as tendências sádicas e agressivas, para as quais apela a propaganda fascista, não diferenciam claramente entre vítima e agressor: psicologicamente, ambas as noções são, até certo ponto, intercambiáveis, dado que ambas remontam a uma fase de desenvolvimento em que a distinção entre sujeito e objeto, ego e mundo exterior, ainda não está claramente estabelecida. Esta ambivalência é evidenciada ainda mais observando o amplo apelo que tem o conceito de auto-sacrifício na propaganda fascista. Em última análise, a conversibilidade dos conceitos torna possível culpar a vítima em foco pelo crime que se deseja cometer. Através da projeção inconsciente, faz-se com que eventos que existem apenas na imaginação se tornem reais. O exemplo mais eloqüente desse mecanismo é, claro, o incêndio do Reichstag. Na Alemanha, o expediente do inocente perseguido sempre foi usado com certo cinismo e, como tal, foi recebido pela sociedade. Por exemplo, podemos citar a satisfação com as inumeráveis piadas do tipo "mascate judeu morde cão de pastoreio ariano". É bastante provável que o mesmo expediente esteja sendo aplicado do mesmo modo no cenário americano.

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas – T.W. Adorno, p. 3

3. O expediente da "liberação emocional"

A individualidade espontânea e não-manipulada que o locutor simula é sublinhada por um padrão de conduta particular, que ele não só exibe mas recomenda a seus ouvintes. O emocionalismo consciente e enfático é parte de sua técnica. Em várias ocasiões ele repete que "quase chorou" ao receber cinco centavos como ajuda de uma pobre e velha viúva. Embora toda a construção de sua pessoa o vise como um líder, ele conspicuamente rejeita qualquer atitude de dignidade. Precisamente este abandono da dignidade parece ser um dos mais efetivos estímulos da propaganda fascista. Hitler mesmo sempre foi propenso a explosões cheias de pompa e histeria: uma de suas frases favoritas era "Eu preferiria atirar em mim mesmo a …" Nas falas de Thomas, o expediente da liberação emocional é derivado de sua postura religiosa, de sua tendência evangélica e fundamentalista, oposta ao presbiterianismo oficial.

"Vocês sabem como agradeço a Deus por eu ter aberto meu coração nestes três últimos anos. Vocês sabem como isso é uma coisa formidável para um presbiteriano, criado para suprimir as manifestações exteriores de seu coração . Escutem, presbiterianos, episcopais e todas as escolas de estoicismo: soltem seu coração ! Oh, eu sei o quanto é difícil. Vocês sentem como eu o senti. Vocês tem medo do fanatismo [1]. Existe porém um lugar certo para a expressão do seu amor por Deus. Vocês não precisam ser fanáticos. Relembrem do que nos disse Santo Agostinho:: ‘Se você soltar seu coração, você caminhará para Deus’. Bata um pouco de palmas. Relembre o Velho testamento, relembre onde ele diz que as árvores bateram palmas para Sua alegria. A natureza inteira louva o criador ! Nenhum ser humano vai ver de novo o desabrochar sob o sol daquela flor maravilhosa. Animal algum jamais vai sequer percebe-la,, pois ela está louvando e sorrindo para Deus. Toda a Terra é plena em glória. Os profetas proclamaram bem alto que a terra se enche de glória para o Senhor. Não é pois maravilhoso conhecer a Deus ? É maravilhoso conhecer o Cristo." (9/7/35)

Em passagens como essa, Thomas sem querer revela suas verdadeiras intenções: seu emocionalismo serve de modelo para as condutas que ele deseja ver imitadas e desenvolvidas por seus ouvintes. Ele deseja que eles gritem, gesticulem, liberem seus sentimentos. Eles não deveriam se comportar tão bem e ser tão civilizados. Abrigado sob o manto do êxtase cristão, existe pois o encorajamento do paganismo, da liberação orgiástica dos impulsos emocionais e da regressão à natureza informe, que tão bem funcionou na propaganda nazista. Logo que se põe abaixo as defesas contra o choro e a autocomiseração, pode-se bem expressar os sentimentos reprimidos de ódio e fúria. A movimentação religiosa dos fanáticos pode ser consumada no pogrom. Ademais, quanto mais o locutor encoraja os ouvintes a derrubarem as barreiras do autocontrole, mais facilmente eles deixam se sujeitar a sua própria vontade em favor da do locutor e podem seguir cegamente para onde ele deseje que eles se dirijam.

Observa-se com freqüência que o fascismo se alimenta da falta de gratificação emocional existente na sociedade industrial e que ele dá ao povo a satisfação irracional que lhe é negada pelas condições econômicas e sociais vigentes. O expediente da liberação emocional corrobora essa postulação. O conceito todavia tem de ser qualificado em alguns aspectos para se encaixar na realidade. Em primeiro lugar, realidade e ideologia não devem ser confundidos. As satisfações irracionais oferecidas pelo fascismo são em si mesmas planejadas e entregues de uma forma totalmente racional. A manipulação que aí tem lugar é uma espécie de técnica psicológica, tomada emprestada da fábrica moderna e aplicada à toda a população. Trata-se de uma irracionalidade extremamente pragmática e é altamente característico que Thomas e os agitadores alemães a anunciem como se fosse uma espécie de pílula que torna a vida mais agradável. Conservar o ponto em mente é importante na medida em que o aspecto racional da propaganda fascista irracional (mas também, por exemplo, dos aspectos escapistas da cultura de massa moderna) é tão óbvio que ele pode produzir alguma resistência contra a permanente falta de sinceridade da propaganda. Adicionalmente essa resistência poderia ser usada pela contrapropaganda. A contrapropaganda poderia apontar a sobriedade ardilosa que se esconde detrás das palavras embriagadas. Atacá-las dessa forma poderia colocar os fascistas diante de um dilema inescapável, porque a propaganda fascista não pode evitar o racionalismo existente dentro da esfera da liberação emocional. O agitador fascista precisa dar conta das pessoas como elas são, sensatas e práticas, e por isso só consegue levá-las a tomar atitudes irracionais se logra fazê-las se sentir "sensíveis" de um modo compatível com as exigências de sua economia psicológica.

Em segundo lugar, as satisfações irracionais manipuladas são espúrias: manipulação é algo intrinsecamente oposto àquela liberação que ela põe em movimento. Ademais, a propaganda fascistas não pode tocar nas raízes da frustração emocional existente em nossa sociedade por causa de suas próprias finalidades, ao encorajar o emocionalismo pelas palavras. Não há nenhum prazer ou alegria reais mas só a liberação do sentimento de infelicidade e a consecução de uma satisfação regressiva com a imersão do eu em uma comunidade. Em resumo, a liberação emocional proposta pelo fascismo é apenas um sucedâneo da realização de desejos. O exemplo mais drástico disso é o expediente que consiste em aplicar um entusiástico "é maravilhoso" a tudo e, assim, à nada. Quando Thomas reitera as maravilhas do clima, o florejar e a beleza da paisagem do sul da Califórnia lança mão de um truque que não é diferente daquele do evangelista negro, já que as belezas que ele louva e oferece como objeto de emoção cega pouco tem a ver com o mundo social de seus ouvintes e ainda menos com os seus próprios objetivos. Pode-se suspeitar que essas referências aos recursos emotivos da natureza são parte de um esquema destinado a distrair as pessoas de seus reais problemas.

Em terceiro, a mobilização do emocionalismo não é um expediente imposto desde cima aos ouvintes. Pressupõe certa disposição entre eles. Por isso, a astúcia do agitador bem sucedido consiste sobretudo em sondar as disposições que ele pode usar de isca para atingir seus objetivos. O fundamento do desejo de escapar a rigidez dos controles psicológicos internos tem de existir nos próprios ouvintes e por isso é preciso desenvolver uma idéia adequada dessa base bastante sólida. A criação dessa idéia resulta porém do mesmo processo de racionalização do qual as pessoas procuram escapar. As pessoas desejam "ceder", deixar de ser indivíduos, no sentido tradicional de uma unidade autosustentada e autocontrolada, porque isso é necessário. As referências negativas ao estoicismo e aos controles internos requeridos pelas ordens tradicionais feitas por Thomas não são acidentais. O estoicismo é parte da atitude do indivíduo independente da livre competição existente à época liberal. A capacidade de controlar a si mesmo reflete a capacidade de competir com os demais e determinar economicamente e também psicologicamente seu próprio destino. Atualmente, quando essa independência começa mais e mais a desaparecer, também começa a desaparecer o autocontrole. As forças sociais às quais cada indivíduo está sujeito são tamanhas que ele tem de ceder não apenas economicamente, tornando-se um empregado (ao invés de continuar sendo uma unidade social auto-sustentável) mas também psicologicamente, devido à uma pressão social e cultural que ele só consegue suportar convertendo-a em sua própria causa. Ele precisa se comportar de maneira conformista e adequada, mais do que como personalidade integrada e unificada. O indivíduo se torna pois mais duro, na medida em que é ensinado a pensar mais e mais pragmaticamente mas, também, mais maleável, na medida em que o impacto do mundo social como um todo e da tecnologia industrial em particular enfraquece sua resistência. Quanto mais ele deixa de ser um ego, um eu, menos ele deseja e é capaz de satisfazer as exigências de autocontrole. A histeria é a expressão extrema de uma configuração psicológica que se espalha rapidamente pelo todo da sociedade e que, como tal, é o objeto do mecanismo da liberação emocional. O estoicismo é motivo de escárnio porque os indivíduos não podem ou não querem mais ser estóicos; isto é, porque a compensação final para o controle interno da vida emocional – uma existência estabelecida firmemente em si mesma e segura – não prevalece mais. Assim, o efeito do expediente da liberação emocional não é tanto evidenciar as reações às quais ele se refere mas, antes fazê-las socialmente aceitáveis e levantar o que resta dos velhos tabus para que as pessoas possam sentir que fazem a coisa certa ao abandonar seus autocontroles. Este mecanismo de afirmação social de atitudes que já operam no interior do sujeito, mas que eles sentem estar em descompasso com as regras que lhes foram ensinadas durante a juventude, é um elemento intrínseco a toda propaganda fascista e anti-semita.

[1] Hitler falou várias vezes sobre seu "amor fanático pela Alemanha".

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas p.2 – T.W.Adorno –

2. "Lobo solitário"

Em primeiríssimo lugar há o ardil do lobo solitário, tomado do arsenal de Hitler, que sempre o usou para se vangloriar dos sete solitários e heróicos companheiros de partido que começaram o movimento e do fato de que os outros controlavam a imprensa e o rádio – que esses possuíam tudo, e ele nada. Thomas modifica-o ligeiramente ao insistir de maneira muito específica que ele não tem o dinheiro dos políticos por trás. Inumeráveis vezes, ele usa variações da proposição : "Eu não tenho patrocinadores, e nenhum político jamais pôs um dólar neste movimento". Thomas o faz por trabalhar com a desconfiança americana no político profissional, a quem se acusa de auferir lucros privados explorando os negócios públicos. O raciocínio é o seguinte: se ele ataca com tamanha violência a rapina, muito poucos acreditarão ser ele um saqueador. Casualmente, aparece aqui uma das mais notáveis características dos propagandistas fascistas e anti-semitas: eles culpam suas vítimas de uma maneira quase compulsória pelas coisas que eles mesmos fazem ou esperam fazer. A contrapropaganda deveria assinalar concretamente que eles estão fazendo as mesmas coisas sobre as quais eles desatam sua fúria. Praticamente não há categoria de propaganda fascista a qual essa regra não se aplique. É através desse padrão que o mecanismo psicológico da projeção se deixa sentir na ideologia fascista.

Deixando de lado o trabalho feito em cima da própria coragem e integridade, com que busca ganhar a confiança daqueles que pensam que eles estão derrotados e sozinhos, existe um cálculo mais profundo na figura do "lobo solitário": ela atenua o medo universal e sempre crescente da manipulação. Trata-se de um medo que cresce em meio à [chamada] resistência às vendas e termina na crença semiconsciente de que nenhuma palavra dita em público tem significado objetivo ou mesmo representa a convicção do privada do comunicador. Pensa-se na palavra como propaganda em sentido amplo e algo que serve a alguma agência poderosa, responsável pelo pagamento de todas as declarações feitas publicamente. A razão para essa atitude repousa, é claro, na centralização e monopolização econômica dos canais de comunicação. A postulação de que "nenhum dinheiro de político está atrás de mim" fortalece a pretensão de que as declarações feitas são espontâneas, ainda não são dirigidas por organizações monopolísticas. Entretanto, essa atitude para com a manipulação e, portanto, a função psicológica deste expediente não devem ser supersimplificadas. Nas presentes condições sociais, as pessoas temem a manipulação mas também, e ao revés, anseiam por ela, da mesma forma como anseiam pela sua condução por parte daqueles que elas percebem serem fortes e capazes de protegê-las. A natureza hierárquica de nossa organização econômica fez crescer o desejo de ser manipulado passivamente. Além disso, a fronteira entre os pronunciamentos objetivos e os esquemas propagandísticos começam a se tornar cada vez mais fluidos. Quanto maior o poder concentrado nas agências e indivíduos que controlam os canais de comunicação, maior é a "verdade" de sua propaganda enquanto expressão das reais relações de poder. É altamente significativo que na Alemanha a pasta de Goebbels seja chamada de Ministerium für Volksaufklarung und Propaganda (Ministério da Propaganda e Esclarecimento Popular). O próprio nome identifica a verdade objetiva, sobre a qual se supõe que cada um está esclarecido, com os slogans de propaganda do partido. De todo modo, a ambigüidade para com a manipulação deve ser tomada em conta pelos propagandistas que usam o expediente do lobo solitário. Eles não esperam que ele seja levado muito a sério e, provavelmente, ele nunca o é. Embora eles trabalhem com a suspeita de que os poderes atuais manipulam via partidos políticos e comunicações, recorrendo a esse truque eles sugerem que realmente há muita coisa por detrás deles, nomeadamente os verdadeiros poderes existentes, ao invés dos simples detentores dos títulos oficiais de comando. Na fase atual, mobilizar a aversão contra o monopolismo é um dos meios de promover a vitória final do totalitarismo. O ouvinte que escuta diariamente numa grande estação de rádio que o locutor é sozinho e trabalha por conta própria, percebe que, realmente, ele, ouvinte, não está cercado apenas pelas agências estabelecidas e abertamente conhecidas de hoje mas, antes, pelo poder potencial de uma coletividade integrada e pelo "reino secreto por vir", do qual cada um de nós pode se tornar cidadão entregando-se o mais cedo possível. A difamação da manipulação é pois apenas o meio de manipulação. As pessoas são habilmente levadas a crer que a iniciativa está com elas e, seu modelo, no locutor. Quando mais elas são desprovidas de espontaneidade, mais se sustenta sua suposta espontaneidade como ideologia.

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A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas [1943]* – T.W.Adorno

A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas [1943]*

(I Parte : O elemento pessoal: caracterização do agitador)

1. Observações introdutórias

 

A liderança fascista se caracteriza pela complacência para com as declarações palavrosas que faz sobre si mesma. Os propagandistas liberal e radical, ao contrário, desenvolveram a tendência de evitar qualquer referência à sua vida privada em favor dos interesses objetivos aos quais apelam. O primeiro, a fim de mostrar seu realismo e competência; o último, porque sua atitude coletivista poderia se ver ameaçada, se ele realça-se sua personalidade. Embora essa impessoalidade esteja bem fundada nas condições objetivas existentes em uma sociedade industrial, ela é muito frágil a partir do ponto de vista da audiência do orador. O distanciamento para com os relacionamentos pessoais envolvidos em qualquer discussão objetiva pressupõe uma liberdade e uma força intelectuais que, hoje, quase não mais existem entre as massas. Além disso, a frieza inerente a uma argumentação objetiva intensifica os sentimentos de desespero, isolamento e solidão dos quais, virtualmente, todo o indivíduo sofre na atualidade. Desses sentimentos ele deseja escapar quando ouve qualquer tipo de discurso público, e isso foi entendido pelos fascistas: a sua fala é pessoal. Ela não apenas se refere aos interesses mais imediatos dos seus ouvintes como, também, abarca a esfera privada do orador que, assim, faz parecer que tem em seus ouvintes pessoas de sua confiança e que pode passar por cima das distâncias que separam as pessoas.

 

Existem mais razões específicas para essa atitude, que, apesar de muitas vezes ser nutrida pela vaidade do líder, é bem calculada e, a despeito de seu aparente subjetivismo, forma parte de um conjunto altamente objetivo de expedientes de propaganda. Quanto mais impessoal se torna nossa ordem, mais importante se torna a personalidade como ideologia. Quanto mais o indivíduo é reduzido a uma mera peça de engrenagem, mais a idéia de singularidade do indivíduo, sua autonomia e importância, tem de ser afirmada como compensação de sua real fraqueza. Como isso não pode ser feito com cada um dos ouvintes individualmente, nem de uma maneira meramente abstrata e geral, a referida ênfase é pois feita de modo vicário pelo líder. Pode-se dizer que parte do segredo da liderança totalitária consiste no fato de que o líder representa a imagem da personalidade autônoma que, na realidade, é negada a seus seguidores.

 

A propaganda pessoal feita pelo líder fascista é uma espécie de truque confessional. Embora ele vez por outra se vanglorie e, em momentos decisivos, possa blefar, sobretudo antes de chegar ao poder, ele prefere, no tocante aos temas, minimizar o que seria sua força resistível. Ele reitera que "também é um ser humano", isto é, um ser tão fraco quanto o são seus possíveis simpatizantes. Os conceitos de força e autoridade não bastam em si mesmo para explicar o apelo da liderança fascista. O principal é, antes, a idéia de que o fraco pode se tornar forte, se ele entregar sua existência privada ao movimento, à causa, à cruzada ou qualquer outra coisa. Referindo-se a si próprio de maneira ambivalente, como homem e super-homem, fraco e forte, próximo e distante, o líder fascista serve de modelo para cada atitude que ele procura firmar em seus ouvintes.

 

Além disso, suas confissões, falsas ou verdadeiras, satisfazem a curiosidade do ouvinte. A curiosidade é um aspecto universal da atual cultura de massa. É alimentada pelas colunas de fofoca de certos jornais, pelas estórias de bastidores contadas a um sem número de ouvintes pelo rádio ou, ainda, pelas revistas que prometem contar "a verdadeira história". A estrutura da coisa ainda não foi totalmente explorada. Deve-se, em parte, ao sentimento amplamente disseminado de que é preciso estar informado para se manter uma conversa mas, também, ao sentimento de que a vida dos outros é rica, excitante e colorida, em comparação com a existência penosa da nossa. Fundamentalmente, o principal talvez seja porém a função da atitude bisbilhoteira, profundamente enraizada no inconsciente do processo psicológico e de resto muito afim do fascismo, que consiste em satisfazer-se conseguindo dar uma olhada na vida privada do vizinhança. O líder fascista é esperto o bastante para saber que não faz muita diferença como essa curiosidade é satisfeita. Revelações sobre subornos ou roubos supostamente cometidos por um inimigo, tanto quanto sobre a doença de sua esposa ou suas dificuldades financeiras, que inclusive podem ser inventadas, são em geral bem efetivas. Na condição de psicólogo prático, ele sabe algo sobre como age a ambivalência, mesmo que ele denuncie a psicanálise como pilhéria judaica. A libido do ouvinte é satisfeita quando ele é tratado como alguém de dentro; é matéria secundária saber se sua curiosidade é dirigida a conceitos negativos ou positivos. Se um inimigo deixa de pagar suas contas, o fato serve para denunciá-lo como embusteiro. Se Martin Luther Thomas, como ele de fato faz, declara publicamente que ele não pode pagar suas despesas a emissora de rádio, isso, ao invés, pode lhe trazer novos amigos.

 

Finalmente, existe uma razão objetiva para a falta de objetividade dos fascistas. O expediente ajuda a esconder ou encobrir suas aspirações objetivas. Diferentemente da Alemanha, a idéia de democracia possui uma grande tradição e um forte apelo emocional na América. Seria pois quase impraticável para qualquer líder fascista atacar a democracia, como os propagandistas fascistas livremente o fizeram na Alemanha. Destarte e em geral, o fascista americano é preparado para aceitar a democracia como uma capa de proteção para seus próprios fins. Recorrendo a todas as suas forças pessoais e à aplicação de técnicas publicitárias de alta-pressão, ele espera munir-se do poder capaz de reunir um vasto grupo de pressão que acabará derrubando a democracia em nome da democracia. Aparte isso, conhece-se bem a técnica de propaganda fascista que consiste em prometer vagamente tudo para todos os grupos, sem se importar muito com os seus conflitos de interesses. Quando fala sobre si mesmo, o líder fascista procura trazer confiança para seu poder de integração; por outro lado, ele precisa ser muito específico sobre seus propósitos objetivos, a fim de que os aspectos em si mesmo contraditórios do seu programa não se tornem muito ruidosos. Desse modo é o toque pessoal que serve de eficiente camuflagem.

 

Martin Luther Thomas conhece por inteiro as técnicas de Hitler, devido as relações com Deatheradge, Henry Allen e Mr. Fry. Ele sabe bem sobre como se manipula o próprio ego com finalidades propagandistas e, habilmente, tem adaptado a técnica hitlerista da revelação e da confissão para o cenário americano e as necessidades emocionais do grupo para o qual ele se dirige – a classe média baixa idosa e de meia idade, com ascendência religiosa de tipo sectário ou fundamentalista.

 

O seguinte consiste de alguns exemplos da maneira como ele fala sobre si mesmo.

[* Gesammelte Schriften Vol. 9, tomo II (Soziologiche Schriften II). Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1975, pp. 11-37 – Tradução de Francisco Rüdiger.]

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ANTÔNIO CÂNDIDO: A VERDADE DA REPRESSÃO

 

A VERDADE DA REPRESSÃO*

ANTÔNIO CÂNDIDO

 

Balzac, que percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento determinado.

O romancista tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.

A polícia de um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de "veneziano" — ou seja, o que estabelece uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado.

Para este fim, criam-se por toda a parte vínculos íntimos e profundos. A polícia se disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte visível (com os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta, com o seu exército impressentido de espiões calcagüetes, que em geral aparecem como exercendo ostensivamente uma outra atividade. Este funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac, e dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.

Para obter esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada. Assim como os "comprachicos” d’O Homem que Ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara — e os remete à função repressora.

Daí o interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu a solidariedade orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo tempo o seu maior criminoso e o seu maior policial.

Dostoievski percebeu uma coisa mais sutil: a função simbólica do policial como sucedâneo possível da consciência — a sociedade entrando na de cada um através da pressão ou do desvendamento que ele efetua. Em Crime e Castigo, o juiz de instrução Porfírio Porfí-riovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento dele mesmo.

Mas foi Kafka n’O Processo, quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia. Viu de que maneira a função de reprimir (mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente, ao ponto de acabar se tornando a sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.

Para entrar em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, porque a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.

A polícia aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor, controle emocional, lealdade, discrição — dissolvidos com perícia ou brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora, ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade em delação, a discrição em bisbilhotice trágica.

Daí uma espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de um ser que ia penosamente se apresentando como outro, que de fato era outro, na medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás, seria mais correto dizer que o outro é o suscitado pela polícia. O outro, com a sua verdade imposta ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porões onde tinha sido mais ou menos trancada.

De fato, a polícia tem necessidade de construir a verdade do outro para poder manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo — em todos os seus graus e modalidades.

       ***

Um exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri.

O delegado, que é também o criminoso, resolve brincar com o destino e como que provar o mecanismo autodominante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralha-mento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.

 

Chegado à polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que se confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel de delegado. Este o interroga com brutalidade c o pressiona física e moralmente para dizer quem era o assassino que se desvendara a ele na rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado pela contradição inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando suspeito, vai-se caracterizando legalmente corno possível criminoso, até desaparecer dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores sujos que levam aonde bem suspeitamos.

A força que o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambigüidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).

Tudo nesse episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente cm suspeito e do suspeito em delinqüente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição.

O fulcro desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório cm que o delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão.

"— Sou hidráulico", responde ele.

O delegado esbraveja:

" — Qual hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O que você é é encanador, não é? En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!".

E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo: "— Sim, sou encanador"’. (Cito de memória porque não tenho o roteiro.)

Vê-se que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha adotado uma designação de cunho técnico (idraulico, em italiano), que o afasta da velha designação artesanal "encanador" (stagnaro, em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível aparentemente mais elevado, ou pelo menos mais científico e atualizado. Mas o policial o reduz ao nível anterior, desmascara a sua autopromoção, lira para fora a sua verdade indesejada. E, no fim, é como se ele dissesse:

" — Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador. Estou reduzido ao meu verdadeiro eu, libertado do outro" .

Mas, na verdade, foi a polícia que lhe impôs o outro como eu. A polícia efetuou um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou seu diário:

"Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo".

*(Publicado em Opinião, n.° 11, 15-22 de janeiro de 1972.)

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Delinqüênica Acadêmica

A DELINQUÊNCIA ACADÊMICA*

Maurício Tragtenberg

  

O tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a universidade como instituição dominante ligada à dominação, a universidade antipovo.

 

A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições sociais.

 

No século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de “homem” que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de “um complô de belas almas” recheadas de títulos acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for.

 

Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas estruturais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Formando o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim, e o “campus” universitário cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma.

 

A universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na universidade mandarinal do século passado o professor cumpria a função de “cão de guarda” do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudante. Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através da desigualdade de rendimento escolar; enfim, onde a escola “escolhia” pedagogicamente os “escolhidos” socialmente.

 

A transformação do professor de “cão de guarda” em “cão pastor” acompanha a passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para a formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário.

 

A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos “cursos críticos”, em que o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza através de um processo que chamarei de “contaminação”. O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos chamados “cursos críticos”, que desempenham a função de um tranqüilizante no meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências humanas, as pesquisas em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, mas sim a destruição do “saber institucionalizado”, do “saber burocratizado” como único “legítimo”. A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista de saber, onde ele se constitui em capital e toma a forma nos hábitos universitários.

 

A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – “esse batismo burocrático do saber”. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível – esse de posse da chamada “informação” que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a delinqüência acadêmica?

 

A “delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant: “Ouse conhecer.” Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de “intelectuais” e não de “acadêmicos”. Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído por uma “universidade que mascarava a usurpação e monopólio  da riqueza, do poder”. Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes “corporações”, a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma “alma”. [1]

 

Em nome do “atendimento à comunidade”, “serviço público”, a universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas como as existentes na metrópole (EUA): cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconson e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o humanismo acaba em compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma “multiversidade”, isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se numa “agência de poder”, especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização, só nas vagas; funciona como tranqüilidade social. O assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.

 

A universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram como juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que assinavam atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral e Cívica garantindo a hegemonia da ideologia da “segurança nacional” codificada no Pentágono.

 

O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de “delinqüência acadêmica” ou da “traição do intelectual”. Em nome do “serviço à comunidade”, a intelectualidade universitária se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a “razão do Estado” em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas químico-biológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo, funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.

 

Já na década de 30, Frederic Lilge [2] acusava a tradição universitária alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho. Em nome da “segurança nacional”, o intelectual acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais.

 

Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico, pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.

 

Diferentemente, constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica do “verdadeiro” conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O “serviço público” prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos indígenas a pretexto de “emancipação” ou política de arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste “record” de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho. Eis que a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui o aumento salarial.

 

O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como homem de ação. A separação entre “fazer” e “pensar” se constitui numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica – a análise e discussão dos problemas relevantes do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada ao seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação.

 

Ao analisar a “crise de consciência” dos intelectuais norte-americanos que deram o aval da “escalada” no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a consulta política, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência.

 

Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.

 

A delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino onde os meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cede lugar ao controle burocrático de sua produção como suprema virtude, onde “administrar” aparece como sinônimo de vigiar e punir – o professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em “Cemitério de Vivos”.

 

A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose burocrática da instituição.

 

A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não no decorar determinados “clichês”, repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o diploma acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade.

 

A participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização.

 

____________

* Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP. Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. Sã Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1)

[1] Kaysen pretende atribuir uma “alma”à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do intelectual.

[2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948

 

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A OCUPAÇÃO DA REITORIA E A VIOLÊNCIA

 A OCUPAÇÃO DA REITORIA E A VIOLÊNCIA

"Eu não sei que mania se meteu na nossa cabeça moderna de que todas as dificuldades da sociedade se podem obviar mediante a promulgação de um regulamento executado mais ou menos pela coação autoritária de representantes do governo"

Lima Barreto 

É interessante, para fazer pensar, vermos como os atos ditos violentos irrompem uma ação que permite pensar a política onde ela aparentemente não estava… sobre esta questão, pensemos por exemplo em algo que irrompe violentamente na ordem jurídica, como um decreto.

Um decreto é como um tipo de decisionismo jurídico aplicado pelo poder executivo sobre uma dada pauta que acaba com a esfera orgânica do direito e impede a constituição de instâncias de posição ou de resolução de problemas que se desdobrariam a partir da reflexão pública sobre suas conseqüências. A partir de um decreto não há espaço para negociação, ele é um tipo de poder que neutraliza, excepcionalmente, o que seria uma norma universal resultante de um projeto comum e de um debate. Isto é, desaparece o ‘outro’ ou o espaço para qualquer posicionamento contrário, ainda que fruto de uma forma política legítima (ou hegemônica) e organizada de maneira que alguns possam se defender contra outros ou então defender sua dominação contra a revolta dos outros, ou simplesmente ainda, defender sua vitória eleitoral ou golpista e perenizá-la cinicamente na sujeição que impõe irreversivelmente sua vitória sobre o outro. Mesmo a USP nasceu de um decreto e assim ameaça desaparecer. 

O caminho reto das instâncias decisórias e os locais onde devem aparecer demandas se tornaram, em parte confusos, em parte não representativos conforme a conveniência. Como exemplo, pensemos para o caso da USP, onde os estudantes no momento ocuparam a reitoria. Há estudantes de toda a USP, que se organizaram (em assembléia) e indignados pelo descaso do não envio de representante da reitoria, a ocuparam, considerando a urgência das conseqüências dos decretos, do qual não discordam, malgrado o resto da comunidade estudantil e mesmo acadêmica como um todo. Em resposta, prontamente foi chamada uma congregação de emergência pelo diretor Gabriel Cohn da FFLCH, da distinta e volumosa faculdade, de onde provém muitos dos alunos presentes na ocupação da reitoria.

O papel institucional da Congregação da FFLCH para o presente caso foi tão e simplesmente o de considerar o ato como fruto exclusivo da mobilização de estudantes da FFLCH e não da USP como um todo em relação direta com a reitoria. Ao tentar o mais rapidamente lavar as mãos, pode-se dizer que toda a congregação condenou a ocupação da reitoria e sua violência, que consistiu em entortar a grade, mesmo achando legítimas suas pautas. A condenação da forma da ação por um colegiado particular da universidade é claro, nada acrescenta à questão, exceto que expôs a necessidade de intervir ainda que fora de qualquer competência e tentando anular a fala dos estudantes deslegitimando-a, não importa a sua pauta, podendo, pela velocidade da mobilização anular o ‘outro’, o estudante, antes mesmo de abrir a boca e fora de qualquer designação de tal colegiado para tal.

O que temos em mãos é nada menos do que a não-legitimidade violenta de uma instância legítima que se deslegitima por si só, negando, aparentemente, a atuar na direção de uma resolução de conflitos e extravasando as conseqüências de sua mobilização para outras instâncias além de sua competência, mas que, dada a rapidez, praticamente ensina uma lição para a reitoria sobre como lidar com estudantes, onde uma das chaves é a velocidade e a segunda é a escolha rápida de uma pecha desmoralizante.

A forma mais eficiente hoje de polarizar a questão é atribuir violência aos estudantes, neste momento em que tudo o que é maligno é violento. Antes, se diria atrasados de esquerda, hoje a violência é a melhor forma de deslegitimação possível, devemos lembrar aos membros da congregação que nesse atropelo em que vivemos, neste fantástico turbilhão de preocupações subalternas, poucos têm visto de que modo nós nos vamos afastando da medida, do relativo, do equilibrado, para nos atirarmos ao monstruoso, ao brutal, ainda que acusando do mesmo o adversário. Entre a violação moral e política e a física, é uma questão de locus social, ou, de quem está falando e de onde.

É estranho notar como as questões políticas colocadas para debaixo do tapete aparecem nestes momentos em que se tenta sair de uma situação de violência, elas aparecem como violência! Qualquer discurso cívico, ou sobre educação hoje falará sobre violência, sem poder identificar a natureza exata do que se quer dizer, dadas as suas inúmeras manifestações e desdobramentos simbólicos, físicos e políticos. Chegamos a questão de que qualquer agir político que não esteja enquadrado em um plano prévio (para ser contido) seja uma forma de violência e se relacione com todas as outras indistintamente, especialmente se o ator político que aparece não esteja onde se espera para ser contido, nem aja como se espera, nem seja quem se quer ouvir ou ainda que diga ou queira alguma coisa que ainda não se pensou, ou que devia ser dito ou pensado por outro. Neste contexto, tudo o que não foi previsto e aquele que reclama ou age é violento, tanto na defesa, quanto na luta por direitos. Surge a imagem espetacular da ocupação da reitoria como parente dos ataques do Primeiro Comando da Capital.

Estranhamente tal ato, dito violento, irrompe e permite o confronto de opiniões que expõe a crise da universidade e de sua defesa. Do lado externo, o intuito da ereção das universidades continuaria sendo a de um aparelho decorativo, suntuoso, naturalmente destinado a favorecer o grande mundo festividades brilhantes de colação de grau e sessões solenes que garantiriam o privilégio e diminuiriam a livre concorrência, sendo sobremodo obsoleta. Do lado interno mantém-se a imagem do paraíso da pesquisa e da qualidade ligada à sociedade, e não somente às empresas, de modos ocultos, porém firmes e sublimes.

As disputas políticas sobre universidade nunca mais se deram na direção de projetos alternativos de mudança de rumo, pois todos nos rendemos à defesa do que "sobrou" e  talvez seja este o único espaço onde hoje se dá a política na universidade. A direção da política universitária hoje se encontra na situação de um motorista que guia o seu automóvel aceleradamente por estradas de curvas muito fechadas. Uma volta fora do tempo, uma velocidade inoportuna, constituem para o viajante e a equipagem ameaça de perigos muito grandes, e mesmo ameaça de morte, no entanto, brigamos todos dentro deste veículo sobre os dois caminhos de uma bifurcação a seguir enquanto a velocidade aumenta. Uma leva à possibilidade de disputar alguma coisa que pode também acabar, outra leva ao descambo geral da universidade pública no estado.

Os estudantes agiram tentando levar-nos a uma direção seguindo o bom senso que surge quando estes dissolvem suas barreiras e constroem algo minimamente comum, construindo um tipo de igualdade além das diferenças políticas que minam sua ação e pensamento, criando uma instância de reflexão no aprendizado concreto da luta política. As diferenças aparecem e se resolvem, da divisão das pautas até a possibilidade de se fazer ouvir a aporia assustadora que prenuncia o decreto, abrindo uma possibilidade para o futuro onde antes só havia o silêncio e o murmúrio, mesmo quando relutantes. Agora se fala com mais propriedade, agora as pessoas lêem as demandas e refletem, saindo da violência e do silêncio que contra eles eram impostas.

Há diversas formas de violência que mudam conforme o tempo, o local e o agente, mas em nosso contexto entre a grade da reitoria e a impossibilidade de orçamento para toda a universidade pública imposta por um decreto, notemos que importam e muito os nuances da aplicação da idéia de violência, especialmente quando uma delas tem como fonte de sua força uma instituição contra as outras instâncias decisórias sobre uma dada questão que impossibilita pensar um futuro para a Universidade como um todo. 

Os demais senhores também chorarão caso acabe a universidade, mas para eles a ocupação foi uma terrível calamidade que todos querem explicar e encerrar, dos merceeiros aos quitandeiros, professores e burocratas, medindo a violência, o que, porém, ninguém se lembrou de ver no desastre: sua significação moral e social, ou antes, política.     



Douglas Anfra

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A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas

A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas

por João Bernardo

Contrariamente ao que afirma a esmagadora maioria dos políticos e dos estudiosos da política, uma das principais características da sociedade capitalista é o facto de o Estado não se limitar às instituições que formalmente o compõem: governo, parlamento, polícia e tribunais. No capitalismo o Estado, muito mais do que um conjunto de instituições, é o conjunto de princípios organizacionais que deve presidir à estrutura interna de todas as instituições, mesmo as que não lhe estejam directamente ligadas. O Estado capitalista não é formado só por algumas das peças do jogo, mas sobretudo pelas regras do jogo. As escolas e as associações de bairro, para invocar dois tipos de instituição que interessam de perto ao Piá, inserem-se na ordem estatal sempre que estabelecem hierarquias internas entre os directores que mandam e os empregados que obedecem, e sempre que perpetuam a mesma camada de dirigentes. Qualquer instituição que reproduza internamente este sistema não só se submete ao Estado capitalista como se integra nele.

Isto sucede até com instituições que se apresentam formalmente como se fossem autónomas. O critério fundamental que devemos seguir para avaliar a autonomia é a forma de organização interna. Fala-se hoje muito de economia solidária, de empresas autogeridas, de projectos colectivos, de movimentos sociais, etc., mas será que ocorre nestes casos uma efectiva remodelação das relações sociais de trabalho ou será que continua a existir uma minoria de gestores que decide, e portanto explora, e uma maioria de trabalhadores que executa, e portanto é explorada? A remodelação das relações de trabalho implica a conversão das relações verticais de hierarquia em relações horizontais de solidariedade e de colectivismo, especialmente o direito de todos darem a sua opinião, a rotatividade nas funções e nas tarefas e a possibilidade de revogar em qualquer momento os mandatos dos representantes e das pessoas eleitas para cargos de coordenação.

Em qualquer luta importa mais a forma de organização dos participantes do que o conteúdo ideológico inicial. A tomada de consciência faz-se através da possibilidade que cada pessoa tiver de colaborar na condução prática da luta, sem se limitar a ouvir doutrinas ensinadas por outros. A aprendizagem ideológica só é criativa quando ajuda a conceptualizar experiências já adquiridas ou em vias de aquisição; e quanto mais profundamente vividas forem essas experiências tanto mais longe se pode levar a aprendizagem ideológica. É a luta o fundamento e o principal motor desta pedagogia, e a autonomia ou se aprende a partir de uma base prática ou não se aprende. Estes são critérios totalmente opostos aos do Estado capitalista.

Nas actuais circunstâncias, em que o capitalismo conseguiu desorganizar profundamente a classe trabalhadora, fragmentando os assalariados nas empresas e esforçando-se a todo o custo por dispersar os velhos bairros populares, as lutas autonomistas parecem condenadas ao isolamento. É certo que esse isolamento pode ser combatido através da troca de experiências e do estabelecimento de redes de contactos mais ou menos duradouras, mas apesar disto o isolamento não deixa de ser grande. O notável marxista brasileiro Mário Pedrosa exclamou em A Opção Imperialista, uma obra publicada em 1966: «Onde a liberdade individual é subjugada? No sector mais importante da vida moderna, no local de trabalho, na oficina, na fábrica, na empresa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes?». É este o cerne da questão. Não se podem implantar ilhas de autonomia total no meio de uma sociedade onde impera o autoritarismo, ou seja, onde a exploração se conjuga com a opressão.

Assim, na fase actual o importante é desencadear o começo de uma tendência. O máximo a que podemos aspirar para já é o desenvolvimento de lutas que tendam à autonomia, em que a participação de todos tenda a ser cada vez maior, em que a rotatividade nas funções tenda a ser crescente, em que o leque das remunerações – se for caso para existirem – tenda a reduzir-se. Este tenda a não se consegue sem luta. Trata-se de uma luta dentro da luta, e só o processo permanente de luta interna pode garantir que as experiências de libertação não se convertam, como até agora tem sucedido, em novas experiências de opressão.

Enquanto as empresas não forem geridas pelos trabalhadores e não por patrões (de direita) nem por tecnocratas (de esquerda), enquanto a sociedade não for administrada pelos trabalhadores e não por políticos profissionais (de direita ou de esquerda), o capitalismo continuará a existir e, no máximo, mudará de forma, sem alterar o facto básico da exploração. Mas gerir as empresas e a sociedade é algo que se aprende de uma única maneira: gerindo as próprias lutas. Só assim os trabalhadores podem começar a emancipar-se de todo o tipo de especialistas e de burocratas. E com este objectivo não há experiências simples demais. Por modesta que seja uma experiência, os participantes vão-se habituando a dirigir a sua actividade e vão aprendendo na prática aquilo que opõe essa solidariedade e esse colectivismo ao Estado capitalista. É esta a única maneira sólida como os trabalhadores podem, no plano prático, reforçar progressivamente a sua capacidade de organizar as empresas e a sociedade e, no plano ideológico, forjar uma consciência de classe.

Será esse um processo demasiado lento? Na história os processos não se definem nem por serem longos nem por serem breves mas por cobrirem um prazo necessário ou um prazo insuficiente, e o factor que aqui determina tudo é que sem a autogestão das lutas a autogestão da sociedade jamais será possível. Todavia, não se trata de projectar uma utopia num futuro longínquo. Pelo contrário, trata-se de afirmar uma presença imediata, porque qualquer experiência de autogestão constitui, por si só, uma ruptura com as regras do jogo do Estado capitalista. Ao mesmo tempo que é a condição para generalizar a autogestão, o facto de gerir a própria luta é a demonstração da viabilidade prática das relações sociais anticapitalistas, igualitárias e colectivistas.

[Publicado em Piá Piou!, Novembro de 2005, nº 3]

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