A OCUPAÇÃO DA REITORIA E A VIOLÊNCIA

 A OCUPAÇÃO DA REITORIA E A VIOLÊNCIA

"Eu não sei que mania se meteu na nossa cabeça moderna de que todas as dificuldades da sociedade se podem obviar mediante a promulgação de um regulamento executado mais ou menos pela coação autoritária de representantes do governo"

Lima Barreto 

É interessante, para fazer pensar, vermos como os atos ditos violentos irrompem uma ação que permite pensar a política onde ela aparentemente não estava… sobre esta questão, pensemos por exemplo em algo que irrompe violentamente na ordem jurídica, como um decreto.

Um decreto é como um tipo de decisionismo jurídico aplicado pelo poder executivo sobre uma dada pauta que acaba com a esfera orgânica do direito e impede a constituição de instâncias de posição ou de resolução de problemas que se desdobrariam a partir da reflexão pública sobre suas conseqüências. A partir de um decreto não há espaço para negociação, ele é um tipo de poder que neutraliza, excepcionalmente, o que seria uma norma universal resultante de um projeto comum e de um debate. Isto é, desaparece o ‘outro’ ou o espaço para qualquer posicionamento contrário, ainda que fruto de uma forma política legítima (ou hegemônica) e organizada de maneira que alguns possam se defender contra outros ou então defender sua dominação contra a revolta dos outros, ou simplesmente ainda, defender sua vitória eleitoral ou golpista e perenizá-la cinicamente na sujeição que impõe irreversivelmente sua vitória sobre o outro. Mesmo a USP nasceu de um decreto e assim ameaça desaparecer. 

O caminho reto das instâncias decisórias e os locais onde devem aparecer demandas se tornaram, em parte confusos, em parte não representativos conforme a conveniência. Como exemplo, pensemos para o caso da USP, onde os estudantes no momento ocuparam a reitoria. Há estudantes de toda a USP, que se organizaram (em assembléia) e indignados pelo descaso do não envio de representante da reitoria, a ocuparam, considerando a urgência das conseqüências dos decretos, do qual não discordam, malgrado o resto da comunidade estudantil e mesmo acadêmica como um todo. Em resposta, prontamente foi chamada uma congregação de emergência pelo diretor Gabriel Cohn da FFLCH, da distinta e volumosa faculdade, de onde provém muitos dos alunos presentes na ocupação da reitoria.

O papel institucional da Congregação da FFLCH para o presente caso foi tão e simplesmente o de considerar o ato como fruto exclusivo da mobilização de estudantes da FFLCH e não da USP como um todo em relação direta com a reitoria. Ao tentar o mais rapidamente lavar as mãos, pode-se dizer que toda a congregação condenou a ocupação da reitoria e sua violência, que consistiu em entortar a grade, mesmo achando legítimas suas pautas. A condenação da forma da ação por um colegiado particular da universidade é claro, nada acrescenta à questão, exceto que expôs a necessidade de intervir ainda que fora de qualquer competência e tentando anular a fala dos estudantes deslegitimando-a, não importa a sua pauta, podendo, pela velocidade da mobilização anular o ‘outro’, o estudante, antes mesmo de abrir a boca e fora de qualquer designação de tal colegiado para tal.

O que temos em mãos é nada menos do que a não-legitimidade violenta de uma instância legítima que se deslegitima por si só, negando, aparentemente, a atuar na direção de uma resolução de conflitos e extravasando as conseqüências de sua mobilização para outras instâncias além de sua competência, mas que, dada a rapidez, praticamente ensina uma lição para a reitoria sobre como lidar com estudantes, onde uma das chaves é a velocidade e a segunda é a escolha rápida de uma pecha desmoralizante.

A forma mais eficiente hoje de polarizar a questão é atribuir violência aos estudantes, neste momento em que tudo o que é maligno é violento. Antes, se diria atrasados de esquerda, hoje a violência é a melhor forma de deslegitimação possível, devemos lembrar aos membros da congregação que nesse atropelo em que vivemos, neste fantástico turbilhão de preocupações subalternas, poucos têm visto de que modo nós nos vamos afastando da medida, do relativo, do equilibrado, para nos atirarmos ao monstruoso, ao brutal, ainda que acusando do mesmo o adversário. Entre a violação moral e política e a física, é uma questão de locus social, ou, de quem está falando e de onde.

É estranho notar como as questões políticas colocadas para debaixo do tapete aparecem nestes momentos em que se tenta sair de uma situação de violência, elas aparecem como violência! Qualquer discurso cívico, ou sobre educação hoje falará sobre violência, sem poder identificar a natureza exata do que se quer dizer, dadas as suas inúmeras manifestações e desdobramentos simbólicos, físicos e políticos. Chegamos a questão de que qualquer agir político que não esteja enquadrado em um plano prévio (para ser contido) seja uma forma de violência e se relacione com todas as outras indistintamente, especialmente se o ator político que aparece não esteja onde se espera para ser contido, nem aja como se espera, nem seja quem se quer ouvir ou ainda que diga ou queira alguma coisa que ainda não se pensou, ou que devia ser dito ou pensado por outro. Neste contexto, tudo o que não foi previsto e aquele que reclama ou age é violento, tanto na defesa, quanto na luta por direitos. Surge a imagem espetacular da ocupação da reitoria como parente dos ataques do Primeiro Comando da Capital.

Estranhamente tal ato, dito violento, irrompe e permite o confronto de opiniões que expõe a crise da universidade e de sua defesa. Do lado externo, o intuito da ereção das universidades continuaria sendo a de um aparelho decorativo, suntuoso, naturalmente destinado a favorecer o grande mundo festividades brilhantes de colação de grau e sessões solenes que garantiriam o privilégio e diminuiriam a livre concorrência, sendo sobremodo obsoleta. Do lado interno mantém-se a imagem do paraíso da pesquisa e da qualidade ligada à sociedade, e não somente às empresas, de modos ocultos, porém firmes e sublimes.

As disputas políticas sobre universidade nunca mais se deram na direção de projetos alternativos de mudança de rumo, pois todos nos rendemos à defesa do que "sobrou" e  talvez seja este o único espaço onde hoje se dá a política na universidade. A direção da política universitária hoje se encontra na situação de um motorista que guia o seu automóvel aceleradamente por estradas de curvas muito fechadas. Uma volta fora do tempo, uma velocidade inoportuna, constituem para o viajante e a equipagem ameaça de perigos muito grandes, e mesmo ameaça de morte, no entanto, brigamos todos dentro deste veículo sobre os dois caminhos de uma bifurcação a seguir enquanto a velocidade aumenta. Uma leva à possibilidade de disputar alguma coisa que pode também acabar, outra leva ao descambo geral da universidade pública no estado.

Os estudantes agiram tentando levar-nos a uma direção seguindo o bom senso que surge quando estes dissolvem suas barreiras e constroem algo minimamente comum, construindo um tipo de igualdade além das diferenças políticas que minam sua ação e pensamento, criando uma instância de reflexão no aprendizado concreto da luta política. As diferenças aparecem e se resolvem, da divisão das pautas até a possibilidade de se fazer ouvir a aporia assustadora que prenuncia o decreto, abrindo uma possibilidade para o futuro onde antes só havia o silêncio e o murmúrio, mesmo quando relutantes. Agora se fala com mais propriedade, agora as pessoas lêem as demandas e refletem, saindo da violência e do silêncio que contra eles eram impostas.

Há diversas formas de violência que mudam conforme o tempo, o local e o agente, mas em nosso contexto entre a grade da reitoria e a impossibilidade de orçamento para toda a universidade pública imposta por um decreto, notemos que importam e muito os nuances da aplicação da idéia de violência, especialmente quando uma delas tem como fonte de sua força uma instituição contra as outras instâncias decisórias sobre uma dada questão que impossibilita pensar um futuro para a Universidade como um todo. 

Os demais senhores também chorarão caso acabe a universidade, mas para eles a ocupação foi uma terrível calamidade que todos querem explicar e encerrar, dos merceeiros aos quitandeiros, professores e burocratas, medindo a violência, o que, porém, ninguém se lembrou de ver no desastre: sua significação moral e social, ou antes, política.     



Douglas Anfra

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