PAUL FEYERABEND – Contra o Método – Introdução

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PAUL FEYERABEND

Contra o Método – Introdução


A ciência é um empreendimento
essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a
estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam lei e ordem.


 

Ordnung ist heutzutage mestens
dort,

wo nichts ist.

Es ist eine
Mangelerscheinung.

Brecht

[trad. “Ordem, hoje em dia, encontra-se, em geral,/ onde não há
nada./É um sintoma de deficiência”]


 

            O
ensaio a seguir é escrito com a convicção de que o anarquismo, ainda que talvez não seja a mais atraente filosofia política, é, com certeza, um excelente
remédio para a epistemologia e para a filosofia
da ciência
.

            A
razão não é difícil de encontrar.

            “A
história, de modo geral, e a história da revolução, em particular, é sempre
mais rica em conteúdo, mais variada, mais multiforme, mais viva e sutil do que
mesmo” o melhor historiador e melhor metodólogo podem imaginar.1 A história está cheia de “acidentes e
conjunturas e curiosas justaposições de eventos”2 demonstra-nos a “complexidade da mudança humana e o caráter
imprevisível das conseqüências últimas de qualquer ato ou decisão dos homens”.3 Devemos realmente acreditar que as
regras ingênuas e simplórias que os metodólogos tomam como guia são capazes de
explicar tal “labirinto de interações”?4
E não está claro que a participação
bem-sucedida em um processo dessa espécie só é possível para um oportunista
impiedoso que não esteja ligado a nenhuma filosofia específica e adote o
procedimento, seja lá qual for, que pareça mais adequado para a ocasião?

            Essa
é, com efeito, a conclusão a que têm chegado observadores inteligentes e
ponderados. “Duas conclusões práticas muito importantes decorrem desse [caráter
do processo histórico]”, escreve
Lênin 5, continuando a passagem que
acabo de citar, “Primeiro, que a fim de cumprir sua tarefa, a classe
revolucionária [isto é, a classe daqueles que desejam mudar quer uma parte da
sociedade, como a ciência, quer a sociedade como um todo] tem de ser capaz de
dominar, sem exceção, todas as formas
dou aspectos da atividade social [tem de ser capaz de entender, e aplicar, não
apenas uma metodologia particular, mas qualquer metodologia e qualquer variação
dela que se possa imaginar]…; segundo, tem de estar preparada para passar de
uma à outra da maneira mais rápida e mais inesperada.” “As condições externas”,
escreve Einstein, 6 “que são
colocadas para [o cientista] pelos fatos da experiência não lhe permitem
deixar-se restringir em demasia, na construção de seu mundo conceitual, pelo
apego a um sistema epistemológico. Portanto, ele deve afigurar-se ao
epistemólogo sistemático como um tipo de oportunista inescrupuloso…”. Um meio
complexo, contendo desenvolvimentos surpreendentes e imprevistos, demanda
procedimentos complexos e desafia uma análise baseada em regras que tenham sido
estabelecidas de antemão e sem levar em consideração as condições sempre
cambiantes da história.

            Ora,
é evidentemente possível simplificar o meio em que um cientista trabalha pela
simplificação de seus atores principais. A história da ciência, afinal de
contas, não consiste simplesmente em fatos e conclusões extraídas de fatos.
Também contém idéias, interpretações de fatos, problemas criados pro
interpretações conflitantes, erros e assim por diante. Em uma análise mais
detalhada, até mesmo descobrimos que a ciência não conhece, de modo algum,
“fatos nus”, mas que todos os “fatos” de que tomamos conhecimento já são vistos
de certo modo e são, portanto, essencialmente ideacionais. Se é assim, a
história da ciência será tão complexa, caótica, repleta de enganos e
interessantes quanto a mente daqueles que as inventaram. Inversamente, uma
pequena lavagem cerebral fará muito no sentido de tornar a história da ciência
mais tediosa, mais uniforme, mais “objetiva” e mais facilmente acessível a
tratamento por meio de regras estritas e imutáveis.

            A
educação científica tal como hoje a conhecemos tem precisamente esse objetivo.
Simplifica a “ciência” pela simplificação de seus participantes: primeiro,
define-se um campo de pesquisa. Esse campo é separado do restante da história
(a física, por exemplo, é separada da metafísica e da teologia) e recebe uma
“lógica” própria. Um treinamento completo em tal “lógica” condiciona então
aqueles que trabalham nesse campo; torna suas
ações
mais uniformes e também congela grandes porções do processo histórico. Fatos “estáveis”
surgem e mantêm-se a despeito das vicissitudes da história. Uma parte essencial
do treinamento que faz que tais fatos apareçam consiste na tentativa de inibir
intuições que possam levar a que fronteiras se tornem indistintas. A religião
de uma pessoa, por exemplo, ou sua metafísica, ou seu senso de humor (seu senso
de humor natural, não aquele tipo endógeno e sempre um tanto desagradável de
jocosidade que encontramos em profissões especializadas) não podem ter a menor
ligação com sua atividade científica. Sua imaginação é restringida, e até sua
linguagem deixa de ser sua própria. Isso se reflete na natureza dos “fatos”
científicos, experienciados como independentes de opinião, crença e formação cultural.

            É
possível, assim, criar uma tradição que é mantida coesa por regras estritas e,
até certo ponto, que também é bem sucedida. Mas será que é desejável dar apoio
a tal tradição a ponto de excluir tudo o mais? Devemos ceder-lhe os direitos
exclusivos de negociar com o conhecimento, de modo que qualquer resultado
obtido por outros métodos seja imediatamente rejeitado? E será que os
cientistas invariavelmente permaneceram nos limites das tradições que definiram
dessa maneira estreita? São essas as perguntas que pretendo fazer neste ensaio.
E minha resposta, a essas perguntas, será um firme e sonoro NÃO.

            Há
duas razões que fazem tal resposta parecer apropriada. A primeira é que o mundo
que desejamos explorar é uma entidade em grande parte desconhecida. Devemos,
portanto, deixar nossas opções em aberto e tampouco devemos nos restringir de
antemão. Prescrições epistemológicas podem parecer esplêndidas quando
comparadas co outras prescrições epistemológicas ou com princípios gerais – mas
quem pode garantir que sejam o melhor modo de descobrir não somente uns poucos
“fatos” isolados, mas também alguns profundos segredos da natureza? A segunda
razão é que uma educação científica, como antes descrita (e como praticada
  em nossas escolas), não pode ser conciliada com
uma atitude humanista. Está em conflito “com o cultivo da individualidade, a
única coisa que produz ou pode produzir seres humanos bem desenvolvidos”;7 “mutila por compressão, tal como
mutila o pé de uma dama chinesa, cada parte da natureza humana que sobressaia
perceptivelmente, e tende a fazer que certa pessoa tenha um perfil marcadamente
diferente”8 dos ideais de
racionalidade que, por acaso, estejam em moda na ciência ou na filosofia da
ciência ou na filosofia da ciência. A tentativa de fazer crescer a liberdade,
de levar uma vida plena e gratificante e a tentativa correspondente de
descobrir os segredos da natureza e do homem acarretam, portanto, a rejeição de
todos os padrões universais e de todas as tradições rígidas.(Naturalmente,
acarretam também a rejeição de grande parte da ciência contemporânea.)

            É
surpreendente ver quão raramente os anarquistas profissionais examinam o efeito
estultificante das “Leis da Razão” ou da prática científica. Os anarquistas
profissionais opõem-se a qualquer tipo de restrição e exigem que ao indivíduo
seja permitido desenvolver-se livremente, não estorvado por leis, deveres ou
obrigações. E, contudo,, engolem sem protestar todos os padrões severos que
cientistas e lógicos impõem à pesquisa e a qualquer espécie de atividade capaz
de criar ou de modificar o conhecimento. Ocasionalmente, as leis do método
científico, ou aquilo que um autor particular julga serem as leis do método
científico, são até mesmo integradas ao próprio anarquismo. “O anarquismo é um
conceito universal baseado em uma explicação mecânica de todos os fenômenos”,
escreve Kropotkin.9 “Seu método de
investigação é o das ciências naturais exatas… o método de indução e
dedução.” “Não está tão claro”, escreve um professor “radical” moderno de
Columbia, 10 “que a pesquisa
científica exija absoluta liberdade de expressão e debate. A evidência sugere,
antes, que certos tipos de restrição à liberdade não colocam obstáculos no
caminho da ciência…”

            Há,
certamente, algumas pessoas para quem isso “não está tão claro”. Comecemos,
portanto, com nosso esboço de uma metodologia anarquista e de uma ciência
anarquista correspondente. Não há por que temer que a reduzida preocupação com
lei e ordem na ciência e na sociedade, que caracteriza esse tipo de anarquismo,
vá levar ao caos. O sistema nervoso humano é por demais bem organizado para que
isso ocorra.11 Poderá, é claro, vir
um tempo em que seja necessário dar à razão uma vantagem temporária e em que
seja necessário dar à razão uma vantagem temporária e em que seja prudente
defender suas regras a ponto de excluir tudo o mais. Não creio, contudo, que
estejamos, hoje, vivendo nesse tempo.12

 

NOTAS

 

1
“A história como um todo, e a história das revoluções em particular, é sempre
mais rica em conteúdo, mais variada, mais multiforme, mais viva e engenhosa do
que imaginam mesmo os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes das
classes mais avançadas” (LENIN, V.I. “Left-Wing
Communism – Na Infantile Disorder. Selected Works
, v.3, Londres, 1967, p.
401). Lênin dirige-se a partidos e vanguardas revolucionários em vez de
cientistas e metodólogos; a lição, contudo, é a mesma.
Cf. nota 5.

2 BUTTERFIELD, Hebert. The
Whig Interpretation of History. Nova York, 1965, p.66.

3 Ibidem, p. 21.

4 Ibidem, p. 25, cf.
HEGEL. Philosophie der Geschichte, Werke, v. 9, ed.
Edward Gans, Berlim, 1837, p. 9: „Mas o que a
experiência e a história nos ensinam é que as nações e os governos jamais
aprenderam coisa alguma da história ou agiram de acordo com regras que poderiam
ter dela derivado. Cada período apresenta circunstâncias tão peculiares,
encontra-se em um estado tão específico, que decisões terão de ser tomadas,e
somente podem ser tomadas, nele e a partir dele”. – “Muito engenhoso”; “astuto
e muito engenhoso”; “NB” escreve Lênin em suas anotações marginais e essa
passagem (Collected Works, v. 38,
Londres, 1961, p. 307).

5
Ibidem. Vemos aqui muito claramente como algumas substituições podem
transformar uma lição política em uma lição de metodologia.Isso não é de modo algum surpreendente. Metodologia e
política são ambas meios de passar de ume stágio histórico a outro. Vemos
também como um indivíduo, como Lênin, que não é intimidado por fronteiras
tradicionais e cujo pensamento não está preso à ideologia de uma profissão
particular, pode dar conselhos úteis a todos, até mesmo a filósofos da
ciências. No século XIOX, a idéia de uma metodologia elástica e historicamente
informada era uma cosa natural. Assim, Ernst Mach escreveu em seu Erkenntnis und Irrtum, Neudruck, Wissenschaftliche
Buchgesellschaft
, Darmstadt, 1980, p. 200: „Diz-se com freqüência que não
se pode ensinar a pesquisa. Isso é inteiramente correto, em certo sentido. Os
esquemas da lógica formal e da lógica indutiva pouco adiantam, pois as
situações intelectuais nunca são exatamente as mesmas. Mas os exemplos de
grandes cientistas são muito sugestivos”. Não são sugestivos porque deles
podemos abstrair regras e sujeitar a pesquisa futura à sua jurisdição; são
sugestivos porque deles podemos abstrair regras e sujeitar a pesquisa futura à
sua jurisdição; são sugestivos porque tornam a mente ágil e capaz de inventar
tradições de pesquisa inteiramente novas. Para um tratamento mais detalhado da
filosofia de Mach, ver nosso ensaio Farewell
to Reasaon,
Londres, 12987, capítulo 7, bem como o v. 2, capítulos 5 e 6,
de nossos Philosophical Papers,
Cambridge, 1981.

6 EINSTEIN, Albert. Albert
Einstein: Philosopher Scientist. P. A. Schilpp (Ed.) . Nova York, 1951, p.
683ss.

7 MILL, John Stuart

8 Ibidem, p. 265.

9 KROPOTKIN, Peter
Alexeivich. Modern Science and Anarchism.
Kropotkin’s Revolutionary Pamphets
, ed.
R.W.
Baldwin, Nova York, 1970, p. 150-2. „Uma das grandes características de Ibsen é
que nada era válido para ele, exceto a ciência“ SHAW, B. Back to Methuselah.
Nova York, 1921, p. XCVII. Comentando esses e fenômenos similares, Strindberg
escreve (Antibarbarus): “Uma geração que teve a coragem de livrar-se de Deus,
de esmagar o Estado e a Igreja e de subverter a sociedade e a moralidade
continuava todavia a curvar-se diante da Ciência. E na Ciência, onde deveria
reinar a liberdade, a ordem do dia era ‘acredite nas autoridades ou terá sua
cabeça cortada’”.

10 WOLFF, R.P. The Poverty
od Liberalism.
Boston, 1968, p. 15. Para
uma crítica de Wolff, ver a nota 52 de nosso ensaio „Against Method“, em Minnesota
Studies in the Philosophy of Science, v. 4., Minneapolis, 1970.

11 Mesmo em situações indeterminadas e ambíguas alcança-se logo uma
uniformidade de ação e adere-se tenazmente a ela. Ver SHERIF, Muzaer. The Psycology of Social Norms. Nova
York, 1964.

12
Essa era minha opinião em 1970, quando escrevia a primeira versão deste ensaio.
Os tempos mudaram. Considerando algumas tendências na educação nos Estados
Unidos (“politicamente correto”, menus acadêmicos etc.), na filosofia
(pós-modernismo) e no mundo em geral, penso que se deveria agora, dar maior
peso à razão, não porque ela seja e sempre tenha sido fundamental, mas porque
parece ser necessário, em circunstâncias que ocorrem muito freqüentemente hoje
(mas que podem desaparecer amanhã), criar uma abordagem mais humana.

 

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A Aberração Carcerária – Loic Wacquant

A ABERRRAÇÃO CARCERÁIA
Loïc Wacquant *


Em Junho de 2003, a população carcerária francesa superava o marco de 60.000 presidiários para 48.000 vagas, um recorde absoluto desde a época da Libertação. Insalubridade, vetustez, promiscuidade elevada à potência máxima, higiene precária, carência de actividades de formação e de trabalho – reduzindo a missão de “reinserção” a um mero slogan cruel e sem sentido –, bem como o aumento de incidentes graves e de suicídios (cujo número duplicou em 20 anos) constituíam, na época, o objecto de protestos unânimes [1], que não suscitaram reacção perceptível por parte das autoridades, mais preocupadas em manifestar a sua determinação de combater aquilo que o Chefe de Estado – profundo conhecedor do assunto – denominava, com furor, de “impunidade”. Lá onde a “esquerda plural” punia a miséria de maneira vergonhosa e sub-reptícia, a direita republicana optou por lançar mão, com vigor e ênfase, do aparelho repressivo para erradicar o desespero e as desordens sociais que assolam os bairros corroídos pelo desemprego em massa e pela precariedade do trabalho, exílio para onde são relegados os excluídos. Tornar a luta contra a delinquência urbana um perpétuo espectáculo moral permite, efectivamente, reafirmar simbolicamente a autoridade do Estado, justamente no momento em que se manifesta a sua impotência na frente de batalha económica e social.

Mas servir-se da prisão como de um aspirador social para limpar a escória resultante das transformações económicas em andamento e para eliminar do espaço público o refugo da sociedade de mercado – pequenos delinquentes ocasionais, desempregados, indigentes, moradores de rua, estrangeiros clandestinos, toxicómanos, deficientes físicos e mentais deixados à deriva pelo enfraquecimento da rede de protecção sanitária e social, bem como jovens de origem modesta, condenados, para (sobre)viver, a se virarem como puderem por meios lícitos ou ilícitos, em razão da propagação de empregos precários – é uma aberração no sentido literal do termo, isto é, conforme a definição do Dicionário da Academia Francesa de 1835: “desvario” e “erro de julgamento”, tanto político como penal.

Aberração, em primeiro lugar, porque a evolução da criminalidade na França não justifica, de maneira alguma, o crescimento fulgurante da população carcerária depois de uma diminuição moderada entre 1996 e 2001. Os furtos a residências e o roubo de veículos ou de equipamentos e objectos que se encontram dentro de veículos (que constituem três quartos dos crimes e delitos registrados pelas autoridades) vêm diminuindo de maneira regular desde pelo menos 1993; os casos de homicídio e agressões fatais vêm recuando desde 1995, segundo informações fornecidas pela polícia, e desde 1984 segundo dados estatísticos do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm); os roubos acompanhados de actos de violência que tanto obnubilam os noticiários, constituídos principalmente de “violências” verbais (insultos, ameaças), também têm diminuído nos últimos 20 anos [2].

Papel figurativo

No final, não é tanto a criminalidade que mudou nestes últimos anos, mas sim a maneira como políticos e jornalistas, na qualidade de porta-vozes dos interesses dominantes, vêem a delinquência urbana e as populações que supostamente a alimentam. Na linha da frente dessas populações, jovens de classes modestas, originários de famílias de imigrantes magrebinos, que vivem encurralados em conjuntos residenciais da periferia, os quais se acham arruinados por três décadas de desequilíbrio económico e de omissão urbana do Estado – caracterizando, assim, as feridas abertas que o cataplasma administrativo da “política urbana” não conseguiu cauterizar.

Aberração, igualmente, porque a criminologia comparada demonstra que não existe, em lugar algum – nenhum país e nenhuma época – uma correlação entre o índice de encarceramento e o nível de criminalidade [3]. Por vezes citadas como exemplo, a política policial de “tolerância zero” e a reduplicação, em 25 anos, do número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos tiveram um papel simplesmente figurativo na diminuição do número de litígios resultante da conjunção de factores económicos, demográficos e culturais.

Seja como for, a prisão, no melhor dos casos, resolve apenas uma ínfima proporção da criminalidade, inclusive da mais violenta: nos Estados Unidos, onde, diga-se de passagem, os recursos dos sistemas policial e carcerário são grotescamente superdimensionados, as quatro milhões de ofensas mais sérias contra indivíduos identificadas em 1994 por sondagens de “vitimização” (homicídios, agressões e lesões corporais graves, estupros, roubos acompanhados de violência) deram origem, em razão da evaporação cumulativa nas diferentes etapas do processo penal, a menos de dois milhões de queixas à polícia, que resultaram em 780.000 mandados de prisão, que, por sua vez, conduziram, no final do processo, a apenas 117.000 encarceramentos, ou seja, 3% dos crimes cometidos.

Remédio que agrava o mal

Observa-se este mesmo “afunilamento” no funcionamento da justiça penal na França, onde menos de 2% dos litígios levados a juízo dão origem a uma pena de reclusão. Esta é mais uma evidência de que a prisão é inadaptada à luta contra a delinquência de pequeno e médio porte e muito menos contra “incivilidades” – que, na maioria, não são nem mesmo mencionadas no Código Penal (olhares atravessados, insultos, empurrões, ajuntamentos e badernas em locais públicos, degradações leves, etc.).

Em terceiro lugar, recorrer de maneira reflexa ao encarceramento para debelar as desordens urbanas é um remédio que, em muitos casos, só agrava o mal que supostamente se quer curar. Instituição fundamentada na força, a prisão, cuja acção resvala as fronteiras da legalidade, é um viveiro de violência e humilhação quotidianas, um vector de ruptura familiar, de desconfiança cívica e de alienação individual. Para um grande número de detentos implicados de maneira marginal em actividades ilícitas, a prisão é uma escola de formação e até de “profissionalização” de carreiras criminais. Para outros, cujo destino é igualmente sombrio, o encarceramento é um poço sem fundo, um inferno alucinatório que prolonga a lógica de destruição social por eles vivenciada do lado de fora, intensificando-a, na prisão, com a deterioração pessoal [4]. A história penal mostra, além disso, que em nenhum momento e em nenhuma sociedade, a prisão conseguiu cumprir a missão de recuperação e reintegração social que lhe fora atribuída, em termos de uma menor recidividade. Tudo, nela, contradiz a sua suposta função de "reforma" do condenado – da estrutura arquitectónica à organização do trabalho dos guardas, sem esquecer a indigência dos recursos institucionais (trabalho, formação, escolaridade, saúde), a rarefacção deliberada da liberdade condicional e a ausência de medidas concretas de auxílio aos detentos libertados.

Efeitos cruéis e desproporcionais

Por último, àqueles que justificam a intensificação da repressão penal nos bairros carentes com o argumento de que “a segurança é um direito, a falta de segurança é uma desigualdade social”, a qual atinge em particular os cidadãos das classes inferiores, é preciso lembrar que a reclusão carcerária assola, de maneira desproporcional, as categorias sociais mais frágeis económica e culturalmente, sendo os seus efeitos tanto mais cruéis quanto maior for a carência de recursos. Como os seus congéneres de outros países pós-industriais, os presidiários franceses provêm maciçamente das parcelas instáveis do proletariado urbano. Originários de famílias numerosas (dois terços têm pelo menos três irmãos), das quais se separaram ainda jovens (um em cada sete saiu de casa antes dos 15 anos), eles não obtiveram, em sua maioria, nenhum diploma escolar (três quartos abandonaram a escola antes dos 18 anos, em comparação com 48% da população de homens adultos) – situação que os condena para sempre aos sectores periféricos da esfera de trabalho.

Metade dessas pessoas é formada por filhos de operários e de empregados não qualificados; dentre os próprios presidiários, metade trabalha como operário; quatro em cada dez detentos têm um dos pais de origem estrangeira e 24 % nasceram, eles próprios, fora da França [5]. Ora, o encarceramento só intensifica a pobreza e o isolamento: 60% dos que saem da prisão ficam desempregados, em comparação com 50% no grupo dos que ingressam na prisão; 30% não recebem apoio nem são esperados por ninguém; mais de um quarto não dispõe de nenhum recurso financeiro (menos de 15 euros) para cobrir os gastos ocasionados por sua libertação; finalmente, um em cada oito detentos não tem onde ficar ao sair da prisão [6]. Além disso, o impacto deletério do encarceramento não se faz sentir unicamente sobre os presidiários, mas igualmente, e de maneira mais insidiosa e injusta, sobre a sua família. A deterioração da situação financeira, as dificuldades nas relações com amigos e vizinhos, a dissipação dos laços afectivos, os problemas que as crianças enfrentam na escola e os graves distúrbios psicológicos ligados ao sentimento de rejeição tornam ainda mais pesado o fardo penal imposto aos pais e cônjuges dos presidiários.

Debate desconectado

De resto, o argumento que naturalmente vem à mente – segundo o qual o aumento da população carcerária se traduziria necessariamente por uma redução automática da criminalidade, em razão do efeito de “neutralização” que teria sobre os condenados, privados, assim, da possibilidade de infringir a lei – revela-se capcioso quando cuidadosamente examinado. Na verdade, a partir do momento em que é aplicado à delinquência esporádica, o encarceramento em massa significa “recrutar” novos delinquentes para suceder aos primeiros. Assim, um pequeno traficante de drogas encarcerado é imediatamente substituído por outro, desde que subsista uma procura rentável pela mercadoria e que as previsões de lucro valham a pena. E se o sucessor for um novato sem reputação na praça, será mais propenso a usar de violência para se estabelecer e firmar o seu comércio – o que, por sua vez, se traduzirá globalmente por um aumento do número de infracções.

Para evitar uma escalada penal sem fim e sem saída, é preciso reconectar o debate sobre a delinquência com uma questão importante deste início de século, actualmente encoberta pelo próprio debate: o advento do emprego "des­socializado", vector de insegurança social e de precariedade material, familiar, escolar, sanitária e até mental – pois não é possível organizar a percepção do mundo social e conceber o futuro quando o presente permanece obstruído, transformando­‑se numa luta sem trégua para a sobrevivência no dia-a-dia.

A finalidade, aqui, não é negar a realidade da criminalidade nem a necessidade de encontrar a solução – ou melhor, as soluções –, inclusive no plano penal, quando o caso exigir. O objectivo é compreender exactamente a sua génese, a sua fisionomia cambiante e as suas ramificações, “encaixando” novamente a criminalidade no sistema completo de relações de força e de sentido da qual ela constitui a expressão. Para isso, é indispensável cessar de devorar os inúmeráveis discursos apocalípticos e abrir um debate racional e bem-informado sobre as ilegalidades (no plural), as suas repercussões e as suas significações. Este debate deve, primeiramente, explicar por que se focaliza em uma ou outra manifestação da delinquência – nas escadas dos conjuntos residenciais e não nos corredores das prefeituras, no roubo de maletas e celulares e não na malversação de operações financeiras ou nas infracções à legislação laboral e fiscal, por exemplo [7].

O medo e a criminalidade em si

O debate deve ir além do curto prazo e da comoção suscitada pelo noticiário e discernir entre as variações de humor e as manifestações mais profundas de um fenómeno, entre as mudanças acidentais e as tendências de longo prazo. Deve distinguir, por um lado, a recrudescência do medo, da intolerância e da preocupação para com a criminalidade e, por outro lado, o aumento da criminalidade em si. Acima de tudo, uma política inteligente sobre a insegurança criminal deve reconhecer que os actos de delinquência são o produto não de uma deliberação individual autónoma e singular, mas de uma rede de causas e razões múltiplas que se entrelaçam segundo lógicas variadas (predação, exibicionismo, alienação, transgressão, contestação da autoridade, etc.) e que, por conseguinte, a delinquência exige soluções múltiplas, que mobilizem uma série de mecanismos de contenção e de canalização para outras actividades. De difícil aplicação, a solução policial e penal, que alguns consideram como panaceia, constitui, em muitas circunstâncias, uma emenda pior que o soneto quando contabilizados os “efeitos colaterais”.

A criminalidade é um problema sério demais para que seja tratado por especialistas de mentira e ideólogos de verdade, ou – pior ainda –, por policiais e políticos ávidos de explorar o problema, sem o examinar nem controlar. As suas evoluções exigem não que se renuncie, mas que se lance uma nova abordagem sociológica, que constitui a única maneira de arrancar o debate do âmbito do exibicionismo securitário, cessando, assim, de reduzir a luta contra a delinquência a um espectáculo ritual, que serve apenas para satisfazer aos fantasmas de ordem pública idealizados pelo eleitorado e para evidenciar a autoridade viril dos dirigentes do Estado.

A prisão não é um simples escudo contra a delinquência, mas uma faca de dois gumes – um organismo de coerção, ao mesmo tempo criminofágico e criminogénico que, quando se desenvolve em excesso, como nos Estados Unidos nos últimos 25 anos e na União Soviética na era estalinista, acaba por transformar-se num vector autónomo de pauperização e de marginalização.
 
________
* Le Monde Diplomatique – Edição Brasileira
 Professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, e da New School for Social Research, Nova York. Este texto foi extraído do último capítulo de Punir les pauvres: Le nouveau gouvernement de l’insécurité sociale (Punir os pobres: O novo governo da insegurança social), publicado em Setembro pela ed. Agone, Marselha.
 [1] Cf. Observatoire International des Prisons, Les Conditions de Détention en France. Relatório 2003, ed. La Découverte, Paris, 2003.
 [2] Ler os capítulos correspondentes a estas infracções em Laurent Mucchielli e Philippe Robert (dir.), Crime et sécurité. L’état des savoirs, ed. La Découverte, Paris, 2002.
 [3] Nils Christie, L’Industrie de la punition. Prison et politique pénale en Occident, ed. Autrement, Paris, (2000) 2003.
 [4] Jean-Marc Rouillan, "Chroniques Carcérales", in Lettre à Jules, ed. Agone, Marselha, 2004, e Claude Lucas, Suerte. La Réclusion Volontaire, ed. Plon, Paris, 1995.
[5] Cf. Francine Cassan e Laurent Toulemont, "L’histoire Familiale des Hommes Détenus", INSEE Première, n.° 706, Abril de 2000.
 [6] In Maud Guillonneau, Annie Kensey e Philippe Mazuet, "Les ressources des sortants de prison", Les Cahiers de Démographie Pénitentiaire, n.° 5, Fevereiro de 1998.
 [7] Em 1996, a fraude fiscal e alfandegária representava 100 bilhões de francos; a fraude relativa ao pagamento de encargos sociais, mais de 17 bilhões; as falsificações, cerca de 25 bilhões de francos. Paralelamente, o contravalor monetário de atentados voluntários contra a vida de outrém foi avaliado em 11 bilhões de francos; o de roubos de veículos, em 4 bilhões de francos e o de furtos em lojas, em 250 milhões de francos – in Christophe Paille e Thierry Godefroy, Coûts du Crime. Une Estimation Monétaire des Infractions en 1996, CESDIP, Guyancourt, 1999.

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NUESTRO INDIOS – Manuel González Prada

NUESTROS INDIOS

Por Manuel González Prada,

Horas de lucha

     Los más prominentes sociólogos consideran la Sociología como una ciencia en formación y claman por el advenimiento de su Newton, de su Lavoisier o de su Lydell; sin embargo, en ningún libro pulula tanta afirmación dogmática o arbitraria como en las obras elaboradas por los herederos o epígonos de Comte. Puede llamarse a la Sociología no sólo el arte de dar nombres nuevos a las cosas viejas sino la ciencia de las afirmaciones contradictorias. Si un gran sociólogo enuncia una proposición, estemos seguros que otro sociólogo no menos grande aboga por la diametralmente opuesta. Como algunos pedagogos recuerdan a los preceptores de Scribe, así muchos sociólogos hacen pensar en los médicos de Molière: Le Bon1 y Tarde no andan muy lejos de Diafoirus y Purgón.

     Citemos la raza como uno de los puntos en que más divergen los autores. Mientras unos miran en ella el principal factor de la dinámica social y resumen la historia en una lucha de razas, otros reducen a tan poco el radio de las acciones étnicas que repiten con Durkheim: No conocemos ningún fenómeno social que se halle colocado bajo la dependencia incontestable de la raza. Novicow, sin embargo de juzgar exagerada la opinión de Durkheim, no vacila en afirmar que la raza, como la especie, es, hasta cierto punto, una categoría subjetiva de nuestro espíritu, sin realidad exterior; y exclama en un generoso arranque de humanidad: Todas estas pretendidas incapacidades de los amarillos y los negros son quimeras de espíritus enfermos. Quien se atreva a decir a una raza: aquí llegarás y de aquí no pasarás, es un ciego y un insensato.

     ¡Cómoda invención la Etnología en manos de algunos hombres! Admitida la división de la Humanidad en razas superiores y razas inferiores, reconocida la superioridad de los blancos y por consiguiente su derecho a monopolizar el gobierno del Planeta, nada más natural que la supresión del negro en Africa, del piel roja en Estados Unidos, del tágalo en Filipinas, del indio en el Perú. Como en la selección o eliminación de los débiles e inadaptables se realiza la suprema ley de la vida, los eliminadores o supresores violentos no hacen más que acelerar la obra lenta y perezosa de la Naturaleza: abandonan la marcha de la tortuga por el galope del caballo. Muchos no lo escriben, pero lo dejan leer entre líneas, como Pearson cuando se refiere a la solidaridad entre los hombres civilizados de la raza europea frente a la Naturaleza y la barbarie humana. Donde se lee barbarie humana tradúzcase hombre sin pellejo blanco.

     Mas, no sólo se decreta ya la supresión de negros y amarillos: en la misma raza blanca se opera clasificaciones de pueblos destinados a engrandecerse y vivir y pueblos condenados a degenerar y morir. Desde que Demolins publicó su libro A quoi tient la supériorité des Anglo-Saxonsa, ha recrudecido la moda de ensalzar a los anglosajones y deprimir a los latinos. (Aunque algunos latinos pueden llamarse tales, como Atahualpa gallego y Moctezuma provenzal). En Europa y América asistimos a la florescencia de muchas Casandras que viven profetizando el incendio y desaparición de la nueva Troya. Algunos pesimistas2, creyéndose los Deucaliones del próximo diluvio y hasta los superhombres de Nietzsche, juzgan la desaparición de su propia raza como si se tratara de seres prehistóricos o de la Luna. No se ha formulado pero se sigue un axioma: crímenes y vicios de ingleses o norteamericanos son cosas inherentes a la especie humana y no denuncian la decadencia de un pueblo; en cambio, crímenes y vicios de franceses o italianos son anomalías y acusan degeneración de raza. Felizmente Oscar Wilde y el general Mac Donald no nacieron en París ni la mesa redonda del Emperador Guillermo tuvo sus sesiones en Roma.

     Nos parece inútil decir que no tomamos en serio a los dilettanti como Paul Bourget ni a los fumistes como Maurice Barrés, cuando fulminan rayos sobre el cosmopolitismo y lloran la decadencia de la noble raza francesa, porque la hija de un conde sifilítico y de una marquesa pulmoniaca se deja seducir por un mocetón sano y vigoroso pero sin cuarteles de nobleza. Respecto a Monsieur Gustave Le Bon, le debemos admirar por su vastísimo saber y su gran elevación moral, aunque representa la exageración de Spencer, como Max Nordau la de Lombroso y Haeckel la de Darwin. Merece llamarse el Bossuet de la Sociología, por no decir el Torquemada ni el Herodes. Si no se hiciera digno de consideración por sus observaciones sobre la luz negra, diríamos que es a la Sociología como el doctor Sangredo es a la Medicina.

     Le Bon nos avisa que de ningún modo toma el término de raza en el sentido antropológico, porque, desde hace mucho tiempo, las razas puras han desaparecido casi, salvo en los pueblos salvajes, y para que tengamos un camino seguro por donde marchar, decide: En los pueblos civilizados, no hay más que razas históricas, es decir, creadas del todo por los acontecimientos de la Historia. Según el dogmatismo leboniano, las naciones hispanoamericanas constituyen ya una de esas razas pero una raza tan singular que ha pasado vertiginosamente de la niñez a la decrepitud, salvando en menos de un siglo la trayectoria recorrida por otros pueblos en tres, cuatro, cinco y hasta seis mil años. Las 22 repúblicas latinas de Américab dice en su Psychologie du Socialisme, aunque situadas en las comarcas más ricas del Globo, son incapaces de aprovechar sus inmensos recursos… el destino final de esta mitad de América es regresar a la barbarie primitiva, a menos que los Estados Unidos le presten el inmenso servicio de conquistarla… Hacer bajar las más ricas comarcas del Globo al nivel de las repúblicas negras de Santo Domingo y Haití: he ahí lo que la raza latina ha realizado en menos de un siglo con la mitad de América.

      A Le Bon le podrían argüir que toma la erupción cutánea de un niño por la gangrena senil de un nonagenario, la hebefrenia de un mozo por la locura homicida de un viejo. ¿Desde cuándo las revoluciones anuncian decrepitud y muerte? Ninguna de las naciones hispanoamericanas ofrece hoy la miseria política y social que reinaba en la Europa del feudalismo; pero a la época feudal se la considera como una etapa de la evolución, en tanto que a la era de las revoluciones hispanoamericanas se la mira como un estado irremediable y definitivo. También le podríamos argüir colocando a Le Bon el optimista frente a Le Bon el pesimista, como quien dice a San Agustín el obispo contra San Agustín el pagano, Es posible, afirma Le Bon, que tras una serie de calamidades profundas, de trastornos casi nunca vistos en la Historia, los pueblos latinos, aleccionados por la experiencia… tienten la ruda empresa de adquirir las cualidades que les falta para de ahí adelante lograr buen éxito en la vida… Los apóstoles pueden mucho porque logran transformar la opinión, y la opinión es hoy reina… La Historia se halla tan llena de imprevisto, el mundo anda en camino de sufrir modificaciones tan profundas, que es imposible prever hoy el destino de los imperios. Si no cabe prever la suerte de las naciones, ¿cómo anuncia la muerte de las repúblicas hispanoamericanas? ¿Lo que pueden realizar en Europa los imperios latinos, no podrán tentarlo en el Nuevo Mundo las naciones de igual origen? O ¿habrá dos leyes sociológicas, una para los latinos de América y otra para los latinos de Europa? Quizás; pero, felizmente, las afirmaciones de Le Bon se parecen a los clavos, las unas sacan a las otras c.

     Se ve, pues, que si Augusto Comte pensó hacer de la Sociología una ciencia eminentemente positiva, algunos de sus herederos la van convirtiendo en un cúmulo de divagaciones sin fundamento científico.

    

II

     En La lucha de las razas, Luis Gumplowicz dice: Todo elemento étnico esencial potente busca para hacer servir a sus fines todo elemento débil que se encuentra en su radio de potencia o que penetre en éld. Primero los Conquistadores, en seguida sus descendientes, formaron en los países de América un elemento étnico bastante poderoso para subyugar y explotar a los indígenas. Aunque se tache de exagerables las afirmaciones de Las Casas, no puede negarse que merced a la avarienta crueldad de los explotadores, en algunos pueblos americanos el elemento débil se halla próximo a extinguirse. Las hormigas que domestican pulgones para ordeñarlos, no imitan la imprevisión del blanco, no destruyen a su animal productivo.

     A la fórmula de Gumplowicz conviene agregar una ley que influye mucho en nuestro modo de ser: cuando un individuo se eleva sobre el nivel de su clase social, suele convertirse en el peor enemigo de ella. Durante la esclavitud del negro, no hubo caporales más feroces que los mismos negros; actualmente, no hay quizá opresores tan duros del indígena como los mismos indígenas españolizados e investidos de alguna autoridad.

     El verdadero tirano de la masa, el que se vale de unos indios para esquilmar y oprimir a los otros es el encastado, comprendiéndose en esta palabra tanto al cholo de la sierra o mestizo como al mulato y al zambo de la costa. En el Perú vemos una superpoblación étnica: excluyendo a los europeos y al cortísimo número de blancos nacionales o criollos, la población se divide en dos fracciones muy desiguales por la cantidad, los encastados o dominadores y los indígenas o dominados. Cien a doscientos mil individuos se han sobrepuesto a tres millones.

     Existe una alianza ofensiva y defensiva, un cambio de servicios entre los dominadores de la capital y los de provincia: si el gamonal de la sierra sirve de agente político al señorón de Lima, el señorón de Lima defiende al gamonal de la sierra cuando abusa bárbaramente del indio. Pocos grupos sociales han cometido tantas iniquidades ni aparecen con rasgos tan negros como los españoles y encastados en el Perú. Las revoluciones parecen nada ante la codicia glacial de los encastados para sacar el jugo a la carne humana. Muy poco les ha importado el dolor y la muerte de sus semejantes, cuando ese dolor y esa muerte les ha rendido unos cuantos soles de ganancia. Ellos diezmaron al indio con los repartimientos3 y las mitas4; ellos importaron al negro para hacerle gemir bajo el látigo de los caporales; ellos devoraron al chino, dándole un puñado de arroz por diez y hasta quince horas de trabajo; ellos extrajeron de sus islas al canaca para dejarle morir de nostalgia en los galpones de las haciendas; ellos pretenden introducir hoy al japonése. El negro parece que disminuye, el chino va desapareciendo, el canaca no ha dejado huella, el japonés no da señales de prestarse a la servidumbre; mas queda el indio, pues trescientos a cuatrocientos años de crueldades no han logrado exterminarle ¡el infame se encapricha en vivir!

     Los Virreyes del Perú no cesaron de condenar los atropellos ni ahorraron diligencias para lograr la conservación, buen tratamiento y alivio de los Indios; los Reyes de España, cediendo a la conmiseración de sus nobles y católicas almas, concibieron medidas humanitarias o secundaron las iniciadas por los Virreyes. Sobraron los buenos propósitos en las Reales Cédulas. Ignoramos si las Leyes de Indias forman una pirámide tan elevada como el Chimborazo; pero sabemos que el mal continuaba lo mismo, aunque algunas veces hubo castigos ejemplares. Y no podía suceder de otro modo: oficialmente se ordenaba la explotación del vencido y se pedía humanidad y justicia a los ejecutores de la explotación; se pretendía que humanamente se cometiera iniquidades o equitativamente se consumara injusticias. Para extirpar los abusos, habría sido necesario abolir los repartimientos y las mitas, en dos palabras, cambiar todo el régimen colonial. Sin las faenas del indio americano, se habrían vaciado las arcas del tesoro español. Los caudales enviados de las colonias a la Metrópoli no eran más que sangre y lágrimas convertidas en oro.

     La República sigue las tradiciones del Virreinato. Los Presidentes en sus mensajes abogan por la redención de los oprimidos y se llaman protectores de la raza indígena5; los congresos elaboran leyes que dejan atrás a la Declaración de los derechos del hombre; los ministros de Gobierno expiden decretos, pasan notas a los prefectos y nombran delegaciones investigadoras, todo con el noble propósito de asegurar las garantías de la clase desheredada; pero mensajes, leyes, decretos, notas y delegaciones se reducen a jeremiadas hipócritas, a palabras sin eco, a expedientes manoseados. Las autoridades que desde Lima imparten órdenes conminatorias a los departamentos, saben que no serán obedecidas; los prefectos que reciben las conminaciones de la Capital saben también que ningún mal les resulta de no cumplirlas. Lo que el año 1648 decía en su Memoria el Marqués de Mancera, debe repetirse hoy, leyendo gobernadores y hacendados en lugar de corregidores y caciques: Tienen por enemigos estos pobres Indios la codicia de sus Corregidores, de sus Curas y de sus Caciques, todos atentos a enriquecer de su sudor; era menester el celo y autoridad de un Virrey para cada uno; en fe de la distancia, se trampea la obediencia, y ni hay fuerza ni perseverancia para proponer segunda vez la quexaf. El trampear la obediencia vale mucho en boca de un virrey; pero vale más la declaración escapada a los defensores de los indígenas de Chucuitog.

     No faltan indiófilos que en sus iniciativas individuales o colectivas procedan como los Gobiernos en su acción oficial. Las agrupaciones formadas para libertar a la raza irredenta no han pasado de contrabandos políticos abrigados con bandera filantrópica. Defendiendo al indio se ha explotado la conmiseración, como invocando a Tacna y Arica se negocia hoy con el patriotismo. Para que los redentores procedieran de buena fe, se necesitaría que de la noche a la mañana sufrieran una transformación moral, que se arrepintieran al medir el horror de sus iniquidades, que formaran el inviolable propósito de obedecer a la justicia, que de tigres se quisieran volver hombres. ¿Cabe en lo posible?

     Entre tanto, y por regla general, los dominadores se acercan al indio para engañarle, oprimirle o corromperle. Y debemos rememorar que no sólo el encastado nacional procede con inhumanidad o mala fe: cuando los europeos se hacen rescatadores de lana, mineros o hacendados, se muestran buenos exactores y magníficos torsionarios, rivalizan con los antiguos encomenderos y los actuales hacendados. El animal de pellejo blanco, nazca donde naciere, vive aquejado por el mal del oro6: al fin y al cabo cede al instinto de rapacidad.

    

III

     Bajo la República ¿sufre menos el indio que bajo la dominación española? Si no existen corregimientos ni encomiendas, quedan los trabajos forzados y el reclutamiento. Lo que le hacemos sufrir basta para descargar sobre nosotros la execración de las personas humanas. Le conservamos en la ignorancia y la servidumbre, le envilecemos en el cuartel, le embrutecemos con el alcohol, le lanzamos a destrozarse en las guerras civiles y de tiempo en tiempo organizarnos cacerías y matanzas como las de Amantani, Llave y Huantah.

     No se escribe pero se observa el axioma de que el indio no tiene derechos sino obligaciones. Tratándose de él, la queja personal se toma por insubordinación, el reclamo colectivo por conato de sublevación. Los realistas españoles mataban al indio cuando pretendía sacudir el yugo de los conquistadores, nosotros los republicanos nacionales le exterminamos cuando protesta de las contribuciones onerosas, o se cansa de soportar en silencio las iniquidades de algún sátrapa.

      Nuestra forma de gobierno se reduce a una gran mentira, porque no merece llamarse república democrática un estado en que dos o tres millones de individuos viven fuera de la ley7. Si en la costa se divisa una vislumbre de garantías bajo un remedo de república, en el interior se palpa la violación de todo derecho bajo un verdadero régimen feudal. Ahí no rigen Códigos ni imperan tribunales de justicia, porque hacendados y gamonales dirimen toda cuestión arrogándose los papeles de jueces y ejecutores de las sentencias. Las autoridades políticas, lejos de apoyar a débiles y pobres, ayudan casi siempre a ricos y fuertes. Hay regiones donde jueces de paz y gobernadores pertenecen a la servidumbre de la hacienda. ¿Qué gobernador, qué subprefecto ni qué prefecto osaría colocarse frente a frente de un hacendado?

     Una hacienda se forma por la acumulación de pequeños lotes arrebatados a sus legítimos dueños, un patrón ejerce sobre sus peones la autoridad de un barón normando. No sólo influye en el nombramiento de gobernadores, alcaldes y jueces de paz, sino que hace matrimonios, designa herederos, reparte las herencias, y para que los hijos satisfagan las deudas del padre, les somete a una servidumbre que suele durar toda la vida. Impone castigos tremendos como la corma, la flagelación, el cepo de campaña y la muerte; risibles, como el rapado del cabello y las enemas de agua fría. Quien no respeta vidas ni propiedades realizaría un milagro si guardara miramientos a la honra de las mujeres: toda india, soltera o casada, puede servir de blanco a los deseos brutales del señor. Un rapto, una violación y un estupro no significan mucho cuando se piensa que a las indias se las debe poseer de viva fuerza. Y a pesar de todo, el indio no habla con el patrón sin arrodillarse ni besarle la mano. No se diga que por ignorancia o falta de cultura de los señores territoriales proceden así: los hijos de algunos hacendados van niños a Europa, se educan en Francia o Inglaterra y vuelven al Perú con todas las apariencias de gentes civilizadas; mas apenas se confinan en sus haciendas, pierden el barniz europeo y proceden con más inhumanidad y violencia que sus padres: con el sombrero, el poncho y las roncadoras, reaparece la fiera. En resumen: las haciendas constituyen reinos en el corazón de la República, los hacendados ejercen el papel de autócratas en medio de la democracia.

    

IV

     Para cohonestar la incuria del Gobierno y la inhumanidad de los expoliadores, algunos pesimistas a lo Le Bon marcan en la frente del indio un estigma infamatorio: le acusan de refractario a la civilización. Cualquiera se imaginaría que en todas nuestras poblaciones se levantan espléndidas escuelas, donde bullen eximios profesores muy bien rentados, y que las aulas permanecen vacías porque los niños, obedeciendo las órdenes de sus padres, no acuden a recibir educación. Se imaginaría también que los indígenas no siguen los moralizadores ejemplos de las clases dirigentes o crucifican sin el menor escrúpulo a todos los predicadores de ideas levantadas y generosas. El indio recibió lo que le dieron: fanatismo y aguardiente.

     Veamos ¿qué se entiende por civilización? Sobre la industria y el arte, sobre la erudición y la ciencia, brilla la moral como punto luminoso en el vértice de una gran pirámide. No la moral teológica fundada en una sanción póstuma, sino la moral humana, que no busca sanción ni la buscaría lejos de la Tierra. El summum de la moralidad, tanto para los individuos como para las sociedades, consiste en haber transformado la lucha de hombre contra hombre en el acuerdo mutuo para la vida8. Donde no hay justicia, misericordia ni benevolencia, no hay civilización; donde se proclama ley social la strugle for life, reina la barbarie9. ¿Qué vale adquirir el saber de un Aristóteles cuando se guarda el corazón de un tigre? ¿Qué importa poseer el don artístico de un Miguel Angel cuando se lleva el alma de un cerdo? Más que pasar por el mundo derramando la luz del arte o de la ciencia, vale ir destilando la miel de la bondad. Sociedades altamente civilizadas merecerían llamarse aquellas donde practicar el bien ha pasado de obligación a costumbre, donde el acto bondadoso se ha convertido en arranque instintivo. Los dominadores del Perú ¿han adquirido ese grado de moralización? ¿Tienen derecho de considerar al indio como un ser incapaz de civilizarse?

     La organización política y social del antiguo imperio incaico admira hoy a reformadores y revolucionarios europeos. Verdad, Atahualpa no sabía el padrenuestro ni Calcuchima pensaba en el misterio de la Trinidad; pero el culto del Sol era quizá menos absurdo que la Religión católica, y el gran Sacerdote de Pachacamac no vencía tal vez en ferocidad al padre Valverde. Si el súbdito de Huaina-Cápac admitía la civilización, no encontramos motivo para que el indio de la República la rechace, salvo que toda la raza hubiera sufrido una irremediable decadencia fisiológica. Moralmente hablando, el indígena de la República se muestra inferior al indígena hallado por los conquistadores; mas depresión moral a causa de servidumbre política no equivale a imposibilidad absoluta para civilizarse por constitución orgánica. En todo caso, ¿sobre quién gravitaría la culpa?

      Los hechos desmienten a los pesimistas. Siempre que el indio se instruye en colegios o se educa por el simple roce con personas civilizadas, adquiere el mismo grado de moral y cultura que el descendiente del español. A cada momento nos rozamos con amarillos que visten, comen y piensan como los melifluos caballeros de Lima. Indios vemos en Cámaras, municipios, magistraturas, universidades y ateneos, donde se manifiestan ni más venales ni más ignorantes que los de otras razas. Imposible deslindar responsabilidades en el totum revolutis de la política nacional para decir qué mal ocasionaron los mestizos, los mulatos y los blancos. Hay tal promiscuidad de sangres y colores, representa cada individuo tantas mezclas lícitas o ilícitas, que en presencia de muchísimos peruanos quedaríamos perplejos para determinar la dosis de negro y amarillo que encierran en sus organismos: nadie merece el calificativo de blanco puro, aunque lleve azules los ojos y rubio el cabello. Sólo debemos recordar que el mandatario con mayor amplitud de miras perteneció a la raza indígena, se llamaba Santa Cruz10. Lo fueron cien más, ya valientes hasta el heroísmo como Cahuide; ya fieles hasta el martirio como Olaya11.

     Tiene razón Novicow al afirmar que las pretendidas incapacidades de los amarillos y los negros son quimeras de espíritus enfermos. Efectivamente, no hay acción generosa que no pueda ser realizada por algún negro ni por algún amarillo, como no hay acto infame que no pueda ser cometido por algún blanco. Durante la invasión chilena en 1900, los amarillos del Japón dieron lecciones de humanidad a los blancos de Rusia y Alemania. No recordamos si los negros de Africa las dieron alguna vez a los boers del Transvaal o a los ingleses del Cabo: sabemos sí que el anglosajón Kitchener se muestra tan feroz en el Sudán como Behanzin en el Dahomey. Si en vez de comparar una muchedumbre de piel blanca con otras muchedumbres de piel oscura, comparamos un individuo con otro individuo, veremos que en medio de la civilización blanca abundan cafres y pieles rojas por dentro. Como flores de raza u hombres representativos, nombremos al Rey de Inglaterra y al Emperador de Alemania: Eduardo VII y Guillermo II ¿merecen compararse con el indio Benito Juárez y con el negro Booker Washington? Los que antes de ocupar un trono vivieron en la taberna, el garito y la mancebía, los que desde la cima de un imperio ordenan la matanza sin perdonar a niños, ancianos ni mujeres, llevan lo blanco de la piel mas esconden lo negro en el alma.

     ¿De sólo la ignorancia depende el abatimiento de la raza indígena? Cierto, la ignorancia nacional parece una fábula cuando se piensa que en muchos pueblos del interior no existe un solo hombre capaz de leer ni de escribir, que durante la guerra del Pacífico los indígenas miraban la lucha de las dos naciones como una contienda civil entre el general Chile y el general Perú, que no hace mucho los emisarios de Chucuito se dirigieron a Tacna figurándose encontrar ahí al Presidente de la República.

     Algunos pedagogos (rivalizando con los vendedores de panaceas) se imaginan que sabiendo un hombre los afluentes del Amazonas y la temperatura media de Berlín, ha recorrido la mitad del camino para resolver todas las cuestiones sociales. Si por un fenómeno sobrehumano, los analfabetos nacionales amanecieran mañana, no sólo sabiendo leer y escribir, sino con diplomas universitarios, el problema del indio no habría quedado resuelto: al proletariado de los ignorantes, sucedería el de los bachilleres y doctores. Médicos sin enfermos, abogados sin clientela, ingenieros sin obras, escritores sin público, artistas sin parroquianos, profesores sin discípulos, abundan en las naciones más civilizadas formando el innumerable ejército de cerebros con luz y estómagos sin pan. Donde las haciendas de las costas suman cuatro o cinco mil fanegadas, donde las estancias de la sierra miden treinta y hasta cincuenta leguas, la nación tiene que dividirse en señores y siervos.

      Si la educación suele convertir al bruto impulsivo en un ser razonable y magnánimo, la instrucción le enseña y le ilumina el sendero que debe seguir para no extraviarse en las encrucijadas de la vida. Mas divisar una senda no equivale a seguirla hasta el fin, se necesita firmeza en la voluntad y vigor en los pies. Se requiere también poseer un ánimo sin altivez y rebeldía, no de sumisión y respeto como el soldado y el monje. La instrucción puede mantener al hombre en la bajeza y la servidumbre: instruidos fueron los eunucos y gramáticos de Bizancio. Ocupar en la Tierra el puesto que le corresponde en vez de aceptar el que le designan: pedir y tomar su bocado; reclamar su techo y su pedazo de terruño, es el derecho de todo ser racional.

     Nada cambia más pronto ni más radicalmente la psicología del hombre que la propiedad: al sacudir la esclavitud del vientre, crece en cien palmos. Con sólo adquirir algo, el individuo asciende algunos peldaños en la escala social, porque las clases se reducen a grupos clasificados por el monto de la riqueza. A la inversa del globo aerostático, sube más el que más pesa. Al que diga: la escuela, respondásele: la escuela y el pan.

     La cuestión del indio, más que pedagógica, es económica, es social. ¿Cómo resolverla? No hace mucho que un alemán concibió la idea de restaurar el Imperio de los Incas: aprendió el quechua, se introdujo en las indiadas del Cusco, empezó a granjearse partidarios, y tal vez habría intentado una sublevación, si la muerte no le hubiera sorprendido al regreso de un viaje por Europa. Pero ¿cabe hoy semejante restauración? Al intentarla, al querer realizarla, no se obtendría más que el empequeñecido remedo de una grandeza pasada.

     La condición del indígena puede mejorar de dos maneras: o el corazón de los opresores se conduele al extremo de reconocer el derecho de los oprimidos, o el ánimo de los oprimidos adquiere la virilidad suficiente para escarmentar a los opresores. Si el indio aprovechara en rifles y cápsulas todo el dinero que desperdicia en alcohol y fiestas, si en un rincón de su choza o en el agujero de una peña escondiera un arma, cambiaría de condición, haría respetar su propiedad y su vida. A la violencia respondería con la violencia, escarmentando al patrón que le arrebata las lanas, al soldado que le recluta en nombre del Gobierno, al montonero que le roba ganado y bestias de carga.

     Al indio no se le predique humildad y resignación sino orgullo y rebeldía. ¿Qué ha ganado con trescientos o cuatrocientos años de conformidad y paciencia? Mientras menos autoridades sufra, de mayores daños se liberta. Hay un hecho revelador: reina mayor bienestar en las comarcas más distantes de las grandes haciendas, se disfruta de más orden y tranquilidad en los pueblos menos frecuentados por las autoridades.

     En resumen: el indio se redimirá merced a su esfuerzo propio, no por la humanización de sus opresores. Todo blanco es, más o menos, un Pizarro12, un Valverde13 o un Areche14.

     1904


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Para leer el próximo ensayo de Horas de lucha.


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Notas del autor
     aDon Víctor Arreguine le ha contestado con el libro En qué consiste la superioridad de los Latinos sobre los Anglo-sajones (Buenos Aires 1900) Según Arreguine, la larga obra del señor Demolins, ampliación de un capítulo de Taine sobre la educación inglesa, en lo que tiene ella de bueno, antes que obra de imparcial serenidad, es un alegato anglómano con acentuado sabor a conferencia pedagógica, no obstante lo cual ha turbado a muchos cerebros latinos con lo que llamaremos marco de la novedad [MGP].

     b¿De dónde saca el autor esas 22 repúblicas? No hay aquí un error tipográfico porque en una nota de la página 40 escribe: il faut ignorer d’une façon bien complète l’histoire de Saint-Domingue, d’Haiti, celle des vingtdeux républiques hispanoaméricanes et celle des Etats-Unis [MGP].

     cAcaba de afirmar que los apóstoles pueden mucho porque logran transformar la opinión, etc. En las páginas 451 y 452 expresa lo contrario- Nos pensées, etc [MGP].

     d Traducción anónima de la España Moderna, Madrid [MGP].

     e Cuando en el Perú se habla de inmigración, no se trata de procurarse hombres libres que por cuenta propia labren el suelo y al cabo de algunos años se conviertan en pequeños propietarios: se quiere introducir parias que enajenen su libertad y por el mínimum de jornal proporcionen el máximo de trabajo [MGP].

     f Memorias de los Virreyes del Perú, Marqués de Mancera y Conde de Salvatierra, publicadas por José Toribio Polo. Lima, 1899 [MGP].

     g La Raza Indígena del Perú en los albores del siglo XX (página VI, segundo folleto). Lima, 1903 [MGP].

     h Una persona verídica y bien informada nos proporciona los siguientes datos: "Masacre de Amantani.- Apenas inaugurada la primera dictadura de Piérola, los indios de Amantani, isla del Titicaca, lincharon a un gamonal que había cometido la imprudencia de obligarles a hacer ejercicios militares. La respuesta fue el envío de Puno de dos buques armados en guerra, que bombardearon ferozmente la isla, de las 6 de la mañana a las 6 de la tarde. La matanza fue horrible, sin que hasta ahora se sepa el número de indios que ese día perecieron, sin distinción de edad ni sexo. Sólo se ven esqueletos que aún blanquean metidos de medio cuerpo en las grietas de los peñascos, en actitud de refugiarse". Ilave y Huanta se consumaron en la segunda administración de Piérola [MGP].


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Notas del editor
     1Gustave Le Bon (1841-1931) fue un psicólogo y sociólogo de Francia que tuvo mucho impacto en Latinoamérica. Su obra se concentra en los rasgos nacionales, degenerando frecuentemente en teoría racialista y aun racista. Entre sus varios libros figura Psychologie des foules (1895) que se tradujo al inglés con el título de The Crowd: A Study of the Popular Mind (1897). González Prada le presta mucha atención, para refutarlo [TW].

     2González Prada no es el primero en dividir a los sociólogos en optimistas y pesimistas. El puertorriqueño Eugenio María de Hostos, cuando trabajaba en la prensa de Lima, llegó a la misma conclusión en su ensayo "El Cholo", La Sociedad, 23 de diciembre de 1870, pp. 3c-d. Ensayo parecido es "El chino", La Sociedad, 17 de diciembre de 1870, pp. 2f-a. La Sociedad era una publicación ultracatólica y Hostos firmó estos dos artículos con un nombre de pluma, El Observador [TW].

     3El repartimiento es exactamente lo que se intuye de la palabra, era un sistema de repartir a los indígenas entre los españoles que colonizaban el Nuevo Mundo. Se empleaba en la Nueva España, Centroamérica, el Perú, y otras regiones. A veces se conoció por nombres regionales, coatequitl en Nueva España, mita en el Perú. Todavía el mejor libro de consulta, que también distingue el repartimiento de la estructura paralela encomienda, es Charles Gibson, Spain in America, New York: 1966 [TW].

     4La mita fue un sistema de labor forzada durante la época de dominación incaica del Perú. Después de la conquista, los españoles la adoptaron como una forma barata de minar el oro y la plata [TW].

     5Creo que Nicolás de Piérola se proclamó el Protector de la Raza Indígena. De ser así, por la óptica de González Prada, sería pura hipocresía [TW].

     6Según el Diccionario de la Real Academia, el mal de oro se entiende como un "influjo maléfico que, según se cree vanamente, puede una persona ejercer sobre otra mirándola de cierta manera, y con particularidad sobre los niños" (DRAE, 22a, versión electrónica) [TW].

     7Después de "Los viejos a la tumba, los jóvenes a la obra", esta oración quizá sea la más citada de González Prada [TW].

     8Esta expresión, "el acuerdo mutuo para la vida" muestra la influencia del príncipe Kropoktin en el pensamiento de González Prada. Véase Petr, Kropotkin, Memoirs of a Revolutionist, Boston, 1899 y del mismo, Mutual Aid, ed. Ashley Montagu, Boston: Extending Horizons Books, 1955 [TW].

     9Como en otras ocasiones, González Prada invierte aquí la relación inversa de civilización y barbarie, popularizada por el escritor y político argentino, Domingo Faustino Sarmiento [TW].

     10Andrés de Santa Cruz (1792-1865) fue presidente de Bolivia entre 1829 y 1836, por los próximos tres años, 1836-1839 fue presidente de la Confederación Peruano-Boliviana. Con su amigo cuzqueño el general Agustín Gamarra, fue autor de numerosas intrigas durante las primeras décadas de la república [TW].

     11José Olaya, héroe peruano en la guerra para la independencia, llamado el mártir. Fue un pescador de Chorrillos que entregaba mensajes a los patriotas de Lima nadando de Chorrillos a la capital. Fue capturado y torturado por las autoridades españoles y ejecutado en la Plaza de Armas, Lima [TW].

     12Francisco Pizarro, el conquistador español que pudo engañar a Atahualpa (noviembre de 1532) en Cajamarca y apoderarse de Tahuantinsuyo, el estado incaico [TW].

     13El padre Valverde, acompañó a Pizarro a Cajamarca y leyó con un traductor el famoso "requerimiento" en que proclamaba que los quechuas tenían que aceptar el cristianismo o sufrir una guerra justa. Cuando Atahualpa vio la Biblia dijo que sus palabras no le hablaban y lo dejó caer (o lo arrojó) al suelo. En tal instante el clérigo gritó a Pizarro que comenzara el ataque. Sobre este episodio puede consultarse Peter Klarén, Peru: Society and Nationhood in the Andes (New York: University of Oxford Press, 2000), págs. 36-37 [TW].

     14Antonio Arreche, Visitador General español en el Perú hacía el final del siglo XVIII. Introdujo el sistema francés de las intendencias. Había muchas reformas económicas que crearon inestabilidad entre las poblaciones indígenas lo cual dejo apertura para la rebelión indígena de Túpac Amaru II, lo cual Areche suprimió (a un costo enorme), tratando de abolir asimismo a los curacas (caciques andinos). Se recuerda a Areche por su crueldad [TW].

IN: http://www.evergreen.loyola.edu/~tward/GP/

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O TEMPO – SUBSTÂNCIA

O TEMPO – SUBSTÂNCIA DO CAPITALISMO *
por João Bernardo

A lógica do texto escrito difere do impulso da viva voz, e o que exige no papel uma explanação detalhada pode às vezes ser resumido por um gesto de mão a acompanhar meia dúzia de palavras. Dentro destas limitações, empregando termos diferentes mas mantendo a sequência das ideias, reproduzo aqui uma palestra proferida a 19 de Outubro de 2005 na Fundação Santo André.
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Os dois campos de desenvolvimento tecnológico invocados correntemente para definir as condições de produção que sucederam ao fordismo são a informática e a automatização.
Nos meios universitários e nos meios jornalísticos – já que os dois andam cada vez mais juntos no mesmo afã de apresentação superficial dos fenómenos – tem sido considerado que ainformática pôs termo ao carácter material do trabalho, generalizando em vez dele a actividade virtual, e que a automatização tornou obsoletos os próprios trabalhadores, substituindo-os por máquinas inteligentes. Se o trabalho deixou de ser real e se os seres humanos estão a dar lugar a máquinas, então a mais-valia e a teoria do valor teriam perdido o significado e estaríamos a viver uma era que os apologistas insistem em classificar como pósmoderna. De imediato, a respeito do carácter virtual que os computadores imprimiriam ao trabalho, pode argumentar-se que a insistência dos administradores de empresa em instalar cadeiras ergonómicas, teclados adequados à disposição dos dedos, iluminações especiais e não sei quantas mais formas de melhorar o rendimento físico dos digitadores revela o carácter material desta nova modalidade de acção humana. Ou será que as lesões por esforço repetido são virtuais também?
Quanto à automatização, recordo, como já fiz noutros textos, o que foi várias vezes afirmado em The Economist, uma revista que exprime de maneira muitíssimo competente as necessidades e os interesses do grande capital transnacional, e que ninguém poderá suspeitar de ter simpatia pelos trabalhadores. Em 21 de Maio de 1988, ao analisar a diferença entre os robots introduzidos no fabrico de automóveis durante a década de 1970 e os introduzidos durante a década seguinte, The Economist sublinhou que o principal efeito da nova tecnologia consistia no aumento do nível de qualificação exigido aos trabalhadores encarregados de a operar. Este artigo concluía que «à medida que as fábricas automatizadas se tornam mais complexas e passam a depender mais dos computadores, o que surge como a questão decisiva é a qualidade do pessoal e não a sua redução numérica». Em 14 de Abril de 1990 The Economist insistiu no tema, escrevendo que «a General Motors aprendeu numa joint venture formada com a Toyota que o que realmente interessava no processo de produção eram as pessoas». Mais detalhadamente, podemos ler em The Economist de 10 de Agosto de 1991 que os administradores da General Motors, depois de terem estudado as razões que haviam levado ao fracasso do processo de automatização prosseguido pela sua empresa durante uma dezena de anos e de o terem comparado com o exemplo japonês, aprenderam que «eram evidentes duas coisas». «Os robots não eram seguramente a chave do sucesso. E agora que o processo de fabrico japonês estava a ser exportado com êxito para os Estados Unidos tornava-se evidente que trabalhadores japoneses fanáticos e mal pagos não se comportavam como robots. […] É certo que o grau de automatização nas fábricas de propriedade japonesa é ligeiramente superior ao existente nas de propriedade norte-americana ou europeia. Mas isto deve-se ao facto de os japoneses terem descoberto que é mais fácil automatizar depois de ter havido uma enorme insistência na qualidade. Só a partir do momento em que a produção está a decorrer sem problemas é que os japoneses automatizam ou introduzem novos modelos. […] tornou-se evidente que a verdadeira chave do sucesso para uma indústria automobilística competitiva não era a alta tecnologia, mas o modo como os trabalhadores eram treinados, geridos e motivados. […] A lição custou caro, mas a General Motors acabou por aprender que o seu bem mais importante e mais valioso não eram os robots, mas a sua própria força de trabalho».
Não se trata da simples substituição de pessoas por máquinas automáticas mas da substituição de umas pessoas por outras mais qualificadas. A qualificação da força de trabalho, de modo a aproveitar cada vez mais a capacidade intelectual dos trabalhadores, é esta uma das principais lições dadas pelos administradores da Toyota, e que os gestores de todo o mundo se têm esforçado por aprender e aplicar. Só a esquerda arrependida continua surda, hoje como ontem, aos ensinamentos ministrados pelo grande capital.
Se passarmos do nível dos processos particulares de fabrico para o do conjunto da sociedade, verificamos que a tecnologia informática e a automatização constituem a infraestrutura que permite que a dispersão física dos trabalhadores não comprometa as economias de escala, e que sustenta a actual fragmentação da classe trabalhadora e a precarização do trabalho. A ligação das máquinas aos computadores aumentou muitíssimo o grau de concentração das decisões e ao mesmo tempo dispersou a sua execução, de maneira que os trabalhadores, onde quer que exerçam a actividade, são vigiados pela administração e obedecem às suas directrizes. A cooperação entre os trabalhadores passou a dispensar a reunião nos mesmos locais de trabalho, bastando o facto de eles dependerem de um mesmo centro de decisões para colaborarem uns com os outros. Os chefes de empresa podem, assim, explorar o esforço conjugado dos assalariados enquanto diminuem as probabilidades de uma acção reivindicativa conjunta. Em vez de terem substituído as pessoas por máquinas e de terem tornado virtual o trabalho, a automatização e a informática reforçaram o enquadramento dos trabalhadores e agravaram a exploração do trabalho. Mas a questão deve ser vista também noutra perspectiva, que permite extrair lições mais profundas.

Contrariamente ao que sucede com a esmagadora maioria dos autores de formação marxista, eu considero que existem duas classes capitalistas: a burguesia e os gestores. Na verdade, a definição de uma classe formada por gestores – qualquer que seja o nome dado a esta entidade social – tem-se confundido com a acção prática e a crítica teórica prosseguidas por alguns sectores da extrema-esquerda contra a burocratização dos partidos socialistas durante a época da Segunda Internacional e, mais tarde, contra o desenvolvimento do capitalismo de Estado soviético. Foi o combate dos trabalhadores às novas modalidades de exploração surgidas a partir do interior das suas lutas que exigiu a identificação dos gestores enquanto exploradores.
Mas a afirmação da existência de uma classe social formada por gestores não tem consequências apenas sobre a análise do capitalismo de Estado e influencia a maneira como se considera o próprio fundamento do capitalismo. Os burgueses exercem a supremacia económica e social graças à propriedade dos meios de produção, e é através da transmissão hereditária destes bens que eles asseguram aos filhos a condição de capitalistas. Todavia, a superioridade económica e social dos gestores não provém de qualquer propriedade, mas do controlo que, através da administração, exercem sobre os processos de trabalho e sobre a vida social em geral. E os filhos dos gestores podem suceder aos pais graças à aquisição de um estatuto social fornecido pela frequência dos melhores estabelecimentos de ensino e pela participação nas redes de relações da elite. Em resumo, a exploração tanto se realiza através do exercício da propriedade como através do exercício do controlo.
Isto significa que no capitalismo a exploração não consiste somente na apropriação final dos bens materiais e dos serviços produzidos pelos trabalhadores, mas também no controlo do processo de produção. Por outras palavras, os trabalhadores não perdem apenas o direito aos frutos do seu trabalho mas igualmente o direito a decidirem a maneira como trabalham. Contrariamente ao que sucedia nos sistemas económicos baseados na cobrança de tributos, em que os explorados detinham o controlo sobre o seu processo de trabalho, no capitalismo os trabalhadores podem ser expropriados do resultado do trabalho precisamente porque começam por ser afastados do controlo sobre o processo de trabalho.
Nestas circunstâncias, a autoridade dos capitalistas, antes de incidir sobre a materialização ou a concretização do processo de trabalho, incide no próprio processo, que deve portanto ser considerado plenamente como tal, ou seja, como decurso no tempo. Muito mais fundamentalmente do que uma apropriação de bens, a exploração capitalista é um controlo exercido sobre o tempo.
No capitalismo o explorador controla o seu próprio tempo e o tempo alheio, enquanto o explorado não controla o seu tempo nem o dos outros. Se entrarmos pela primeira vez numa empresa em que todos andem vestidos com as mesmas batas e quisermos determinar através da observação empírica imediata se uma dada pessoa exerce funções de gestor ou de trabalhador, basta observar qual é a sua relação com o tempo. Qualquer trabalhador sabe, embora os teóricos por vezes o esqueçam, que o que ele vende ao patrão é o seu tempo e não a concretização do seu esforço. O que vai suceder com os resultados do trabalho, isso não diz respeito ao trabalhador nem lhe interessa. Uma catástrofe pode destruir os objectos fabricados e deixar sem efeito os serviços cumpridos, uma crise pode impedir a venda dos bens, nada disto altera o facto primordial de que o trabalhador foi expropriado do seu tempo, e portanto explorado.
Se a exploração capitalista resulta do controlo exercido sobre o tempo dos trabalhadores, o progresso no capitalismo define-se exclusivamente como produtividade, o que é o mesmo que dizer como um conjunto de operações efectuadas sobre o tempo.
Trabalhar menos e ganhar mais é o desejo expresso de viva voz por todos os trabalhadores, e que qualquer deles aplica na prática quotidiana através de pequenas e grandes astúcias. Esta pressão exercida permanentemente sobre os patrões é responsável pelo desenvolvimento económico.
Se por um lado os capitalistas aceitam a diminuição do número de horas de relógio que compõem a jornada de trabalho, por outro lado eles impõem o aumento da intensidade do trabalho dentro dos limites de cada hora e treinam os trabalhadores de modo a serem capazes de aumentar a qualidade e a complexidade do seu esforço. Em vez de cancelar a intervenção dos trabalhadores, a automatização acresceu o ritmo dos gestos de trabalho e passou a exigir novas qualificações. E assim, uma hora de trabalho, que nos alvores do capitalismo era preenchida por uma actividade simples, representa hoje uma actividade muitíssimo intensa e complexa, equivalente a um grande número de horas simples. Este aumento da produtividade do trabalho tem como efeito a redução do tempo necessário ao fabrico de cada objecto e à execução de cada serviço, de modo que a remuneração dos trabalhadores, que medida em volume de bens adquiridos tem aumentado consideravelmente ao longo da história recente, tem-se reduzido drasticamente se for medida pelo tempo de trabalho necessário ao fabrico de cada um desses bens. Com o progresso do capitalismo, os trabalhadores ficam sujeitos a jornadas menores, mas trabalham mais tempo económico real; e adquirem mais bens concretos, mas que correspondem a menos tempo de trabalho incorporado. É este o mecanismo fundamental do que em termos marxistas se denomina mais-valia relativa, ou seja, o agravamento da exploração através do progresso da produtividade. Toda a dinâmica do capitalismo e toda a sua capacidade de recuperação das lutas sociais têm a mais-valia relativa como motor.
Em última análise, o desenvolvimento do capitalismo consiste numa conjugação de tempos com sentido inverso. Aumenta a complexidade de cada hora de trabalho, e portanto aumenta o tempo económico real contido nos limites dessa hora. E diminui o tempo incorporado em cada um dos bens adquiridos pelos trabalhadores, diminuindo portanto o tempo total incorporado na formação de cada trabalhador e na sua reprodução, apesar de aumentar a quantidade de bens e serviços necessários a essa formação e a essa reprodução.
É nesta perspectiva que se devem criticar as teorias que, começando por reduzir o trabalhador no capitalismo a um produtor de bens materiais, decretaram o fim do capitalismo e a extinção do próprio trabalho quando aumentou a importância da produção de bens imateriais e de serviços. Falar hoje de trabalho virtual ou é um logro ou é abrir uma porta já aberta, porque o capitalismo tem por base, desde os seus primórdios, não bens concretos mas processos de trabalho entendidos como processos no tempo. O tempo, não os objectos, é a substância do capitalismo. Antes de ser material, a exploração deve entender-se na sua imaterialidade temporal, e precisamente graças ao controlo exercido sobre estes processos temporais os gestores têm sido capazes de agravar a exploração e, o que é sinónimo, desenvolver o capitalismo. Tudo se resume a tempos e a desfasamentos temporais.
A inclusão dos ócios no quadro do capitalismo reforça a importância do tempo enquanto substância do modo de produção.
Esta perspectiva de análise prolonga o modelo económico globalizante que apresentei pela primeira vez em dois artigos, «O Proletariado como Produtor e como Produto», Revista de Economia Política, 1985, vol. 5 nº 3 e «A Produção de Si Mesmo», Educação em Revista [FaE, UFMG], 1989, ano IV nº 9, e que tenho vindo a reelaborar em vários livros. Em termos demasiado simples, trata-se de considerar que o modelo da mais-valia, tal como Marx o apresentou, é insuficiente se se limitar à produção de bens, devendo incluir a produção dos próprios trabalhadores. É neste sentido que analiso a função dos ócios.
Até uma época bastante recente, mesmo nos países desenvolvidos o consumo dos assalariados durante os períodos de lazer ocorria geralmente em formas pré-capitalistas, sobretudo em modalidades de economia doméstica. Nas últimas décadas, porém, com a substituição dos restaurantes familiares pelo fast food, a substituição das pequenas lojas pelos hipermercados e pelos shopping centers, a difusão das viagens organizadas e a proliferação de serviços destinados a acompanhar, enquadrar e dirigir todas as diversões imagináveis, os ócios passaram a oferecer ao capitalismo inesgotáveis oportunidades de mercado. Todavia, apesar do volume de negócios que representa, este aspecto está longe de ser o mais importante. É impossível aumentar as qualificações da força de trabalho sem prolongar o tempo de formação dos trabalhadores, e as instituições de ensino são insuficientes para este fim, porque as inovações tecnológicas continuam a ocorrer depois de cada pessoa sair da escola. Os capitalistas encontraram-se perante uma situação paradoxal. Como manter os trabalhadores actualizados e adestrados sem comprometer os horários de trabalho? O problema foi solucionado mediante a conversão dos ócios em processo de qualificação da força de trabalho.
Com o aparecimento dos microcomputadores, a electrónica permitiu, pela primeira vez na história da humanidade, que um instrumento destinado ao trabalho servisse também de meio de divertimento. Todas as formas electrónicas de lazer constituem, por si só, uma forma de adestramento da força de trabalho, o que significa que as pessoas passam alegremente a maior parte dos seus ócios adquirindo habilitações que as tornam mais produtivas. Aliás, a questão é mais complicada ainda, porque os vídeos musicais e publicitários – se é que uns se distinguem dos outros – e os jogos electrónicos habituaram todas as pessoas a modalidades de tempo interseccionado que antes eram apanágio das técnicas vanguardistas de escrita ou de pintura. É durante os lazeres que os indivíduos adquirem a capacidade de lidar com as organizações temporais complexas indispensáve is aos actuais processos de trabalho.
Essa banalização das formas tem correspondido a uma completa indigência dos conteúdos, mas é exactamente isto que se pretende. Provocou-se a habituação dos trabalhadores à modernidade sem lhes suscitar inquietações de espírito, e temos aqui o ideal da pós-modernidade, a simbiose da técnica e da moda numa conjugação que só é fútil para a população comum, porque se carrega para os capitalistas do seu pleno significado.
Funcionalmente analfabetos mas ágeis em todas as facetas da vida urbana, dotados de uma percepção imediata da comunicação audiovisual, atentos aos caprichos mais efémeros –mesmo sem passarem por qualquer curso de qualificação profissional estes jovens adquirem as habilitações básicas para lidar com as novas tecnologias. O que é, então, mais importante: o conteúdo, enquanto conteúdo ideológico dos lazeres, ou a forma, enquanto quadro temporal em que os lazeres decorrem? As novas noções práticas do tempo, indispensáveis para fazer progredir a produtividade na era da tecnologia electrónica, é nos lazeres, muito mais do que nas escolas ou nas empresas, que os trabalhadores as assimilam. Em vez de constituírem uma fuga à exploração, os lazeres tornaram-se uma parte indispensável dos mecanismos da mais-valia. Subjacente a esta linha de raciocínio está a questão da autoridade exercida pelas empresas não só sobre os assalariados, durante o horário de trabalho, mas igualmente sobre camadas populacionais mais amplas, e ao longo das vinte e quatro horas do dia. Tenho insistido desde há bastantes anos, em livros, artigos e cursos, na distinção entre o que classifico como Estado Restrito, quer dizer, o aparelho clássico de poder, formado por governo, parlamento e tribunais, e o que classifico como Estado Amplo, ou seja, o exercício da soberania pelas próprias empresas. Este Estado é amplo porque o seu perímetro se sobrepõe ao perímetro das classes capitalistas.
Hoje, na era da transnacionalização, em que as fronteiras entre países e as legislações nacionais não opõem qualquer barreira eficaz à movimentação do capital e à actuação dos capitalistas, as grandes empresas tornaram-se incomparavelmente mais poderosas do que os órgãos clássicos do Estado. E a inclusão dos ócios nos mecanismos da exploração veio ampliar mais ainda a soberania das empresas, permitindo que elas presidam a todos os momentos da nossa vida.
Neste contexto, que significado adquirem a democracia e a luta política? Os democratas de todos os matizes, desde a direita liberal até à esquerda bem comportada, apelam para a difusão da cidadania no âmbito das instituições clássicas do Estado, mas como pode vigorar aí a democracia quando as empresas exercem um poder cada vez mais totalizador? Em A Opção Imperialista, uma obra notável publicada em 1966 e que é urgente retirar do esquecimento, escreveu Mário Pedrosa (pág. 347): «Onde a liberdade individual é subjugada? No setor mais importante da vida moderna, no local de trabalho, na oficina, na fábrica, na emprêsa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes?».
Para que a disciplina de empresa continue a pautar os comportamentos fora da empresa é necessário que o ócio dos trabalhadores, bem como as vinte e quatro horas dos desempregados, não sejam tempo livre mas tempo controlado. É necessário que os pensamentos não vôem mas sigam trilhas. Este resultado não se obtém apenas através da concentração das indústrias cinematográfica e televisiva num escasso número de mãos, com a consequente futilidade de conteúdo das diversões. Hoje, não é apenas nos níveis económico e ideológico que os capitalistas controlam os ócios, mas ainda no nível directamente repressivo. Dentro das empresas, a electrónica permitiu a fusão do processo de fiscalização com o processo de trabalho. Esta conjugação, inédita na história da humanidade, ampliou-se à sociedade em geral quando os bancos e as lojas começaram a sujeitar os clientes a formas de vigilância que até então haviam reservado para os assalariados. Depois, o facto de os computadores e outros instrumentos electrónicos servirem tanto de meio de trabalho como de meio de divertimento permitiu a fiscalização automática dos ócios. Desde as virtuais às palpáveis, não existe hoje qualquer modalidade urbana de diversão que não seja fiscalizada. Entre o mais intenso dos gestos de trabalho e o mais espreguiçado dos gestos de repouso existe um continuum preenchido pela vigilância electrónica.
E como as firmas de segurança particulares ultrapassaram em verbas e pessoal as polícias oficiais, e como são as próprias empresas quem regista, armazena e selecciona o vastíssimo rasto de informação que cada um de nós deixa ao longo dos nossos lazeres, cabelhes a elas, e não ao aparelho tradicional de Estado, formar a infra-estrutura repressiva.
Uma tradição muito difundida na extrema-esquerda considera que a consciência política se obtém na passagem da luta contra os patrões para a luta contra os governantes. Mas será possível nas condições actuais sustentar que o Estado clássico, enquanto órgão de decisões, prevalece sobre as empresas, enquanto instituições dotadas de soberania? Desde a década de 1960 que as movimentações dos trabalhadores ocorridas fora dos quadros sindicais e partidários vêm a entender que o Estado clássico não é mais o alvo supremo das lutas e a considerar a questão da democracia como uma necessidade da estrutura interna das próprias organizações de luta. Sem a transformação das relações sociais de trabalho, de modo a pôr fim ao totalitarismo empresarial, é ilusório pretender que a liberdade possa vigorar em qualquer outro domínio. É esta a lição que Mário Pedrosa resumiu com uma lucidez tanto mais notável quanto o seu livro A Opção Imperialista foi escrito e publicado enquanto vigorava no Brasil o regime militar. Apesar disso, Mário Pedrosa compreendeu que era sobretudo no local de trabalho que a autocracia estava instalada.
Todavia, nos últimos anos os trabalhadores têm deparado com enormes dificuldades para se organizar em lutas colectivas no âmbito das empresas. A terceirização e a subcontratação fragmentaram os trabalhadores, e esta situação agravou-se devido à introdução de horários flexíveis, à expansão dos contrato a prazo e da actividade a tempo parcial e à proliferação de firmas que alugam força de trabalho. Os obstáculos são maiores ainda quando se tenta mobilizar conjuntamente empregados e desempregados. Em alguns países, especialmente onde o desemprego e a economia paralela assumem maiores dimensões, os piquetes e os boicotes urbanos parecem ser uma tentativa de ultrapassar as dificuldades erguidas à acção no interior das empresas. Estas novas modalidades de luta são internas à sociedade capitalista, porque operam num espaço e num tempo – os lazeres – de que o capitalismo se apoderou. Mas como assegurar continuidade às movimentações desse tipo, como consolidar convergências pontuais fora das relações de trabalho estáveis? Isso exigirá que os trabalhadores teçam novas redes de solidariedade nos locais de residência, opondo-se à desagregação e à dispersão dos velhos bairros proletários que constitui hoje um dos principais objectivos do urbanismo.
É um dos sintomas reveladores da fase actual do capitalismo, que as acções de protesto no espaço e no tempo de lazer substituam ou coadjuvem as acções de protesto no espaço e no tempo de trabalho.

*[Publicado em Cadernos de Ciências Sociais [Fundação Santo André], nº 1, 2005 (publicado na realidade em 2006)]

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CRÍTICA DA VIOLÊNCIA: CRÍTICA DO PODER

CRÍTICA DA VIOLÊNCIA: CRÍTICA DO PODER
("Zur Kritik der Gewalt", 1921)

 


Walter Benjamin


A tarefa de uma crítica da violência pode ser definida como a apresentação de suas relações com o direito e a justiça. Pois qualquer que seja o efeito de uma determinada causa, ela só se transforma em violência, no sentido forte da palavra, quando interfere em relações éticas. Esfera de tais relações é designada pelos conceitos de direito e justiça. Quanto ao primeiro, é evidente que a relação elementar de toda ordem jurídica é a de meios e fins. A violência, inicialmente, só pode ser procurada na esfera dos meios, não na dos fins. Posto isso, temos mais dados para a crítica da violência do que talvez pareça. Pois se a violência é um meio, pode parecer que já existe um critério para sua crítica. Tal critério se impõe com a pergunta, se a violência é, em determinados casos, um meio para fins justos ou injustos. Sua crítica, portanto, estará implícita num sistema de fins justos. Mas, não é bem assim. Pois esse tipo de sistema – supostamente acima de quaisquer dúvidas – não incluiria um critério da própria violência como princípio, mas apenas um critério para os casos em que ela fosse usada. Ficaria em aberto a pergunta, se a violência em si, como princípio, é moral, mesmo como meio para fins justos. Para decidir a questão, é preciso Ter um critério mais exato, uma distinção na esfera dos próprios meios, sem levar em consideração os fins a que servem. A eliminação deste tipo de pergunta crítica e mais exata caracteriza uma das grandes correntes da filosofia o direito – o direito natural – e talvez seja sua característica mais marcante. O direito natural não vê problema nenhum no uso de meios violentos para fins justos; esse uso é tão natural como o "direito" do ser humano de locomover seu corpo até um determinado ponto desejado. Segundo essa concepção (que serviu de base ideológica ao terrorismo na Revolução Francesa), a violência é um produto da natureza, por assim dizer, uma matéria-prima utilizada sem problemas, a não ser que haja abuso da violência para fins injustos. Se, de acordo coma teoria política do direito natural, todas as pessoas abrem mão do seu poder em prol do estado, isso se faz, por que se pressupõe (como mostra explicitamente Spinoza no Tratado teológico- político) que, no fundo, o indivíduo – antes de firmar esse contrato ditado pela razão – exerce também de jure qualquer tipo de poder que, na realidade, exerce de fato. (…)

À tese, defendida pelo direito natural, do poder como dado da natureza, se opõe diametralmente a concepção do direito positivo, que considera o poder como algo que se criou historicamente. Se o direito natural pode avaliar qualquer direito existente apenas pela crítica de seus fins, o direito positivo pode avaliar qualquer direito que surja apenas pela crítica de seus meios. Se a justiça é o critério dos fins, a legitimidade é o critério dos meios. No entanto, não obstante essa contradição, ambas as escolas estão de acordo num dogma básico comum: fins justos podem ser obtidos por meios justos, meios justos podem ser empregados para fins justos. O direito natural visa, pela justiça dos fins, "legitimar" os meios, o direito positivo visa "garantir" a justiça dos fins pela legitimidade dos meios.

A antinomia se revelaria insolúvel, se o pressuposto dogmático comum fosse falso, se meios legítimos de um lado e fins justos do outro lado estivessem numa contradição inconciliável. Sua compreensão não seria possível sem sair do círculo, estabelecendo critérios independentes para fins justos e para fins legítimos.

Para tal investigação, se exclui por enquanto a esfera dos fins e com isso também a busca de um critério da justiça. A questão central passa a ser a da legitimidade de determinados meios que constituem o poder. Ela não pode ser decidida por princípios de direito natural, que apenas levariam a uma casuística sem fim. Pois, se o direito positivo é cego para o caráter incondicional dos fins, o direito natural é cego para o condicionamento dos meios. No entanto, a teoria do direito positivo é aceitável como base hipotética no ponto de partida da investigação, uma vez que estabelece uma distinção básica quanto aos tipos de poder, independentemente dos casos de seu uso. Distingue entre o poder historicamente reconhecido, o chamado poder sancionado e o não- sancionado. (…)

Uma máxima geral da legislação européia atual pode ser formulada nestes termos: todos os fins naturais das pessoas individuais entram em colisão com fins jurídicos, quando perseguidos com maior ou menor violência. (A contradição do direito à legítima defesa com esta máxima deve se explicar por si mesma no decorrer das considerações seguintes.) O corolário desta máxima é que o direito considera o poder na mão do indivíduo um perigo de subversão da ordem judiciária. Um perigo no sentido de impedir os fins jurídicos e a executiva judiciária? Não; pois nesse caso condenar-se-ia não simplesmente o poder, mas apenas o poder voltado para fins contrários à lei. Poder-se-ia dizer que um sistema de fins jurídicos é insustentável quando, em algum lugar, fins naturais ainda podem ser perseguidos por meio da violência. Mas isso, por enquanto, é um simples dogma. Por outro lado, talvez deva se levar em consideração a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio direito. Possibilidade de que o poder, quando não está nas mãos do respectivo direito, o ameaça, não pelos fins que possa almejar, mas pela sua própria existência fora da alçada do direito. De modo mais drástico, a mesma suposição pode ser sugerida pela reflexão, quantas vezes a figura do "grande" bandido não suscita a secreta admiração do povo, por mais repugnantes que tenham sido seus fins. Isso é possível não por causa de seus efeitos, mas apenas por causa do poder que se manifesta nesses feitos. Nesse caso, portanto, o poder – que o direito atual procura retirar do indivíduo em todas as áreas de atuação – se manifesta realmente como ameaça e, mesmo sendo subjugado, ainda assim suscita a antipatia da multidão contra o direito. (…)

Pois o direito positivo, quando está consciente de suas raízes, reivindicará o fato de reconhecer em cada indivíduo o interesse da humanidade e de fomentá-lo. Tal interesse consistiria na apresentação e conservação de uma ordem de destino. Se, por um lado, não se deve poupar críticas a essa ordem, que o direito pretende conservar com razão, por outro lado, qualquer interpelação dessa ordem é impotente, quando se apresenta apenas em nome de uma "liberdade" sem rosto e incapaz de apontar uma ordem de liberdade superior. Sua impotência é total, quando não questiona o próprio corpo da ordem jurídica, mas apenas leis ou costumes jurídicos isolados, que então serão protegidos pelo direito com o seu poder, que consiste na alegação de que só existe um único destino e que justamente o status quo e o elemento ameaçador pertencem à sua ordem de maneira irrevogável. Pois o poder mantenedor do direito é um poder ameaçador. Só que sua ameaça não tem o sentido de uma intimidação, como costumam interpretá-lo teóricos liberais desinformados. A intimidação no sentido exato exigiria uma definição contrária à essência da ameaça e não atingida por lei nenhuma, uma vez que existe a esperança de escapar a seu braço. A lei se mostra ameaçadora como o destino, do qual depende se o criminoso lhe sucumbe. O sentido mais profundo da indefinição da ameaça do direito se revelará somente pela consideração posterior da esfera do destino, de onde ela se origina. Um indício precioso se encontra na área das punições. Dentre elas, mais do que qualquer outra, a pena de morte suscitou críticas, desde o momento em que se questionou a validade do direito positivo. Embora, na maioria dos casos, os argumentos da crítica tenham sido mal fundamentados, seus motivos têm sido questões de princípio. Sentiam os críticos, talvez sem poder explicá-lo e sem querer senti-lo, que uma contestação da pena de morte não ataca uma medida punitiva, nem as leis, mas o próprio direito na sua origem. Pois se a sua origem for a violência, a violência coroada pelo destino, não está longe a suspeita de que na instituição do poder supremo – o poder sobre vida e morte, o qual se apresenta na forma da ordem jurídica – , as origens do poder – violência interferem de maneira representativa na ordem existente e ali se manifestam de forma terrível. Coerentemente, em contextos jurídicos primitivos, a pena de morte é decretada também no caso de delitos contra a propriedade, em relação aos quais parece totalmente "desproporcional". Seu sentido não é punir a infração da lei, mas afirmar o novo direito. Pois o exercício do poder sobre vida e morte, o próprio direito se fortalece, mais do que em qualquer outra forma de fazer cumprir a lei. Mas ali se manifesta também um elemento de podridão dentro do direito, detectável por uma percepção mais sensível, que se distancia de relações nas quais o destino em pessoa apareceria majestosamente para fazer cumprir a lei. A razão e a inteligência, porém, devem aproximar-se dessas relações da maneira mais decidida, se quiserem levar a termo a crítica do poder instituinte e do poder mantenedor do direito.

Os dois tipos de poder estão presentes em outra instituição do Estado moderno: a polícia, numa relação muito mais contrária à natureza que a pena de morte, numa mistura por assim dizer espectral. É verdade que a polícia é um poder para fins jurídicos (com direito de executar medidas), mas ao mesmo tempo com a autorização de ela própria, dentro de amplos limites, instituir tais fins jurídicos (através do direito de baixar decretos). A infâmia dessa instituição – sentida por poucos, por que raramente a competência da polícia é suficiente para praticar intervenções mais grosseiras, podendo, no entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra eles o Estado não é protegido pelas leis – consiste em que ali se encontra suspensa a separação entre poder instituinte e poder mantenedor do direito. Do primeiro se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a restrição de não se proporem novos fins. O poder da polícia se emancipou dessas duas condições. É um poder instituinte do direito – cuja função característica não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito – e um poder mantenedor do direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins do poder policial seriam sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade o "direito" da polícia é o ponto em que o estado – ou por impotência ou devido às inter- relações imanentes a qualquer ordem judiciária – não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, "por questões de segurança", a polícia intervém em inúmeros casos, em que não existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal ao longo de uma vida regulamentada por decretos. Ao contrário do direito que, na "decisão" fixada no espaço e no tempo, reconhece uma categoria metafísica, graças à qual ele faz jus à crítica, a observação da instituição da polícia não encontra nenhuma essência. Seu poder é amorfo, como é amorfa sua aparição espectral, inatacável e onipresente na vida dos países civilizados. E, apesar de a polícia amiúde ter o mesmo aspecto em toda a parte, não se pode negar que seu espírito é menos arrasador na monarquia absoluta – onde ela representa o poder do soberano, que reúne plenos poderes legislativos e executivos – do que nos regimes democráticos, onde sua existência, não sublimada por nenhuma relação desse tipo, testemunha a maior degenerescência imaginável do poder. Todo poder enquanto meio é, ou instituinte ou mantenedor de direito. Não reivindicando nenhum desses dois atributos, renuncia a qualquer validade. Portanto, qualquer poder enquanto meio, mesmo no caso mais favorável, tem a ver com a problemática geral do direito.

(…) Quando a consciência da presença latente da violência dentro de uma instituição jurídica se apaga, esta entra em decadência. Um exemplo disso, no momento atual, são os parlamentos. Eles oferecem esse espetáculo notório e lamentável porque perderam a consciência das forças revolucionárias às quais devem sua existência. Assim, sobretudo na Alemanha, a última manifestação de tais poderes transcorreu sem conseqüências para os parlamentos. Falta-lhes o sentido para o poder instituinte de direito, representado por eles; assim, não é de estranhar que não consigam tomar decisões que sejam dignas desse poder, mas cultivem, com a prática dos compromissos, uma maneira supostamente não violenta de tratar de assuntos políticos. Ora, o compromisso permanece "um produto que, apesar de repelir qualquer violência aberta, se situa dentro da mentalidade da violência, porque o impulso que leva a fazer um compromisso não parte dele mesmo, mas vem de fora, justamente do impulso contrário, porque em qualquer compromisso, mesmo quando aceito de bom grado, não se pode fazer abstração do caráter compulsório. ‘Uma solução diferente seria melhor’ – eis o sentimento que está na base de qualquer compromisso" [3] – É significativo que talvez o mesmo número de pessoas que, por causa da guerra, optaram pelo ideal de uma solução não – violenta de conflitos políticos, tenha-se afastado desse ideal por causa da decadência dos parlamentos. (…)

Será que a solução não – violenta de conflitos é em princípio possível? Sem dúvida. As relações entre pessoas particulares fornecem muitos exemplos. Um acordo não- violento encontra-se em toda parte, onde a cultura do coração deu aos homens meios puros para se entenderem. Aos meios legítimos e ilegítimos de toda espécie – que são, todos, expressão da violência – podem ser confrontados como meios puros os não- violentos. A atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança e outras qualidades a mais são seu pressuposto subjetivo. Sua manifestação objetiva é determinada pela lei (cujo enorme alcance não pode ser discutido aqui) de que meios puros não sirvam jamais a soluções imediatas, mas sempre a soluções mediatas. Por isso, nunca se referem à solução de conflitos entre duas pessoas de maneira imediata, mas pelo intermédio das coisas. Quando os conflitos humanos se referem, da maneira mais objetiva, a bens, abre-se o campo dos meios puros. Por isso, a técnica, no sentido mais amplo da palavra, é sua área mais própria. Seu exemplo mais profundo talvez seja a conversa, considerada como uma técnica de mútuo entendimento civil. Ali, um acordo não- violento não apenas é possível, mas a eliminação por princípio da violência pode ser explicitamente comprovada com um tipo de relação importante: a impunidade da mentira. Talvez não exista no mundo nenhuma legislação que originalmente puna a mentira. Quer dizer que existe uma esfera de entendimento humano, não- violenta a tal ponto que seja totalmente inacessível à violência: a esfera propriamente dita do "entendimento", a linguagem.(…)

Em toda a esfera dos poderes, que se orientam ou pelo direito natural ou pelo direito positivo, não se encontra nenhum que esteja a salvo dos graves problemas acima mencionados, que afetam todo e qualquer poder judiciário. Mas como qualquer idéia, qualquer solução imaginável das tarefas humanas – sem falar de uma salvação do círculo compulsório de todas as situações existenciais já ocorridas na história mundial – é irrealizável, quando se exclui por princípio todo e qualquer poder, impõe-se a pergunta se existem outros tipos de poder, além daqueles focalizados pela teoria do direito. Ao mesmo tempo impõe-se a pergunta se é verdadeiro o dogma básico, comum àquelas teorias: fins justos podem ser obtidos por meios legítimos, meios legítimos podem ser usados para fins justos. O que aconteceria, se esse tipo de poder, dependente do destino e usando meios legítimos, se encontrasse num conflito inconciliável com os fins justos em si, e se, ao mesmo tempo, aparecesse um poder de outro tipo, o qual então, evidentemente, não pudesse ser nem o meio legítimo nem ilegítimo para aqueles fins, mas se relacionaria com os fins não como um meio mas como algo diferente? Assim se lançaria luz sobre a experiência singular e em princípio desanimadora de que, em última instância, É impossível "decidir" qualquer problema jurídico – apoiaria que talvez só possa ser comparada com a impossibilidade de uma decisão taxativa sobre o que é "certo" ou "errado" em linguagens que têm uma evolução histórica. Afinal, quem decide sobre a legitimidade dos meios e a justiça dos fins não é jamais a razão, mas o poder do destino, e quem decide sobre este é Deus. É uma maneira de ver incomum, mas apenas porque existe o hábito arraigado de pensar os fins justos como fins de um direito possível, ou seja, não apenas universalmente válidos (o que seria uma conseqüência analítica do elemento justiça), mas passíveis de universalização – o que está em contradição com esse elemento, como se poderia demonstrar. Pois, fins que são justos, universalmente reconhecíveis, universalmente válidos para uma determinada situação, não o são para nenhuma outra, por parecida que seja sob outros aspectos. Uma função não mediata da violência, tal como está sendo discutida aqui, aparece na experiência de vida cotidiana. Quanto ao ser humano, a ira, por exemplo, o leva às mais patentes explosões de violência, uma violência que não se refere como meio a um fim proposto. Ela não é meio, e sim manifestação. É verdade que esse tipo de violência tem suas manifestações objetivas, onde ela é sujeita à crítica. Elas se encontram, antes de mais nada e de maneira altamente significativa, no mito.

O poder mítico em sua forma arquetípica é mera manifestação dos deuses. Não meio para seus fins, quase não manifestação de sua vontade, antes manifestação de sua existência. Disso, a lenda de Níobe oferece um excelente exemplo. É verdade que ação de Apolo e Ártemis pode parecer uma mera punição da transgressão de um direito existente. A hybris de Níobe conjura a fatalidade, não por transgredir a lei, mas por desafiar o destino – para uma luta na qual o destino terá de ser o vencedor, podendo engendrar, na vitória, um direito. Até que ponto o poder divino, no sentido da Antigüidade, não era o poder mantenedor da punição, fica patente nas lendas, onde o herói, por exemplo Prometeu, desafia o destino com digna coragem, luta contra ele, com ou sem sorte, e acaba tendo a esperança de um dia levar aos homens um novo direito. É, no fundo, esse herói e o poder jurídico do mito incorporado por ele que o povo tenta tornar presente, ainda nos dias de hoje, quando admira o grande bandido. A violência portanto desaba sobre Níobe a partir da esfera incerta e ambígua do destino. Ela não é propriamente destruidora. Embora traga a morte sangrenta aos filhos de Níobe, ela se detém diante da vida da mãe, deixando-a – apenas mais culpada do que antes, por causa da morte dos filhos – como suporte mudo eterno da culpa, e também como marco do limite entre homens e deuses. Se esse poder imediato quer mostrar, em manifestações míticas, que é parente próximo do poder instituinte do direito ou lhe é idêntico, ele focaliza um problema deste poder, na medida em que este tinha sido caracterizado – na apresentação anterior da violência da guerra – como um poder apenas dos meios. Ao mesmo tempo, esta relação promete esclarecer melhor o destino que em todos os casos está subjacente ao poder jurídico, e, num grande esboço, levar sua crítica a termo. A função do poder- violência, na institucionalização do direito, é dupla no sentido de que, por um lado, a institucionalização almeja aquilo que é instituído como direito, como o seu fim, usando a violência como meio; e, por outro lado, no momento da instituição do fim como um direito, não dispensa a violência, mas só agora a transforma, no sentido rigoroso e imediato, num poder instituinte do direito, estabelecendo como direito não um fim livre e independente de violência (Gewalt), mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, sob o nome do poder (Macht). A institucionalização do direito é institucionalização do poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência. A justiça é o princípio de toda instituição divina de fins, o poder (Macht) é o princípio de toda institucionalização mítica do direito.(…)

A crítica da violência, ou seja, a crítica do poder, é a filosofia de sua história. É a "filosofia" dessa história, porque somente a idéia do seu final permite um enfoque crítico, diferenciador e decisivo de suas datas temporais. Um olhar dirigido apenas para as coisas mais próximas perceberá, quando muito, um movimento dialético de altos e baixos nas configurações do poder enquanto instituinte e mantenedor do direito. A lei dessas oscilações consiste em que todo poder mantenedor do direito, no decorrer do tempo, acaba enfraquecendo indiretamente o poder instituinte do direito representado por ele, através da opressão dos antipoderes inimigos. (Alguns sintomas disso foram apontados ao longo desta análise.) Isso dura até que novos poderes ou os anteriormente oprimidos vençam o poder até então instituinte do direito, estabelecendo assim um novo direito sujeito a uma nova decadência. A ruptura dessa trajetória, que obedece a formas míticas de direito, a destituição do direito e dos poderes dos quais depende ( como eles dependem dele), em última instância, a destituição do poder do Estado, fundamenta ma nova era histórica. Se a dominação do mito em alguns pontos já foi rompida, na atualidade, o Novo não se situa num ponto de fuga tão inconcebivelmente longínquo, que uma palavra contra o direito seja supérflua. Se a existência do pode, enquanto poder puro e imediato, é garantida, também além do direito, fica provada a possibilidade do poder revolucionário, termo pelo qual deve ser designada a mais alta manifestação do poder puro, por parte do homem. A decisão, porém, se o poder puro, num determinado caso, era real, não é possível da mesma maneira, nem igualmente urgente para o homem. Pois com certeza, apenas o poder mítico será identificado com a violência, não o poder divino, a não ser através de efeitos incomensuráveis, já que o poder que absolve da culpa é inacessível ao homem. De nono, o puro poder divino dispõe de todas as formas eternas que o mito transformou em bastardos do direito. O poder divino pode aparecer tanto na guerra verdadeira quanto no juízo divino da multidão sobre o criminoso. Deve ser rejeitado, porém, todo poder mítico, o poder instituinte do direito, que pode ser chamado de um poder que o homem põe (schaltende Gewalt). Igualmente vil é também o poder mantenedor do direito, o poder administrado (verwaltete Gewalt) que lhe serve. O poder divino, que é insígnia e chancela, jamais um meio de execução sagrada, pode ser chamado de um poder de que Deus dispõe (waltende Gewalt).


Walter Benjamim, "Zur Kritik der Gewalt", in: G. S. II, pp. 179-203. Trad. Willi Bolle, N. da R. : Os trechos aqui publicados fazem parte do capítulo "Crítica da Violência – crítica do poder", da obra de Walter Benjamim Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, seleção e apresentação de Willi Bolle, tradução de Celeste H. M. Ribeiro de Souza et al., São Paulo, Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1986. A numeração original das notas foi mantida, tendo sido suprimido o texto referente à Nota 2

 


Notas do tradutor

1. Optei por esta tradução do original "Zur Kritik der Gewalt", uma vez que todo o ensaio é construído sobre a ambigüidade da palavra Gewalt, que pode significar ao mesmo tempo "violência" e "poder". A intenção de Benjamim é mostrar a origem do direito (e do poder judiciário) a partir do espírito da violência. Portanto, a semântica de Gewalt, neste texto, oscila constantemente entre esses dois pólos; tive que optar, caso por caso, se "violência" ou "poder" era a tradução mais adequada, colocando um asterisco quando as duas acepções são possíveis. (N.T.) . Erich Unger, Politik und Metaphysik. (Die Theorie. Versuche zu philosophischer Politik). Berlim, 1928, p. 8.
FONTE: Revista Religião & Sociedade – 15/1 1990, pp. 132-140

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TECNOLOGIA, PERDA DO HUMANO E CRISE DO SUJEITO – Laymert Garcia dos Santos

Tecnologia, perda do humano e crise do sujeito do direito

Laymert Garcia dos Santos
 
    Quando se observa a veloz corrosão dos direitos e da Direito suscitada pela evolução econômica de um mundo globalizado, o que salta aos olhos é a impressão de inevitabilidade desse processo. Como se as sociedades nacionais democráticas tivessem sido precipitadas num movimento de desarticulação por uma força tal, que nenhuma outra parece capaz de fazer-lhe frente. Os neoliberais da autodenominada "world class" cunharam uma frase definitiva para expressar, em toda circunstância, essa inevitabilidade, e justificar suas decisões: "Não há alternativa" – dizem eles. A frase sempre soa como um ponto final no debate e, ao mesmo tempo, como uma espécie de isenção de responsabilidade pêlos efeitos das medidas tomadas, por mais negativas e predatórias que elas sejam. Os que resistem ou se opõem, os inconformados e os excluídos são, assim, desafiados, com cinismo e desprezo, a construírem alternativas e a comprovarem a sua consistência.
    Evidentemente, aqueles que afirmam não haver alternativa o fazem convictos de que nenhuma outra força vai emergir e crescer a ponto de ameaçar as tendências dominantes que os favorecem e impulsionam suas iniciativas. Minha pergunta é: De onde lhes vem essa convicção, essa segurança? Talvez sua confiança esteja fundada na crença da primazia absoluta do capital, do seu caráter invencível, desde que o desenvolvimento da racionalidade econômica confundiu-se com o desenvol­vimento da racionalidade tecnocientífica. Com efeito, tudo se passa como se a evolução e o sentido dessas duas racionalidades houvessem se tornado um só e único movimento que por um lado recusa até mesmo a idéia de qualquer limite para o capital, e, por outro, qualquer limitação ao progresso tecnocientífico. Assim, no fundo, a frase "Não há alternativa" assume o contorno de fatos do destino.
    Um exemplo claro da interpenetração entre racionalidade econômica e racionalidade tecnocientífica nos tempos atuais nos é dado por Fumio Kodama1. Conduzindo uma análise empírica da geração, inovação e difusão de altas tecnologias no Japão, o scholar descobriu que está ocorrendo uma mudança paradigmática com relação à tecnologia. "Tal mudança, escreve Kodama, está tornando obsoletos os argumentos de política científica e tecnológica até agora correntes nas teorias da administração de empresas e nas relações internacionais. (…) As transformações estão em toda parte: em quem torna a alta tecnologia disponível; em como esta é gerada; e para que ela é utilizada. Elas estão no campo das empresas industriais c do seu principal negócio, isto é, nos agentes econômicos através dos qual a alta tecnologia chega ao mercado. Elas estão nas atividades de pesquisa e desenvolvimento e nos processos de desenvolvimento tecnológico, isto é, nas atividades intelectuais humanas que geram alta tecnologia. Elas também estão no padrão de inovação e na difusão da tecnologia, isto é, no processo social através do qual a alta tecnologia é realizada."‘.
    Kodama encontra seis categorias de transformações que caracterizam a mudança de paradigma tecnológico. Destes, destaco duas que nos interessam sobremaneira. A primeira refere-se às atividades de pesquisa e desenvolvimento. É que a indústria está promovendo grandes alterações nas tomadas de decisões sobre investimento em pesquisa. As decisões de investir, afirma Kodama, não se baseiam mais nas taxas de retorno e se assemelham muito ao princípio do surfe: as ondas de inovações se sucedem, uma atrás da outra, e você ou investe ou morre. Por outro lado, o padrão de competição também está mudando; até há pouco, o competidor costumava ser uma outra empresa do mesmo setor industrial, mas agora, em muitos casos, o competidor é uma companhia de um setor industrial diferente, o que faz com que se passe de competidores visíveis para inimigos invisíveis. A segunda grande transformação refere-se aos padrões de inovação. Na visão convencional a inovação técnica se realiza através da ruptura das fronteiras de tecnologias existentes, como é o caso dos transistores, por exemplo. Entretanto não é o que ocorre nos campos da mecatrônica, da optoeletrônica e da biotecnologia, nos quais a inovação se dá muito mais através da fusão de diversos tipos de tecnologia do que de rupturas tecnológicas. A fusão, escreve Kodama, significa mais que a soma e a combinação de tecnologias diferentes, porque implementa uma aritmética em que um mais um é igual a três. A fusão é mais do que a complementaridade, pois cria um novo mercado e novas oportunidades de crescimento para cada participante da inovação. A fusão vai além da acumulação de pequenos aperfeiçoamentos, pois mistura sinergeticamente aperfeiçoamentos de vários campos antes separados, criando um produto com um ingrediente extra que não tem igual no mercado. Finalmente, a fusão vai além das relações interindustriais, pois diferentes inovações de diferentes indústrias avançam paralelamente, assumindo a forma de pesquisa conjunta. 3
    As observações de Kodama sugerem que o princípio da competitividade obriga a racionalidade econômica a atrelar-se à racionalidade tecnocientífica, ao subordinar as decisões de investimento não às taxas de retorno, mas à dinâmica da inovação; como se a corrida tecnológica lançasse as empresas numa constante fuga para frente, ou numa constante antecipação do futuro; como se a sobrevivência das empresas no mercado dependesse mais de sua capacidade de invenção c substituição de produtos do que da extensa exploração comercial dos mesmos, cujo ciclo de vida é cada vez mais curto. Por outro lado, a fusão de tecnologias parece imprimir uma velocidade inédita à dinâmica da inovação, confirmando o diagnóstico de Richard Buckminster-Fuller, de que estamos vivendo, desde o início da década de 70, um processo de aceleração da aceleração tecnocientífica. 4
                ***
    Tudo se passa então como se estivéssemos vivenciando um período de ondas de revolucionarização que, emergindo de dentro do capitalismo, lhe dão novo alento e vão lhe abrindo novas perspectivas: é a Revolução Eletrônica, seguida pela Revolução das Comunicações, seguida pela Revolução dos Novos Materiais e pela Revolução Biotecnológica. O impacto crescente que essa evolução econômica e tecnocientífica exerce sobre as sociedades e os efeitos colaterais que ela suscita em todas as áreas começa a ser sentidos e percebidos, mas ainda estamos longe de poder analisá-los e avaliá-los. De todo modo, os aspectos sociais e ambientais negativos que ela já explicitou não parecem arranhar, quanto mais comprometer, a legitimidade do progresso da ciência e da tecnologia. Ora, não há como questionar o caráter aparentemente inexorável e irre­versível do rumo tomado pela evolução econômica e tecnocientífica sem interrogar essa legitimidade.
    O pensamento de Keiji Nishitani é, nesse ponto, de grande valia, na medida em que capta com grande clareza o "espírito" do progresso tecnocientífico e o que torna a soberania da ciência ao mesmo tempo tão onipresente e tão inquestionada. Analisando as relações entre ciência e filosofia de um ângulo novo, o filósofo japonês considera a vigência imediata das leis da natureza nos seres inanimados e nos seres vivos. As coisas inanimadas, diz ele, são completamente passivas à vigência da lei, e nessa medida essa vigência pode ser considerada como direta; nos seres vivos, porém, as leis da natureza surgem leis vividas, pois em todos esses seres as leis se apresentam como leis vividas em suas vidas. Nesse sentido, o termo "instinto" designaria a apreensão ou a apropriação dessas leis, e o comportamento instintivo seria a lei da natureza tornada manifesta 5.
    O modo de ser do objeto técnico, entretanto, não e imediato e sim mediato. Diferentemente do instinto, a tecnologia implica uma apreensão intelectual dessas leis, um processo de abstração que será em seguida desdobrado num processo de concretização: quando o homem pré-histórico aprendeu a fa­zer fogo através do uso de instrumentos, essa habilidade con­tinha embrionariamente a compreensão das leis da natureza como leis. Nesse caso, em vez de manifestar-se diretamente, a lei da natureza se manifesta como lei através da tecnologia do homem, isto é, como atividade refratada pelo conhecimento. "O mesmo ocorre no caso do conhecimento e da tecnologia que se tornam científicos – escreve Nishitani. Nas ciências naturais, as leis tornam-se conhecidas somente como leis em sua abstração e universalidade; a tecnologia que contém tal conhecimento torna-se a tecnologia mecanizada. (…) As má­quinas e a tecnologia mecânica são a suprema incorporação e apropriação das leis da natureza pelo homem"6.
    A vigência das leis da natureza se manifesta portanto em diversas dimensões. No campo físico como matéria, no campo biológico como instinto, no campo humano como matéria, vida e intelecto… e no campo da tecnologia mecânica, como sua forma de manifestação mais depurada. Está se vendo que quanto maior o poder de apropriação, incorporação e uso dessas leis, mais intensa é a sua manifestação. Mas por outro lado, e paradoxalmente, quanto maior o poder dos seres de usar as leis da natureza para seus próprios propósitos, maior é o grau de liberdade de uso dessas leis, menor é a sujeição a elas.
    Nishitani acredita que nada expressa melhor esse paradoxo do que a máquina. "As máquinas, diz ele, são puros produtos do intelecto humano, construídas para os propósitos do próprio homem. Em lugar algum podem ser encontradas no mun­do da natureza (como produtos da natureza); entretanto, a obra das leis da natureza encontra sua expressão mais pura nas máquinas, mais pura do que em qualquer produto da natureza. As leis da natureza operam diretamente nas máquinas, com uma imediaticidade que não pode ser encontrada em produtos da natureza. Na máquina, a natureza é trazida de volta para si mesma de uma maneira mais depurada (abstraída) do que é possível na própria natureza. Assim as operações da máquina tornaram-se uma expressão do trabalho do homem. Com uma abstração mais pura do que tudo nos produtos da natureza, quer dizer, com um tipo de abstração impossível para os acontecimentos naturais, a expressão das leis da natureza tornou-se uma expressão do trabalho do homem. Isto mostra a profun­didade do controle das leis da natureza. (…) Entretanto, visto pelo outro lado, o surgimento da máquina marca a suprema emancipação da vigência das leis da natureza, a suprema aparição da liberdade de usar tais leis. Na máquina, o trabalho humano é completamente objetivado; de certo modo, a ação intencional do homem é incorporada na natureza como parte das coisas da natureza, e assim o controle sobre a natureza é radicalizado. E um controle sobre a natureza mais abrangente do que o autocontrole da própria natureza. Vemos então aqui com a maior clareza a relação segundo a qual subordinar-se ao controle da lei implica diretamente em liberar-se dela"7.
    A análise de Nishitani é importante porque nos faz perce­ber a paradoxal relação entre homem e natureza mediada pela ciência e pela tecnologia. Sua compreensão da máquina ao mesmo tempo como suprema manifestação das leis da natureza e como supremo artifício é extremamente instingante. Mais ainda é sua caracterização da nova situação criada com o advento da máquina. Com efeito, o filósofo apontara um movimento segundo o qual, da matéria inerte à máquina, os seres assumiam cada vez mais o controle das leis da natureza; mas agora este movimento estaria sofrendo um processo de inver­são, no qual o controlador é cada vez mais controlado. De um lado, as leis da natureza começaram a reassumir o controle sobre o homem que as controla; de outro, quarto mais o ho­mem tem de sujeitar-se, mais procura tratar as leis da natureza como algo que lhe é completamente exterior.
Vejamos como as coisas se passam. Segundo Nishitani, o campo no qual a máquina aparece é constituído pela articula­ção entre dois fatores: uma inteligência abstrata que busca a racionalidade científica e uma natureza "desnaturalizada", "mais pura do que a própria natureza". Ocorre que esse campo está minando a própria natureza da humanidade. Quando as leis da natureza assumem o máximo de controle sobre os seres e os seres assumem o máximo de controle sobre as leis, rompe-se a barreira entre a humanidade do homem e a naturalidade da natureza, instaurando-se uma profunda perversão, uma inversão da relação mais elementar na qual o homem assumira o controle das leis da natureza por meio do controle que essas mesmas leis forjaram sobre a vida e o trabalho do homem; agora as leis da natureza reassumem o controle através de um processo de mecanização do homem. A essa inversão corresponde uma outra, relativa à vigência das leis da natureza sobre o homem. Pois o máximo de racionalidade científica e o máximo de natureza desnaturalizada levam o homem a comportar-se como se existisse inteiramente fora das leis da natu­reza, instaurando um modo de ser que se ancora no niilismo. Como escreve Nishitani: "Desde tempos imemoriais o homem falou da vida respeitando a lei ou a ordem da natureza. Agora esse modo de ser foi completamente rompido. Em seu lugar surge um modo de ser no qual o homem se situa na liberdade do niilismo e comporta-se como se estivesse usando as leis da natureza completamente de fora. É um modo de ser do sujeito que adaptou-se a uma vida de desejo cru e impetuoso, de vitalidade nua. Nesse sentido, assume uma forma próxima do "instinto"; mas como modo de ser de um sujeito situado no niilismo, é, na verdade, diametralmente oposto ao "instinto"". Nishitani conclui que o surgimento da mecanização da vida humana e a transformação do homem num sujeito completamente não-racional perseguindo seus desejos são faces da mesma moeda. Para ele, a tecnologia das máquinas revela em sua forma mais radical a situação na qual subordinar-se às leis da natureza implica diretamente em emancipar-se delas. Mas ao mesmo tempo permanece oculta a verdadeira configuração dessa situação; isto é: a inversão, a perversão da antiga relação entre homem e natureza. A racionalização da vida leva o ho­mem a submeter-se às máquinas que ele mesmo construiu; por outro lado, o progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao do progresso da moralidade da conduta humana, já que o processo fortalece um modo de ser pré-reflexivo, não-racional e não-espiritual, e nem por isso instintivo.
    Nishitani escreveu seu texto em meados dos anos 50 e já apontava, ali, em plena era da tecnologia mecânica, a tendência à perda do humano. É interessante observar que a mesma preocupação vai se manifestar com grande acuidade nos ensaios escritos vinte anos mais tarde por Philip K. Dick sobre o homem, o andróide e a máquina. 9 A evocação de seus textos justifica-se em primeiro lugar porque a Revolução Eletrônica já está se explicitando e trocando a tecnologia mecânica pela tecnologia da informação. Em segundo lugar, porque, como grande escritor de ficção científica, Dick é levado a operar um deslocamento conceituai, como ele mesmo assinala, para escrever sobre o nosso mundo, mas o nosso mundo transforma­do naquilo que ele não é ou ainda não é.
A leitura de tais ensaios mostra que a situação descrita por Nishitani radicalizou-se, a ponto de não se saber mais onde se encontra o humano. "Hoje, observa Dick, a maior mudança que ganha terreno em nosso mundo é, provavelmente, a ten­dência do ser vivo para a reificação, e ao mesmo tempo a recíproca animação do mecânico. Já não temos categorias pu­ras do ser vivo e do ser inanimado. (…) Estou falando de nosso mundo real e não do mundo da ficção quando digo: Um dia teremos milhões de entidades híbridas (…). Vamos ter de que­brar a cabeça para defini-las verbalmente como ‘homem’ versus ‘máquina’. A questão real é e será: À entidade compósita comporta-se de modo humano? (…) O ‘homem’ ou ‘ser hu­mano’ são termos que devemos compreender e usar corretamente, mas eles não se referem à origem ou a qualquer onto­logia e sim ao modo de ser no mundo (…)"10.
O comentário de Dick aponta para uma intensificação da mecanização do homem e para um aprofundamento da relação perversa entre homem e natureza. Por outro lado, constatando a perda do humano e tentando encontrar onde este ainda se refugia, o escritor descobre que ele se afirma no mais puro egoísmo, no desejo de expressar uma vitalidade cada vez mais amea­çada pelo avanço da dominação fundada na racionalidade tecnocientífica. Numa palavra: Dick descobre que o humano se manifesta num comportamento "selvagem", o comportamento de um sujeito que persegue a satisfação de seus desejos negando a mecanização e a ordem que a sustenta. Com efeito, como não perceber o niilismo do que Dick preconiza ao escrever: "(…) a ética mais importante para a sobrevivência do verdadeiro indi­víduo humano seria: engane, minta, escape, trapaceie, esteja em outra, forje documentos, construa dispositivos eletrônicos aperfeiçoados na sua garagem que sejam capazes de despistar os dispositivos usados pelas autoridades"?
Os ensaios de Dick parecem confirmar a análise de Nishitani, segundo a qual a mecanização da vida humana e a transformação do homem num sujeito completamente não-racional, perseguindo seus desejos são faces da mesma moeda. Por outro lado, também parecem corroborar a observação do filósofo japonês de que o progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao do progresso da moralidade da conduta humana. O mais fascinante, no entanto, é dar-se conta de que a satisfação do desejo desse sujeito que tenta escapar da mecanização se faz cada vez mais intensificando o próprio pro­cesso de mecanização. Isso já despontava na recomendação feita por Dick. Mas creio que a melhor maneira de entender o que se passa verifica-se no campo da reprodução humana. O desejo de ter um filho por parte de indivíduos que não podem ou não querem tê-lo pelas vias biológicas "normais" pode ser satisfeito atualmente graças aos avanços tecnocientíficos da chamada reprodução assistida. Como diz Lori Andrews12, "os anos 60 trouxeram o sexo sem procriação; os 80 trouxeram a procriação sem sexo". O leque de opções para a satisfação desse desejo amplia-se ininterruptamente: das inseminações artificiais à possibilidade de clonagem humana, passando pêlos bebês de proveta, os bancos de esperma, as barrigas de aluguel, a comercialização de ovos e embriões e as promessas da engenharia genética para a geração da "criança perfeita". Ora, a abertura desse campo está criando situações inéditas. Na Inglaterra, uma jovem deseja conhecer a experiência da imaculada concepção porque identifica-se com a Virgem Maria, enquanto um casal de gays e um casal de lésbicas desejam constituir um novo tipo de família. Na Itália senhoras de idade desejam ser mães. Clientes japoneses viajam para contratar barrigas de aluguel no exterior porque a atividade é ilegal em seu país. Nos Estados Unidos, diversos bebés gerados por mães substitutas vêm sendo abandonados porque nasceram com o sexo errado; ao mesmo tempo, disputas judiciais colocam aos juizes a responsabilidade de ter de decidir quem é a mãe: a mulher que forneceu o óvulo ou aquela que portou e pariu a criança? Em todo o mundo as concepções tradicionais de vida, de morte, de procriação, de filiação, de parentesco estão sendo implodidas e é grande a controvérsia em torno do momento em que o material humano passa a ser pessoa.
Na Europa e nos Estados Unidos os juristas começam a se defrontar com os efeitos da combinação perversa entre meca­nização do humano e constituição de um sujeito não-racional perseguindo seus desejos. Num livro interessantíssimo, o advogado Andrew Kimbrell expõe, através de um inventário de casos julgados pêlos tribunais americanos, os dilemas éticos e os problemas jurídicos suscitados pelo engenheiramento e a comercialização da vida. Sua leitura deixa a impressão de que o Direito vem sendo atropelado pelo desenvolvimento tecnocientífico, que lhe cria situações novas para as quais lhe faltam parâmetros. 13 Por sua vez, Catherine Labrusse-Riou demonstra que o reconhecimento jurídico do direito das pessoas está sendo posto em xeque pelas dificuldades de distinguir as pessoas das coisas (caso do embrião in vitro ou congelado e caso do comatoso ou do estado vegetativo, que embaralham as fron­teiras e as representações da vida e da morte); de distinguir os sexos (fenômeno do transexualismo, que embaralha as fron­teiras entre homens e mulheres, provocando a indiferenciação sexual); de distinguir o homem do animal (caso das experimentações biotecnológicas que misturam genes humanos e animais, criando por exemplo um rato que desenvolve uma orelha humana, ou uma ovelha que produz proteína humana no seu leite, graças ao engenheiramento de células humanas em seu corpo); e, finalmente, de distinguir o homem da máquina (caso da inteligência artificial)14.
    Tudo isso parece indicar que na verdade, com a perda do humano, o próprio sujeito de direito entrou em crise. Com efeito, num artigo contundente Bernard Edelman acaba chegando a conclusões muito próximas das elaboradas por Nishitani a respeito da soberania da ciência e do triunfo do "espírito" do progresso tecnocientífico. Entretanto, o jurista o faz através de uma crítica do próprio humanismo jurídico, com o intuito de se perguntar se o Direito pode ser um recurso para preservar a humanidade do homem nos tempos atuais15.
Antes de mais nada, Edelman considera que o Direito nada pode esperar do humanismo porque a evolução tecnocientífica encarregou-se de descartá-lo. No seu entender, o humanismo do século XIX foi uma tentativa de coabitação da filosofia com a ciência na qual pretendia-se, por um lado, proteger a essência do homem, isto é, sua humanidade, e por outro conceber essa essência do ponto de vista científico. O tempo, entretanto, encarregou-se de mostrar que isso era uma ilusão, na medida em que a ciência colocou o humanismo a seu serviço para a consecução de seu próprio fim, que nada tinha de humanista. Corno isso se deu? Edelman estima que isso ocorreu através da "loucura" do direito subjetivo.

"Tradicionalmente, diz ele, o direito subjetivo é a expressão do poder reconhecido pelo Direito ou pelo Estado ao indivíduo. No sistema dos Direitos humanos, o sujeito de direito ocupa o centro, do mesmo modo que o homem, antes de Copérnico, ocupava o centro do universo. Por isso, o sujeito é, ao mesmo tempo, o fim do direito e sua origem. O fim do direito, na medida em que tudo converge para ele, sua origem, na medida em que, sem o reconhecimento de sua existência, o direito não teria mais objeto. Isso significa que, no sujeito, o direito exprime sua essência, e em sua defesa reconhece-se a maior ou menor democracia de um dado sistema social. Esse é o espírito que anima a Declaração dos direitos do homem e do cidadão"16.

Entretanto, na própria Declaração, essa centralidade, absoluta do sujeito era relativizada pela liberdade reconhecida aos outros sujeitos. Assim, além do postulado de um sujeito todo-poderoso, a sociedade dos Direitos humanos também postulava o reconhecimento de uru outro todo-poderoso, O conceito de limite era portanto subsumido pelo conceito de reconhecimento. Desse modo, "o sistema dos Direitos huma­nos teria resolvido o conflito entre o individualismo indomado e o direito, já que esse individualismo não repousa sobre uma restrição legal dos impulsos mas sim de uma limitação desses impulsos através do reconhecimento dos de outrem"17.
Ora, constata Edelman, atualmente esse equilíbrio desa­pareceu: "Não só o sujeito aumentou sua potência porque a ciência lhe forneceu os meios, como também o outro não exerce mais o papel de fronteira ou de limite. Tudo se passa como se o direito subjetivo tivesse perdido seus contornos e que sua selvageria originária pudesse, então, manifestar-se livremente; tudo se passa como se estivéssemos diante de um sujeito ‘desenfreado’ (…). (…) a destruição da idéia de natureza natural acarretou um desenvolvimento extraordinário dos direitos subjetivos. Como a natureza não exercia mais o papel de limite, o sujeito pôde se expandir no artifício de uma onipotência absoluta. De modo correlato, a supressão do outro como limite produz uma liberação do mesmo tipo na ordem social. (…) O liberalismo, em sua forma absoluta, funda-se num tal narcisismo, e por sua vez permite sua expansão. Quando um sistema funda-se sobre desejos ilimitados – ir à lua, reproduzir-se de modo idêntico, escapar das dores da maternidade, escapar da angústia, ‘enxertar’ seu cérebro num computador… – e instaura um mercado desses desejos, o liberalismo que o inspira é ao mesmo tempo ‘amoral’ e estimulador daquilo mesmo que o nutre"1. Em tal contexto, e para que isso ocorra, o direito subjetivo precisa ser desatado, desenfreado e acolher nele mesmo uma selvageria indomada. A tecnociência fornece essa possibilidade porque o que a caracteriza é precisamente a ausência de limites, isto é, a abolição de todas as fronteiras, a abolição de todos os interditos. A tecnociência autoriza a realização dos mais loucos desejos de conquista: o desejo de tudo fazer e de tudo saber. A abolição de fronteiras, diz Edelman, surge como a transgressão do próprio humano, que se formula assim: não reconheço a ninguém o direito de deter o meu desejo, ou, pior ainda: o direito está aí para permitir a realização do meu desejo. Desabrido, desenfreado, o direito subjetivo acaba se voltando contra a própria humanidade do homem, na medida em que concede ao sujeito, no campo da tecnociência, a possibilidade de tornar-se sujeito absoluto.
Pode o Direito limitar a "loucura" do direito subjetivo, a fim de preservar a humanidade do homem? Edelman acredita que sim. E, para demonstrá-lo, o jurista toma como exemplo o caso de um biólogo que pede aos tribunais a liberdade de utilizar "material humano". Nesse caso, para responder, o juiz deve classificar esse "material" na categoria das coisas ou das pessoas; e sua classificação nesta ou naquela categoria produz efeitos. Ora, a razão de tal classificação só se refere ao próprio direito e a nenhum outro campo do conhecimento. "Assim, escreve Edelman, basta que o direito proclame, contra qualquer evidência científica, que uma célula humana é uma coisa, basta que, contra qualquer evidência, ele proclame que um útero é um objeto de locação, para que a célula seja patenteável e o útero seja submetido a um contrato de locação. Em outras palavras, a classificação jurídica não visa a verdade, não tem nada a ver com o verdadeiro e o falso e nem pretende dar conta de uma rea­lidade objetiva. Ela implica num julgamento"19.
Qual é o sentido dessa classificação? A resposta de Edel­man é categórica: para o direito, classificar é traçar limites segundo seu próprio ponto de vista, instaurar fronteiras entre o lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, entre o possível e o impossível. Se o juiz considerar o "material humano" como coisa, tal qualificação não tem nada a ver com a definição científica, mas antes decorre de um julgamento sobre um agregado de células que lhe atribuirá um estatuto na ordem jurídica. Assim, se disser que uma célula é urna coisa, vai fazê-la entrar numa história da "coisa humana", junto com o escravo e o corpo da cortesã, por exemplo; isto é: um estatuto relacionado com a propriedade, o direito de herança, etc. Para o Direito, classificar é, portanto, traçar limites; mas, acima de tudo, traçar limites que regulem os impulsos do sujeito, que o impeçam de tornar-se todo-poderoso, que refreiem a sua vontade. Por isso mesmo, Edelman considera que o Direito está em permanente conflito com o direito subjetivo; afinal, a realização do narcisismo absoluto implícito no direito subjetivo significaria o fim do próprio Direito.
Vimos com Nishitani que a racionalidade econômica do mercado, a racionalidade tecnocientífica e um sujeito completamente não-racional perseguindo seus desejos constituem um processo perverso e niilista que acarreta a perda do humano. Vemos agora, com Edelman, que, no campo jurídico, tal processo se exprime através de um direito subjetivo que transgride até a humanidade do homem; vimos, ainda, que o Direito se encontra em permanente conflito com o direito subjetivo. Em meu entender, tudo leva a crer, então, que o Direito se encontra tensionado por duas tendências contraditórias. De um lado, se o processo perverso prosseguir de modo ilimitado, acaba implodindo o próprio Direito através da "loucura" do direito subjetivo. De outro lado, para continuar existindo, o Direito precisa afirmar a sua razão de ser, a sua normatividade, e es­tancar essa "loucura", traçando limites para o mercado e para a atividade tecnocientífica. Ora, como tem se expressado essa tensão no campo jurídico? A primeira tendência tem se reali­zado através da desregulação do mercado e da universalização dos direitos de propriedade intelectual, que confere à ciência e à tecnologia uma liberdade inaudita. A segunda tendência vem se manifestando através do trabalho dos juristas que ten­tam construir um Direito não-humanista para defender os interesses da natureza e dos cidadãos em seu conjunto, para além dos interesses individuais privados, como bem mostra o jurista francês François Ost, ao escrever: "Depois de dois séculos de insistência sobre as prerrogativas individuais, chegou o momento de perceber que uma sociedade só é viável quando as tarefas são assumidas coletivamente pêlos cidadãos: nesse sentido, (…) propomos uma nova maneira de entender os direitos coletivos." 20

 

NOTAS


1 KODAMA, F. Analyzing Japanese high technologies: The techo-paradigm shift, Londres, Pinter Publishers, 1991.
2 Idem, p. l e 2.
3. Ibid., p. 3 e 121.
4 BUCKMINSTER-Fuller, R. Criticai path, Nova York, St. Martin’s Press, 1985.
5 NISHITANI, K. Religion and Nothingness, Berkeley, University of Califórnia Press, 1982. Trad. e Intr. Jan van, p. 79s.
6 Idem, p. 81-82.
7 Ibid., p. 83-84.
8 Ibid., p. 85-86.
9 DICK, Philip K. "The Android and the Human", "Man, Android, and Machine", in: The shifting realities of Philip K. Dick: Selected literary and philosophical writings, Ed. & Intr. Lawrence Sutin, New York, Pantheon Books, 1995.
10 Idem, p.212.
11 Ibid., p.194-195.
12 Citado por KIMBRELL, A. THE HUMAN BODY SHOP – THE ENGINEERING AND MARKETING OF LIFE, Penang (Malaysia), The Third World Network, 1993, p.68
13 Cf. nota anterior.
14 LABRUSSE-RIOU, C. "La vérité dans lê droit dês personnes", in Edelman, B. et Hermitte, M.-A., « L’Homme, la Nature et lê Droit », Paris, Christian Bourgois. Ed., 1988, p 159-198.
15 Edelman, B. "Critique de 1’Humanisme juridique", in Edelman, B. et Hermitte, M.-A., op. cit., p. 287s.
16 Idem, p. 295.
17 Ibid., p. 297.
18 Ibid., p. 297-298.
19 Ibid., p.303.
20 OST, F. “Derecho, tecnología, Medio Ambiente: Um Desafio para las Grandes Dicotomías de la Racionalidad Ocidental” In: Revista de Derecho Público, n. 6, Santa Fe de Bogota, Universidade de Los Andes, Facultad de Derecho, Junio de 1996, p. 11.

 

 

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PARIS, 1968 – MURRAY BOOKCHIN

PARIS, 1968
 
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MURRAY BOOKCHIN
(Em O Anarquismo pós-escassez, 1974)


A Qualidade da vida cotidiana
A rebelião de maio-junho de 1968 foi um dos mais importantes acon­tecimentos que ocorreram na França desde a Comuna de Paris em 1871. Ela não só sacudiu as bases da sociedade burguesa na França, como levan­tou problemas e apresentou soluções de uma importância sem preceden­tes para a sociedade industrial moderna, merecendo ser estudada e discu­tida em profundidade pêlos revolucionários de todo o mundo.
A rebelião de maio-junho aconteceu num país industrializado e orientado para o consumo — menos desenvolvido que os Estados Unidos, mas pertencendo basicamente à mesma categoria econômica. A revolta destruiu o mito de que a riqueza e os recursos da moderna sociedade industrial podem ser usados para neutralizar todas as formas de oposição revolucionária. Os acontecimentos de maio-junho demonstraram que as con­tradições e antagonismos do capitalismo não são eliminados pela estratificação e por formas avançadas de industrialismo, mas apenas transformados em forma e caráter.
O fato de que a revolta pegou a todos de surpresa, mesmo os mais sofisticados teóricos dos movimentos marxistas, situacionistas e anarquistas, ressalta a importância dos acontecimentos de maio-junho e suscita a necessidade de examinar as origens da inquietação revolucionária da sociedade moderna.
As inscrições que podiam ser lidas nos muros de Paris – "Poder para a imaginação", "É proibido proibir". "A vida sem tempos mortos", "Trabalho, nunca"—representam uma análise mais profunda dessas origens do que todos os volumes cheios de teorias herdadas do passado. A revolução revelou que chegamos ao fim de uma era e ao início de novos tempos. As forças que hoje motivam a revolução — pelo menos no mundo industrializado — já não são simplesmente a escassez e a necessidade material, mas também a qualidade da vida cotidiana, a necessidade de liberação da experiência e a tentativa de controlar o próprio destino.
Não importa que as inscrições dos muros de Paris tivessem sido feitas, no início, por uma pequena minoria. Por tudo o que vi até agora, parece claro que os graffiti (que hoje enchem vários volumes) incendiaram a imaginação de muitos milhares em Paris. Eles conseguiram expor a coragem/nervo revolucionário da cidade.

Um movimento majoritário espontâneo
A revolta foi um movimento majoritário no sentido de que fez um corte longitudinal por todas as camadas da sociedade francesa, envolvendo não apenas estudantes e operários, mas técnicos, engenheiros e funcionários em quase todos os níveis da burocracia estatal, industrial e comercial. Atingiu profissionais liberais e trabalhadores, intelectuais e jogadores de futebol, artistas de televisão e operários do metro. Chegou a penetrar na força policial da cidade e é quase certo que afetou também a grande massa de soldados alistados no exército francês.
A rebelião foi iniciada basicamente pêlos jovens. Ela começou entre os estudantes universitários e depois foi apoiada pêlos jovens operários industriais, pêlos jovens desempregados e pêlos "jaquetas de couro" — a assim chamada delinqüência juvenil das cidades. Deve-se salientar especialmente a participação dos estudantes de segundo grau e dos adolescentes que frequentemente demonstraram mais coragem e determinação do que os seus colegas universitários. Mas a revolta afetou os mais velhos também: funcionários burocráticos, trabalhadores braçais, técnicos e profissionais. Embora tivesse sido catalizada pêlos revolucionários conscientes, especialmente por grupos de afinidade anarquista, de cuja existência ninguém suspeitava nem mesmo vagamente, o fluxo, o movimento de rebelião foi espontâneo.
Ninguém incitou à revolta, ninguém chegou a organizá-la e também ninguém conseguiu controlá-la.
Durante a maior parte daqueles dias de maio e junho, houve uma atmosfera de festa, um despertar da solidariedade, um desejo de ajudar-se mutuamente, de expressar a própria individualidade, algo que não era visto em Paris desde os dias da Comuna. As pessoas estavam literalmente redescobrirido — ou talvez reconstruindo — a si próprias e aos outros. Em muitas cidades industriais, os operários entupiam as praças, hasteavam bandeiras vermelhas, liam avidamente e discutiam cada panfleto que lhes caísse nas mãos.
Milhares de pessoas foram atacadas por uma febre de viver, um renascer de sentimentos que nem sonhavam possuir, de uma alegria e um entusiasmo que nunca pensaram poder sentir. As línguas ficaram mais soltas, os ouvidos e os olhos adquiriram mais acuidade. Cantava-se e muitas das velhas canções ganharam novas letras, mais irreverentes. Os pátios das fábricas se transformavam em salões de baile.
As inibições sexuais que paralisavam a vida de tantos jovens franceses foram destruídas em poucos dias. Esta não era uma revolta solene, um golpe de estado burocraticamente planejado e manipulado por um "partido de vanguarda", mas algo espirituoso, satírico, criativo — e justa­mente aí estava a sua força, a sua capacidade de mobilizar e contagiar as pessoas.
Muitos conseguiram transcender as estreitas limitações que obstruíam sua visão social. Para milhares de estudantes, a revolução veio desmistificar o pretensioso sentimento de classe, como se os estudantes constituíssem uma casta privilegiada, o que na América é expresso pêlos exames classificatórios e pelo empolado sociologês dos documentos analíticos. Cada operário que se integrava aos comitês de ação em Censier deixava de ser um operário, como tal, para tornar-se um revolucionário. E era precisamente com base nessa nova identidade que pessoas que tinham passado a vida em universidades, fábricas e escritórios podiam encontrar-se livremente, trocar experiências e engajar-se em ações comuns sem preconceitos contra seu meio social ou suas origens.
A revolta tinha criado o ponto de partida de sua própria sociedade, sem classes nem hierarquia. Sua tarefa básica era estender os seus domínios a todo o país, a cada recanto da sociedade francesa e só conseguiria fazê-lo se o princípio de auto-determinação pudesse ser aplicado em todas as suas formas — as assembléias gerais e seus modelos administrativos, os comitês de greve nas fábricas — a todas as áreas da economia e da própria vida. Quem melhor parece ter entendido esta necessidade não foram os operários das indústrias mais tradicionais, onde as CGTs controladas pêlos comunistas exerciam sua poderosa influência, mas os das indústrias modernas, de tecnologia mais avançada, como a eletrônica.(Desejo salientar que esta é uma conclusão puramente especulativa a que chegamos depois de ouvir uma série de episódios esparsos, mas bastante significativos, relatados por jovens militantes dos comitês de ação integrados por estudantes e operários.)

Autoridade e hierarquia:
Um dos aspectos mais importantes da revolta de maio-junho foi a luz que ela lançou sobre a questão da autoridade e da hierarquia.
A este respeito, ela representou um desafio não só aos processos conscientes dos indivíduos mas aos seus mais arraigados hábitos inconscientes e aos condicionamentos impostos pela sociedade. Não creio que seja pre­ciso discutir aqui que tais hábitos são instilados no indivíduo desde os primeiros anos de vida — no ambiente familiar, na educação recebida no lar e na escola, na organização do trabalho, do lazer e da vida cotidiana. Esta amoldagem da estrutura do caráter, segundo normas criadas a partir de arquétipos de obediência e comando, constituem a própria essência daquilo a que chamamos de socialização da juventude.
A mística da organização burocrática, de hierarquias e estruturas impostas e formais, impregna os movimentos mais radicais em períodos não-revolucionários. A extraordinária suscetibilidade da esquerda aos impulsos autoritários e hierárquicos revela que o movimento radical está profundamente enraizado naquela mesma sociedade que aparentemente deseja destruir. Sob este aspecto, quase todas as organizações revolucionárias são uma fonte potencial de contra-revolução e este potencial só pode ser reduzido se a organização revolucionária for estruturada de tal modo que seu modelo espelhe as formas diretas e descentralizadas de liberdade pregadas pela revolução, e se a organização revolucionária promover a adoção de uma personalidade e um modo de vida realmente livres. Só assim o movimento revolucionário será capaz de integrar-se na revolução, sendo absorvido pelo novo modelo social democrático assim como a linha cirúrgica acaba desaparecendo, absorvida pela fenda que cicatriza.
A ação revolucionária destrói todos os laços que mantêm autoridade e hierarquia unidas na ordem social existente. A participação direta do po­vo na arena social é a própria essência da revolução, forma mais avançada de ação social, assim como a ação direta em épocas "normais" é uma preparação indispensável para a ação revolucionária. Em ambos os casos, o que ocorre é uma substituição da ação social, a partir das camadas mais baixas, pela ação política dentro da estrutura hierárquica já estabelecida. Em ambos os casos, há uma transformação molecular de "massas", classes e níveis sociais, que passam a ser apenas indivíduos revolucionários. É necessário que esta nova condição se torne permanente para que a revolução possa ser bem sucedida — do contrário ela se transformará apenas numa contra-revolução mascarada de ideologia revolucionária. Cada fórmula, cada organização, cada programa "testado e aprovado" deve dar lugar às exigências da revolução. Não há nenhuma teoria, programa ou partido que possa valer mais do que a própria revolução. Entre os mais sérios obstáculos ao sucesso da revolta de maio-junho estavam não apenas De Gaulle e a polícia mas as rígidas organizações de esquerda — o Partido Comunista, que sufocou qualquer espécie de iniciativa em muitas fábricas e os grupos trotskystas que conseguiram criar um péssimo clima durante a assembléia geral na Sorbonne. Não me refiro aqui aos inúmeros indivíduos que se identificavam romanticamente com Che, Mao, Lênin ou Trotsky (e muitas vezes com todos eles a um só tempo), mas daqueles que perdiam totalmente a identidade, a iniciativa e a vontade própria, entregando-se a organizações hierárquicas submetidas a uma rigorosa disciplina. Por mais bem intencionadas que fossem essas pessoas, sua tarefa era "disciplinar" a revolta, ou mais precisamente, retirar dela seus aspectos revolucionários, introduzindo hábitos de obediência e autoridade que suas organizações haviam assimilado da ordem estabelecida. Estes hábitos, estimulados pela participação em organizações muito bem estruturadas — organizações modeladas, na verdade, naquela mesma sociedade que os revolucionários afirmam querer destruir — levavam ao aparecimento de estratégias parlamentares, "panelinhas" secretas, e tentativas de controlar as formas revolucionárias de liberdade criadas pela revolução. Isto tudo fez com que surgisse, durante a assembléia da Sorbonne, um sonho venenoso de manipulação. Muitos dos estudantes com que falei estavam absolutamente convencidos de que estes grupos estariam dispostos a destruir a assembléia se não pudessem "controlá-la". Estes grupos não estavam preocupados com a vitalidade das novas formas criadas pela revolução mas apenas com o crescimento de suas próprias organizações. Tendo criado formas autênticas de liberdade nas quais todos podiam expressar livremente os seus pontos de vista, a assembléia estaria plenamente justificada se tivesse decidido banir do seu meio todos os grupos organizados de forma burocrática.
Um dos grandes feitos do Movimento 22 de Março é o fato de que conseguiu integrar-se de tal forma às assembléias revolucionárias que acabou por desaparecer quase totalmente como organização independente, conservando apenas o nome. Nas suas próprias assembléias, os integrantes do 22 de Março baseavam todas as suas decisões no consenso unânime, que permitia a livre expressão de todas as tendências que o movimento abrigava, para testar na prática a sua validade. Tal tolerância não prejudicou em nada a sua "eficácia"; este movimento anárquico fez mais para catalizar a revolta do que qualquer outro grupo, segundo observações feitas por quase todos os que observaram a sua atuação. O que distingue o Movimento 22 de Março e outros grupos, tais como os anarquistas e os situacionistas, de todos os outros grupos é o fato de que eles não trabalhavam para tomar o poder mas sim para destruí-lo.

A Dialética da Revolução Moderna
Os acontecimento de maio e junho na França revelam de maneira viva e dramática a extraordinária dialética da revolução. A miséria cotidiana de uma sociedade é acentuada pela possibilidade de obtenção da liberdade. E quanto maior for esta possibilidade, mais intolerável se tornará a miséria cotidiana. Por esta razão, o fato de que a sociedade francesa seja hoje mais afluente do que em qualquer outra época de sua história não é muito importante pois afluência, em sua forma burguesa extremamente distorcida, indica simplesmente que já há condições materiais para a liberdade e que as possibilidades técnicas para uma nova vida, mais livre, atingiram a plena maturidade.
E evidente que estas possibilidades vinham rondando já há muito tempo a sociedade francesa, ainda que não fossem percebidas pela maioria das pessoas. Os gráficos que revelam o crescimento brutal do consumo são um indício da tensão existente entre a realidade medíocre da sociedade francesa e as possibilidades liberadoras de uma revolução, do mesmo modo que uma dieta demasiado farta e uma obesidade excessiva revelam a tensão que existe dentro de um indivíduo. Chega finalmente um momento em que a dieta, por melhor que seja, perde todo o encanto, um momento em que a obesidade social se torna intolerável. Ninguém pode prever o exato momento em que isto acontece. No caso da França, este momento chegou com as barricadas do dia 10 de maio, um dia que sacudiu a consciência de todo o país e fez com que os operários se perguntassem: "Mas afinal, se os estudantes, aqueles ‘filhos da burguesia’, podem fazer isso, por que nós não podemos?"
A França passava por um processo molecular, completamente invisível mesmo para os revolucionários mais conscientes, um processo que culminou numa ação revolucionária precipitada pelas barricadas. Depois do dia 10 de maio, a tensão entre a mediocridade da vida cotidiana e o potencial de uma sociedade liberada explodiu, provocando a maior greve geral da história.
A extensão da greve demonstra que quase todas as camadas da sociedade francesa estavam profundamente descontentes e que a revolução não era apoiada apenas por uma determinada classe mas por todos aqueles que se sentiam esbulhados, repudiados e logrados no seu direito a uma vida melhor. O impulso revolucionário partiu de uma classe que, mais do que qualquer outra, deveria ter se adaptado à ordem estabelecida — os jovens. Pois eram justamente os jovens que tinham sido alimentados com a papa da "civilização" gaullista, que não tinham sentido na pele o contraste entre as características relativamente atraentes da civilização anterior à guerra e a mediocridade da nova civilização. Mas a papa não funcionou. Sua capacidade para cooptar e atrair é, na verdade, bem menor do que suspeitava a maioria dos críticos da sociedade francesa. A sociedade alimentada com tal papa não teve condições de opor-se ao impulso para a vida que surgiu, especialmente entre os jovens.
Não menos importante, a vida dos jovens na França, tal como ocorrera na América, não tinha sofrido os percalços dos anos de depressão econômica nem da busca de segurança material que moldara a vida dos mais velhos. Os jovens viam a realidade da vida francesa tal como ela era — mesquinha, feia, egoísta, hipócrita e espiritualmente aniquiladora. Este único fato — a revolta dos jovens — é a mais terrível prova da incapacidade do sistema para manter-se em seus próprios termos.
A espantosa decadência interna da sociedade gaullista, uma decadência muito anterior à revolta, assumiu formas que não se ajustam a nenhuma das fórmulas tradicionais de "revolução", sempre voltadas para os aspectos econômicos da questão. Muita coisa já foi escrita sobre o “consumismo” da sociedade francesa, no sentido de que ele seria uma forma poluidora de mobilização social. O fato de que objetos, mercadorias, estivessem tomando o lugar das lealdades tradicionais, favorecidas pela Igreja, escola, família e pêlos meios de comunicação deveria ser visto como uma prova de que a desintegração social era muito maior do que se sus­peitava. O fato de que a tradicional consciência de classe do operariado estivesse enfraquecendo deveria ser uma prova de que se estavam criando condições propícias para uma grande revolução social e não uma simples revolução entre classes minoritárias. O fato de que os valores lumpen viessem sendo adorados pela juventude francesa na maneira de vestir, na música, na arte e no estilo de vida deveria ser um indício de que, por trás da fachada de protesto político convencional, amadurecia o potencial para a "desordem" e a ação direta.
Por um extraordinário giro de ironia dialética, o processo de "desaburguesamento" acontecia exatamente no momento em que a França tinha atingido níveis nunca antes registrados de afluência material. Fosse qual fosse a popularidade pessoal de De Gaulle, ocorria na França um processo de "desinstitucionalização" precisamente quando o capitalismo estatal parecia mais entrincheirado na estrutura social do que em qualquer outra época recente. A tensão resultante do confronto entre a realidade mesquinha e as possibilidades de libertação aumentava no momento em que a sociedade francesa parecia mais inerte do que em qualquer outro período desde a década de 20. O processo de alienação acontecia no exato instante em que as verdades da sociedade burguesa pareciam mais seguras do que em qualquer outro momento na história da república.
O que importa é que as questões que contribuíam para a ocorrência de inquietações sociais tinham mudado qualitativamente. Os problemas já não estavam ligados à sobrevivência, à penúria e à renúncia, mas à vida, à abundância e ao desejo. Tal como acontecera ao "sonho americano", o "sonho francês" ruía e se desmistificava. A sociedade burguesa tinha dado tudo o que era capaz de dar nos únicos termos em que poderia "dar" alguma coisa — uma quantidade excessiva de bens materiais de valor discutível, adquiridos graças a um trabalho embotante e sem sentido. Foi a própria experiência e não os "partidos de vanguarda" ou os "programas testados e aprovados" que se transformou no agente mobilizador e na fonte de criatividade da rebelião de maio-junho. E é assim que deveria ser. Não só é natural que uma rebelião aconteça espontaneamente — esta é uma característica comum a todas as grandes revoluções da história — como é também natural que ela se desenvolva espontaneamente.
Isto não significa que os grupos revolucionários devam permanecer silenciosos diante dos acontecimentos. Se tiveram idéias ou sugestões, sua responsabilidade será apresentá-las. Mas utilizar os modelos sociais criados pela revolução com o objetivo de manipular os fatos, agir secretamente pelas costas da revolução, não confiar nela e tentar substituí-la pelo "glorioso partido" é uma irresponsabilidade criminosa e imperdoável. Ou a revolução consegue, eventualmente, absorver todas as organizações políticas ou os organismos políticos se tornam fins em si mesmos — origens inevitáveis da burocracia, da hierarquia e da servidão humana.
Diminuir a espontaneidade de uma revolução, interromper o movimento contínuo entre a mobilização e a emancipação de cada indivíduo isolado, remover os indivíduos do processo para interpor entre eles organizações e instituições políticas emprestadas do passado é o mesmo que corromper os objetivos liberalizantes da revolução. Se a revolução não começa por baixo, se não aumenta a "base" da sociedade até se transformar na própria sociedade, então ela não passa de um mero coup d’état. Se não produz uma sociedade em que cada indivíduo é capaz de controlar a sua própria rotina, em vez da rotina controlar cada indivíduo, então é uma contra-revolução. A liberação social só pode ocorrer quando ocorre simultaneamente uma liberação do indivíduo — se o movimento de “massa” é também um movimento individual que envolve um alto grau de individualização e de auto-conhecimento.
No movimento molecular vindo de baixo, que prepara as condições para que a revolução possa ocorrer; na mobilização de cada indivíduo que coloca a revolução em marcha; na atmosfera de alegria que consolida a revolução — em todas estas etapas sucessivas, há sempre um processo contínuo de individualização, um processo durante o qual o poder se acaba, ocorre a expansão da experiência pessoal e uma liberdade quase esteticamente em harmonia com as possibilidades do nosso tempo. Perceber este processo e articulá-lo, catalizá-lo e determinar as próximas tarefas práticas, manejar com firmeza os movimentos ideológicos que procuram "controlar" o processo revolucionário — estas são, como bem mostraram os acontecimentos na França — as responsabilidades básicas de um revolucionário nos dias de hoje.


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Facções Criminosas em São Paulo

A SOCIEDADE PRISIONAL E SUAS FACÇÕES CRIMINOSAS*
Principais Facções Criminosas
 


PCC – Primeiro Comando da Capital, CV – Comando Vermelho, CRBC – Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade, CDL – Comando Democrático da Liberdade, ADA – Amigos dos Amigos, A Verdade Justiça Infernal ou Seita Satânica, CDD – Comando Dragão Dourado, PCI – Primeiro Comando do Interior, o PCABC – Primeiro Comando do ABC, TCP – Terceiro Comando Paulista, CVC – Comando Vermelho da Capital, CVJC – Comando Vermelho Jovem da Criminalidade.

Lei de Execuções Penais – 7210, de 11/07/84:

Garantias ao sentenciado:
Direito a trabalho ou ocupações que são computados para remissão da pena;
Direito a assistência básica em saúde,
Direito à assistência educacional,
Direito à assistência jurídica,
Direito à assistência social.

O Contexto do Sistema Penitenciário Paulista: guerra declarada entre as facções criminosas.

Para desarticular o grupo Falange Vermelha, formado no Rio de Janeiro, no Presídio de Ilha Grande, foi feita a transferência de seus líderes para outras penitenciárias. Com o passar do tempo o grupo passou a ser conhecido como Comando Vermelho, o qual não era uma organização, mas um comportamento contra as arbitrariedades do sistema.

Atualmente as organizações criminosas dedicam-se ao tráfico de drogas e outras práticas criminosas dentro da prisão, contando do lado externo com redes mais ou menos estruturadas de proteção e geração de fundos. Possuem regras de convivência que, caso descumpridas, podem gerar, inclusive, a pena de morte.

A diferença entre as facções deixam de existir quando o assunto é o PCC: todas se colocam em oposição a ele.

O CRBC expõe, no art. 7º do seu Estatuto que: onde quer que o CRBC estiver, não poderão existir integrantes do PCC, pois os mesmos através da ganância, extorsão, covardia, despreparo, incapacidade mental, desrespeito aos visitantes, estupro de visitantes, guerras dentro de seus próprios domínios, vem colaborando para a vergonhosa coatização do aparato penal do Estado de São Paulo.

Com o processo de separação entre os membros da facções criminosas há necessidade de proteger aqueles que não são ligados a nenhum comando. Com esse processo de separação, os presos que se encontravam na Ala de Progressão eram membros do CRBC, e os neutros permaneciam em regime fechado.

As Facções Criminosas Paulistas: “olho por olho, dente por dente”

Serpente Negras / Comissão de Solidariedade: em plena ditadura militar os presos faziam suas reivindicações através de: a) greve de fome coletiva, b) silêncio total, c) não fazer a barba e nem comparecer quando era pela administração requisitado.

Lutavam pelos seguintes benefícios: a) visitas íntimas, b) liberação de rádio, tv, cartas e fotos, c) atendimento hospitalar.

Em 1984 a Comissão recebe o apelido de Serpente Negra pela imprensa.

A comissão acabou definitivamente por traição de um de seus integrantes que posteriormente foi assassinado na Penitenciária do Estado.

 O PCC organizou-se a partir de 1993. Foi fundado  no dia 31 de agosto de 1993, no Interior da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Começou a se articular a partir de 1992, como conseqüência do Massacre do Carandiru.

Participaram de sua fundação Mizael Aparecido da Silva (Miza), José Márcio Felício (Geleião), Marcos William Herbas Camacho (Marcola), José Eduardo Moura da Silva (Bandejão), César Augusto Roriz Silva (Césinha), Bicho Feio, DA Fé, e Cara Gorda. Coloca como seu objetivo: mudar a prática carcerária desumana, cheia de injustiças opressão, torturas, massacres nas prisões.

Tal objetivo foi distorcido, o PCC passou a liderar o tráfico e a obter lucro com a extorsão. Segundo os detentos os integrantes do PCC matam por ouço, cortam a orelha das pessoas por pouquíssimo, por nada estupram visitas, obrigam as famílias dos presos a trazer drogas, e impedem fugas, separam a alimentação, ficando sempre com a melhor parte.

O PCC cobra a contribuição daqueles que estão em liberdade com os irmãos dentro da prisão através de advogados, dinheiro, ajuda aos familiares e ação de resgate.

Sete anos após a formação do PCC, os momentos que antecedem a mega-rebelião comandada por esse no Estado de São Paulo, já demonstravam um clima de tensão. A sigla PCC passa a ser símbolo de violência e opressão. Suas atividades foram expandidas para além dos muros das prisões. Além do poder exercido internamente, ele detém uma rede de proteção externa, rede responsável por assaltos, resgates, e atentados a órgãos públicos.

No ano de 2000, a guerra do PCC com os das demais facções já era evidente e com a Seita Satânica já vinha acontecendo pelo menos desde 1998. É neste ano que a mídia passa a denunciar o que vinha acontecendo no sistema prisional.

No dia 14/11/2000, um do líderes do PCC, conhecido como Seqüestro, foi enforcado na Casa de Detenção, em São Paulo. Seu julgamento durou sete horas, ele foi condenado à morte sob a acusação de ter desviado dinheiro da maior organização criminosa que disputa o controle dos presídios paulistas.

Em dezembro de 2000, integrantes do PCC e da Seita Satânica unem-se para protestar em represália Às mudanças anunciadas pela Secretaria da Administração Penitenciária, porque desde o início das investigações da CPI do Narcotráfico, presidiários que receberam benefícios da justiça para cumprir a pena em regime semi-aberto tiveram o pedido negado. Houve a fuga de 35 presos.

Depois desse episódio, integrantes do PCC invadem o pavilhão 9 e expulsam membros da Seita Satânica.

A pressão funcionou e o Secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo reuniu-se com líderes do PCC pedindo para que não houvesse motins e acatou algumas de suas reivindicações. Ficou decido que em troca do fim das rebeliões, o Estado garantiria que 50 presos da Detenção sairiam para o regime semi-aberto, que as compras de produtos alimentícios voltariam acontecer, e seus principais líderes seriam remanejados para outros presídios do Interior. A maior rebelião da história do País aconteceu porque o trato não foi cumprido – No dia 18 de fevereiro de 2001 vinte e nove rebeliões foram deflagradas simultaneamente no Estado de São Paulo.

O sinal para o início das rebeliões começou com tiros para o alto e um toque de sirene dados pelos integrantes do PCC presos no Carandiru. No interior os motins foram acontecendo quase que no mesmo horário, aproveitando-se o horário das visitas. O saldo foi mais de 17 presos mortos, o Estado admite a existência do PCC e passa a ser ameaçado por este. Entre suas reivindicações: fim dos espancamentos nos presídios, mais agilidade na tramitação dos processos para evitar que presos com penas vencidas continuem detidos, remoção de diretores de alguns estabelecimentos penais que estariam utilizando métodos de tortura e violência, acesso à Corregedoria da Secretaria de Adminstração Penitenciária, e fim das humilhações que seriam feitas aos parentes de presos durante as visitas.

Dois dias depois da rebelião simultânea, integrantes do PCC se reuniram na Detenção, batizaram novos filiados, e decidiram condenar à morte os líderes do partido que comandaram o motim em série nos presídios do Estado. A liderança foi acusada de desrespeitar o estatuto da organização. Um dos erros foi promover a rebelião em pleno domingo, dia de visitas. As outras ações imperdoáveis foram matar e agredir detentos na frente das visitas. As outras ações imperdoáveis foram matar e agredir detentos na frente das visitas e não acabar com a extorsão dentro e fora do sistema prisional.

O grupo também passa a praticar atividades assistencialistas, pretende fundar ONGs e financiar campanhas políticas.

O PCC também montou sofisticado esquema de comunicação, com a ajuda de um técnico em telefonia da Vésper, e criou centrais telefônicas operadas, 24 horas, por pessoas de confiança. Os detentos telefonavam e uma central transferia as ligações para outro celular em qualquer parte do País.

Em setembro de 2001 o PCC anuncia um manifesto nacional citando, entre outros Che Guevara: afirmando estar dando o seu primeiro passo no exercício da cidadania, o PCC faz à sociedade a seguinte proposta: queremos estabelecer um amplo diálogo, achar soluções, fraternidade legítima que transforme o mundo em um só país, na coexistência pacífica e do atendimento no respeito ao idioma, a bandeira de cada grupo, eliminando as guerras e transformando o ser humano por dentro

 

Em 1994, foi criada na Casa de Detenção de São Paulo a Seita Satânica, tendo por objetivos: curar drogados, resolver problemas financeiros, processuais, familiares e de saúde e apoiar os presos que ficam sem auxílio.. Segue uma doutrina espírita, utilizando-se dos búzios, tarô, magia das conchas (jogadas com feijão), leitura de mão, unha e face. São realizadas meditações e rituais de incorporação com entidades da esquerda.

A liberdade do fundador é a primeira diretriz a ser seguida pelos integrantes da Seita Satânica: qualquer filho que sair para rua terá por obrigação tirar o seu pai espiritual da cadeia.

O pacto entre PCC e seita satânica foi firmado no anexo da penitenciária de Avaré, no interior paulista, pelo detento Marcola.

Em 1996 nasceu o CDL, na Penitenciária Estadual Dr. Luciano de Campos em Avaré/SP, com o propósito original de: a) lutar pelos direitos dos presos junto as autoridades administrativas do sistema prisional brasileiro, b) parlamentar possibilidades reais de trazer para os presídios empresas jurídicas com trabalhos para os sentenciados; c) descobrir, produzir e lançar para o Brasil infinitos talentos artísticos existentes no submundo prisional brasileiro; d) promover o assessoramento jurídico para todos; d) Impedir qualquer tipo de opressão do preso contra o seu igual.

Art. 102: O primeiro mandamento de um integrante da máfia CDL na prisão, deve ser o exercício individual da fuga.

No dia 13 de junho de 2001 seus integrantes são assassinados por integrantes do PCC

 Segundo o CRBC foi fundada em 1999. Os fundos que forem arrecadados por cada membro do CRBC em liberdade, tem por objetivo resgatar seus comandados.

Enquanto o PCC se organizou para lutar contra o Estado, mais especificamente contra a rigidez administrativa da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o CRBC formou-se visando lutar contra o PCC, o qual vinha executando ações que desagradavam os que não pertenciam ou não simpatizavam com a facção.

A guerra pelo poder no interior das penitenciárias paulistas já se evidenciava. Em torno de cinco meses após sua fundação começaram as discordâncias internas entre os próprios membros (devido a luta pelo controle interno do tráfico de entorpecentes e outras atividades lucrativas) o que ocasionou a morte de um de seus fundadores, o Baianão. Em agosto de 2000 já era considerada a principal rival do PCC.

Antes das ações das facções criminosas  atingirem toda a sociedade, elas já eram sentidas por vários núcleos dessa macro-sociedade, principalmente pelos núcleos familiares.

A mutilação e a morte, punições aceitas nos séculos XVII e XVIII e não previstas há muito em nossas normatizações, passam a ser utilizadas na contemporaneidade pelas facções criminosas.

O Estado continuou tentando a desarticulação dos grupos com transferências de seus líderes, com estouros das centrais telefônicas e prisão de criminosos.

Em apenas uma semana (07 a 13/03/2003) cinco atentados foram registrados e assumidos pelo PCC ( São Paulo) 1) granada em frente ao prédio da Secretaria da Administração Penitenciária; 2) dois dias depois granada no mesmo local, 3) tres dias depois mais uma granada, 4) no mesmo dia granada no prédio do Instituto de Previdencia Municipal de São Paulo, 5) Fórum de São Vicente. O governo de São Paulo não agüenta a pressão e cede às exigências dos líderes do PCC.

Ao invés de combater as organizações criminosas, o que vemos é uma expansão das mesmas. As medidas de proteção giram em torno do combate contra os criminosos soltos, tentativa de dificultar o uso de aparelhos celulares pré-pagos no interior dos presídios, das tranferências e isolamento através do RDD e a construção de penitenciárias mais seguras (Penitenciaria 2 de Presidente Bernardes).

O Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernanrdes era uma das sete instituições penais sob responsabilidade do Juiz Corregedor dos Presídios e da Vara de Execuções Penais de Presidente Prudente – Antonio José Machado Dias, assassinado no dia quatorze de março de 2003.

O juiz Alexandre Martins (Espírito Santo) foi morto também quando investigava o crime organizado em sua jurisdição.

Das oito pessoas que fundaram o PCC apenas três continuam vivas (junho/2003) Marcola, Cesinha e Geleião. Os dois últimos jurados de morte pelo PCC, desde a desarticulação interna provocada pelos desdobramentos da apreensão de explosivos em um carro abandonado que seriam usados em um atentado contra a Bolsa de Valores do Estado de São Paulo, fato que ocasionou o assassinato da advogada Ana Maria Olivatto, ex-mulher de MArcola, e a prisão de Petroníla Felício, mulher de Geleião. Geleião e sua esposa estão no programa de delação premiada. A mulher de Cesinha, Aurinete, é acusada de mandar matar a ex-mulher de MArcola.

Esses que foram excluídos do PCC não tem advogado que os defenda.
 

REsumo do livro de Regina Campos Lima: A Sociedade Prisional e suas Facções Criminosas, disponível em:

http://www.carceraria.org.br/?system=news&action=read&id=329&eid=68 

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Apresentação de George Orwell, 1984 – João Bernardo

Apresentação de George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro

1984
Curioso percurso, o desta alegoria inventada para criticar o stalinismo e invocada ao longo de décadas pelos ideólogos democráticos, e que oferece agora uma descrição quase realista do vastíssimo sistema de fiscalização em que passaram a assentar as democracias capitalistas.
A electrónica permite, pela primeira vez na história da humanidade, reunir nos mesmos instrumentos e nos mesmos gestos o trabalho e a fiscalização exercida sobre o trabalhador. Como se não bastasse, a electrónica permite, e também sem precedentes, que instrumentos destinados ao trabalho e à vigilância sejam igualmente usados nos ócios. É graças à unificação de todos os aspectos da vida numa tecnologia integrada que a democracia capitalista pode realizar na prática as suas virtualidades totalitárias. O Big Brother já não é uma figura de estilo, converteu-se numa vulgaridade quotidiana.
O facto de este livro continuar actual, apesar da erosão interna dos regimes stalinistas e da sua derrocada final, mostra que a história não segue em linha recta mas em elipses, quando não desenha até labirintos. São múltiplos os percursos que unem, tantas vezes através de atalhos inesperados, as várias modalidades do capitalismo; e as formas mais totalitárias, que durante algum tempo foram postas em prática pelo capitalismo de Estado soviético a pretexto da libertação do trabalho, são hoje prosseguidas e agravadas pelo neoliberalismo a pretexto da libertação dos mercados.

João Bernardo

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APRESENTAÇÃO DE BUROCRACIA E IDEOLOGIA – João Bernardo

burocracia e ideologia 

Apresentação de Maurício Tragtenberg, Burocracia e Ideologia

Na época actual, em que o mercado dominado pelas empresas é apresentado como neutro, presumindo-se que os seus ditames sejam do mesmo tipo das leis da natureza, e em que a esquerda institucionalizada pretende que o mercado, assim como rege o capitalismo, poderá reger o socialismo, é muito oportuno reeditar um livro que analisa a administração de empresa não como uma técnica neutra mas como uma forma de poder. Maurício Tragtenberg inseriu numa perspectiva comum desde a teoria hegeliana do Estado até aos sistemas de organização da força de trabalho criados por Taylor e, numa modalidade diferente, por Elton Mayo. Deste modo, ao estabelecer uma ligação íntima entre a administração de empresa e a burocracia estatal, e ao fazê-lo num amplo escopo histórico que se inicia nos despotismos arcaicos, Maurício Tragtenberg abriu o caminho para se pensar a empresa enquanto entidade soberana.
Mostrando que a administração não é um exercício de harmonia mas de autoridade, Maurício Tragtenberg colocou os conflitos sociais no centro da actividade empresarial e portanto de toda a economia, o que permite pôr em causa certos postulados básicos do neoliberalismo. Publicado há vinte e cinco anos, este livro não podia obviamente analisar os actuais sistemas de administração baseados na subcontratação e na terceirização nem a organização de redes directivas transnacionais. Mas, ao desvendar os seus fundamentos e a sua génese, ele abre o caminho para a sua compreensão crítica.
Precisamente porque concentrou a análise nos sistemas empresariais, Maurício Tragtenberg pôde detectar uma identidade organizativa profunda entre o capitalismo de modelo ocidental e os regimes de tipo soviético, o que ajuda o leitor actual a entender a fusão entre estas duas formas de exploração operada ao longo dos últimos anos. Foi o estudo crítico das teses de Max Weber acerca da burocracia que permitiu a Maurício Tragtenberg apresentar numa visão unificada o sistema empresarial e administrativo ocidental e o soviético, e ele felo numa época em que cada um dos lados da guerra fria se esforçava por acentuar as diferenças relativamente ao lado contrário e por ocultar as semelhanças.
Mais do que um livro que continua actual, Burocracia e Ideologia é uma obra que revela alguns dos principais fundamentos da actualidade. «A única fidelidade válida na história do processo da formação e do desenvolvimento das idéias», escreveu Maurício Tragtenberg, «é a fidelidade criativa, que constitui superação».
João Bernardo

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