A Aberração Carcerária – Loic Wacquant

A ABERRRAÇÃO CARCERÁIA
Loïc Wacquant *


Em Junho de 2003, a população carcerária francesa superava o marco de 60.000 presidiários para 48.000 vagas, um recorde absoluto desde a época da Libertação. Insalubridade, vetustez, promiscuidade elevada à potência máxima, higiene precária, carência de actividades de formação e de trabalho – reduzindo a missão de “reinserção” a um mero slogan cruel e sem sentido –, bem como o aumento de incidentes graves e de suicídios (cujo número duplicou em 20 anos) constituíam, na época, o objecto de protestos unânimes [1], que não suscitaram reacção perceptível por parte das autoridades, mais preocupadas em manifestar a sua determinação de combater aquilo que o Chefe de Estado – profundo conhecedor do assunto – denominava, com furor, de “impunidade”. Lá onde a “esquerda plural” punia a miséria de maneira vergonhosa e sub-reptícia, a direita republicana optou por lançar mão, com vigor e ênfase, do aparelho repressivo para erradicar o desespero e as desordens sociais que assolam os bairros corroídos pelo desemprego em massa e pela precariedade do trabalho, exílio para onde são relegados os excluídos. Tornar a luta contra a delinquência urbana um perpétuo espectáculo moral permite, efectivamente, reafirmar simbolicamente a autoridade do Estado, justamente no momento em que se manifesta a sua impotência na frente de batalha económica e social.

Mas servir-se da prisão como de um aspirador social para limpar a escória resultante das transformações económicas em andamento e para eliminar do espaço público o refugo da sociedade de mercado – pequenos delinquentes ocasionais, desempregados, indigentes, moradores de rua, estrangeiros clandestinos, toxicómanos, deficientes físicos e mentais deixados à deriva pelo enfraquecimento da rede de protecção sanitária e social, bem como jovens de origem modesta, condenados, para (sobre)viver, a se virarem como puderem por meios lícitos ou ilícitos, em razão da propagação de empregos precários – é uma aberração no sentido literal do termo, isto é, conforme a definição do Dicionário da Academia Francesa de 1835: “desvario” e “erro de julgamento”, tanto político como penal.

Aberração, em primeiro lugar, porque a evolução da criminalidade na França não justifica, de maneira alguma, o crescimento fulgurante da população carcerária depois de uma diminuição moderada entre 1996 e 2001. Os furtos a residências e o roubo de veículos ou de equipamentos e objectos que se encontram dentro de veículos (que constituem três quartos dos crimes e delitos registrados pelas autoridades) vêm diminuindo de maneira regular desde pelo menos 1993; os casos de homicídio e agressões fatais vêm recuando desde 1995, segundo informações fornecidas pela polícia, e desde 1984 segundo dados estatísticos do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm); os roubos acompanhados de actos de violência que tanto obnubilam os noticiários, constituídos principalmente de “violências” verbais (insultos, ameaças), também têm diminuído nos últimos 20 anos [2].

Papel figurativo

No final, não é tanto a criminalidade que mudou nestes últimos anos, mas sim a maneira como políticos e jornalistas, na qualidade de porta-vozes dos interesses dominantes, vêem a delinquência urbana e as populações que supostamente a alimentam. Na linha da frente dessas populações, jovens de classes modestas, originários de famílias de imigrantes magrebinos, que vivem encurralados em conjuntos residenciais da periferia, os quais se acham arruinados por três décadas de desequilíbrio económico e de omissão urbana do Estado – caracterizando, assim, as feridas abertas que o cataplasma administrativo da “política urbana” não conseguiu cauterizar.

Aberração, igualmente, porque a criminologia comparada demonstra que não existe, em lugar algum – nenhum país e nenhuma época – uma correlação entre o índice de encarceramento e o nível de criminalidade [3]. Por vezes citadas como exemplo, a política policial de “tolerância zero” e a reduplicação, em 25 anos, do número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos tiveram um papel simplesmente figurativo na diminuição do número de litígios resultante da conjunção de factores económicos, demográficos e culturais.

Seja como for, a prisão, no melhor dos casos, resolve apenas uma ínfima proporção da criminalidade, inclusive da mais violenta: nos Estados Unidos, onde, diga-se de passagem, os recursos dos sistemas policial e carcerário são grotescamente superdimensionados, as quatro milhões de ofensas mais sérias contra indivíduos identificadas em 1994 por sondagens de “vitimização” (homicídios, agressões e lesões corporais graves, estupros, roubos acompanhados de violência) deram origem, em razão da evaporação cumulativa nas diferentes etapas do processo penal, a menos de dois milhões de queixas à polícia, que resultaram em 780.000 mandados de prisão, que, por sua vez, conduziram, no final do processo, a apenas 117.000 encarceramentos, ou seja, 3% dos crimes cometidos.

Remédio que agrava o mal

Observa-se este mesmo “afunilamento” no funcionamento da justiça penal na França, onde menos de 2% dos litígios levados a juízo dão origem a uma pena de reclusão. Esta é mais uma evidência de que a prisão é inadaptada à luta contra a delinquência de pequeno e médio porte e muito menos contra “incivilidades” – que, na maioria, não são nem mesmo mencionadas no Código Penal (olhares atravessados, insultos, empurrões, ajuntamentos e badernas em locais públicos, degradações leves, etc.).

Em terceiro lugar, recorrer de maneira reflexa ao encarceramento para debelar as desordens urbanas é um remédio que, em muitos casos, só agrava o mal que supostamente se quer curar. Instituição fundamentada na força, a prisão, cuja acção resvala as fronteiras da legalidade, é um viveiro de violência e humilhação quotidianas, um vector de ruptura familiar, de desconfiança cívica e de alienação individual. Para um grande número de detentos implicados de maneira marginal em actividades ilícitas, a prisão é uma escola de formação e até de “profissionalização” de carreiras criminais. Para outros, cujo destino é igualmente sombrio, o encarceramento é um poço sem fundo, um inferno alucinatório que prolonga a lógica de destruição social por eles vivenciada do lado de fora, intensificando-a, na prisão, com a deterioração pessoal [4]. A história penal mostra, além disso, que em nenhum momento e em nenhuma sociedade, a prisão conseguiu cumprir a missão de recuperação e reintegração social que lhe fora atribuída, em termos de uma menor recidividade. Tudo, nela, contradiz a sua suposta função de "reforma" do condenado – da estrutura arquitectónica à organização do trabalho dos guardas, sem esquecer a indigência dos recursos institucionais (trabalho, formação, escolaridade, saúde), a rarefacção deliberada da liberdade condicional e a ausência de medidas concretas de auxílio aos detentos libertados.

Efeitos cruéis e desproporcionais

Por último, àqueles que justificam a intensificação da repressão penal nos bairros carentes com o argumento de que “a segurança é um direito, a falta de segurança é uma desigualdade social”, a qual atinge em particular os cidadãos das classes inferiores, é preciso lembrar que a reclusão carcerária assola, de maneira desproporcional, as categorias sociais mais frágeis económica e culturalmente, sendo os seus efeitos tanto mais cruéis quanto maior for a carência de recursos. Como os seus congéneres de outros países pós-industriais, os presidiários franceses provêm maciçamente das parcelas instáveis do proletariado urbano. Originários de famílias numerosas (dois terços têm pelo menos três irmãos), das quais se separaram ainda jovens (um em cada sete saiu de casa antes dos 15 anos), eles não obtiveram, em sua maioria, nenhum diploma escolar (três quartos abandonaram a escola antes dos 18 anos, em comparação com 48% da população de homens adultos) – situação que os condena para sempre aos sectores periféricos da esfera de trabalho.

Metade dessas pessoas é formada por filhos de operários e de empregados não qualificados; dentre os próprios presidiários, metade trabalha como operário; quatro em cada dez detentos têm um dos pais de origem estrangeira e 24 % nasceram, eles próprios, fora da França [5]. Ora, o encarceramento só intensifica a pobreza e o isolamento: 60% dos que saem da prisão ficam desempregados, em comparação com 50% no grupo dos que ingressam na prisão; 30% não recebem apoio nem são esperados por ninguém; mais de um quarto não dispõe de nenhum recurso financeiro (menos de 15 euros) para cobrir os gastos ocasionados por sua libertação; finalmente, um em cada oito detentos não tem onde ficar ao sair da prisão [6]. Além disso, o impacto deletério do encarceramento não se faz sentir unicamente sobre os presidiários, mas igualmente, e de maneira mais insidiosa e injusta, sobre a sua família. A deterioração da situação financeira, as dificuldades nas relações com amigos e vizinhos, a dissipação dos laços afectivos, os problemas que as crianças enfrentam na escola e os graves distúrbios psicológicos ligados ao sentimento de rejeição tornam ainda mais pesado o fardo penal imposto aos pais e cônjuges dos presidiários.

Debate desconectado

De resto, o argumento que naturalmente vem à mente – segundo o qual o aumento da população carcerária se traduziria necessariamente por uma redução automática da criminalidade, em razão do efeito de “neutralização” que teria sobre os condenados, privados, assim, da possibilidade de infringir a lei – revela-se capcioso quando cuidadosamente examinado. Na verdade, a partir do momento em que é aplicado à delinquência esporádica, o encarceramento em massa significa “recrutar” novos delinquentes para suceder aos primeiros. Assim, um pequeno traficante de drogas encarcerado é imediatamente substituído por outro, desde que subsista uma procura rentável pela mercadoria e que as previsões de lucro valham a pena. E se o sucessor for um novato sem reputação na praça, será mais propenso a usar de violência para se estabelecer e firmar o seu comércio – o que, por sua vez, se traduzirá globalmente por um aumento do número de infracções.

Para evitar uma escalada penal sem fim e sem saída, é preciso reconectar o debate sobre a delinquência com uma questão importante deste início de século, actualmente encoberta pelo próprio debate: o advento do emprego "des­socializado", vector de insegurança social e de precariedade material, familiar, escolar, sanitária e até mental – pois não é possível organizar a percepção do mundo social e conceber o futuro quando o presente permanece obstruído, transformando­‑se numa luta sem trégua para a sobrevivência no dia-a-dia.

A finalidade, aqui, não é negar a realidade da criminalidade nem a necessidade de encontrar a solução – ou melhor, as soluções –, inclusive no plano penal, quando o caso exigir. O objectivo é compreender exactamente a sua génese, a sua fisionomia cambiante e as suas ramificações, “encaixando” novamente a criminalidade no sistema completo de relações de força e de sentido da qual ela constitui a expressão. Para isso, é indispensável cessar de devorar os inúmeráveis discursos apocalípticos e abrir um debate racional e bem-informado sobre as ilegalidades (no plural), as suas repercussões e as suas significações. Este debate deve, primeiramente, explicar por que se focaliza em uma ou outra manifestação da delinquência – nas escadas dos conjuntos residenciais e não nos corredores das prefeituras, no roubo de maletas e celulares e não na malversação de operações financeiras ou nas infracções à legislação laboral e fiscal, por exemplo [7].

O medo e a criminalidade em si

O debate deve ir além do curto prazo e da comoção suscitada pelo noticiário e discernir entre as variações de humor e as manifestações mais profundas de um fenómeno, entre as mudanças acidentais e as tendências de longo prazo. Deve distinguir, por um lado, a recrudescência do medo, da intolerância e da preocupação para com a criminalidade e, por outro lado, o aumento da criminalidade em si. Acima de tudo, uma política inteligente sobre a insegurança criminal deve reconhecer que os actos de delinquência são o produto não de uma deliberação individual autónoma e singular, mas de uma rede de causas e razões múltiplas que se entrelaçam segundo lógicas variadas (predação, exibicionismo, alienação, transgressão, contestação da autoridade, etc.) e que, por conseguinte, a delinquência exige soluções múltiplas, que mobilizem uma série de mecanismos de contenção e de canalização para outras actividades. De difícil aplicação, a solução policial e penal, que alguns consideram como panaceia, constitui, em muitas circunstâncias, uma emenda pior que o soneto quando contabilizados os “efeitos colaterais”.

A criminalidade é um problema sério demais para que seja tratado por especialistas de mentira e ideólogos de verdade, ou – pior ainda –, por policiais e políticos ávidos de explorar o problema, sem o examinar nem controlar. As suas evoluções exigem não que se renuncie, mas que se lance uma nova abordagem sociológica, que constitui a única maneira de arrancar o debate do âmbito do exibicionismo securitário, cessando, assim, de reduzir a luta contra a delinquência a um espectáculo ritual, que serve apenas para satisfazer aos fantasmas de ordem pública idealizados pelo eleitorado e para evidenciar a autoridade viril dos dirigentes do Estado.

A prisão não é um simples escudo contra a delinquência, mas uma faca de dois gumes – um organismo de coerção, ao mesmo tempo criminofágico e criminogénico que, quando se desenvolve em excesso, como nos Estados Unidos nos últimos 25 anos e na União Soviética na era estalinista, acaba por transformar-se num vector autónomo de pauperização e de marginalização.
 
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* Le Monde Diplomatique – Edição Brasileira
 Professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, e da New School for Social Research, Nova York. Este texto foi extraído do último capítulo de Punir les pauvres: Le nouveau gouvernement de l’insécurité sociale (Punir os pobres: O novo governo da insegurança social), publicado em Setembro pela ed. Agone, Marselha.
 [1] Cf. Observatoire International des Prisons, Les Conditions de Détention en France. Relatório 2003, ed. La Découverte, Paris, 2003.
 [2] Ler os capítulos correspondentes a estas infracções em Laurent Mucchielli e Philippe Robert (dir.), Crime et sécurité. L’état des savoirs, ed. La Découverte, Paris, 2002.
 [3] Nils Christie, L’Industrie de la punition. Prison et politique pénale en Occident, ed. Autrement, Paris, (2000) 2003.
 [4] Jean-Marc Rouillan, "Chroniques Carcérales", in Lettre à Jules, ed. Agone, Marselha, 2004, e Claude Lucas, Suerte. La Réclusion Volontaire, ed. Plon, Paris, 1995.
[5] Cf. Francine Cassan e Laurent Toulemont, "L’histoire Familiale des Hommes Détenus", INSEE Première, n.° 706, Abril de 2000.
 [6] In Maud Guillonneau, Annie Kensey e Philippe Mazuet, "Les ressources des sortants de prison", Les Cahiers de Démographie Pénitentiaire, n.° 5, Fevereiro de 1998.
 [7] Em 1996, a fraude fiscal e alfandegária representava 100 bilhões de francos; a fraude relativa ao pagamento de encargos sociais, mais de 17 bilhões; as falsificações, cerca de 25 bilhões de francos. Paralelamente, o contravalor monetário de atentados voluntários contra a vida de outrém foi avaliado em 11 bilhões de francos; o de roubos de veículos, em 4 bilhões de francos e o de furtos em lojas, em 250 milhões de francos – in Christophe Paille e Thierry Godefroy, Coûts du Crime. Une Estimation Monétaire des Infractions en 1996, CESDIP, Guyancourt, 1999.

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