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PAUL FEYERABEND
Contra o Método – Introdução
A ciência é um empreendimento
essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a
estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam lei e ordem.
Ordnung ist heutzutage mestens
dort,
wo nichts ist.
Es ist eine
Mangelerscheinung.
Brecht
[trad. “Ordem, hoje em dia, encontra-se, em geral,/ onde não há
nada./É um sintoma de deficiência”]
O
ensaio a seguir é escrito com a convicção de que o anarquismo, ainda que talvez não seja a mais atraente filosofia política, é, com certeza, um excelente
remédio para a epistemologia e para a filosofia
da ciência.
A
razão não é difícil de encontrar.
“A
história, de modo geral, e a história da revolução, em particular, é sempre
mais rica em conteúdo, mais variada, mais multiforme, mais viva e sutil do que
mesmo” o melhor historiador e melhor metodólogo podem imaginar.1 A história está cheia de “acidentes e
conjunturas e curiosas justaposições de eventos”2 demonstra-nos a “complexidade da mudança humana e o caráter
imprevisível das conseqüências últimas de qualquer ato ou decisão dos homens”.3 Devemos realmente acreditar que as
regras ingênuas e simplórias que os metodólogos tomam como guia são capazes de
explicar tal “labirinto de interações”?4
E não está claro que a participação
bem-sucedida em um processo dessa espécie só é possível para um oportunista
impiedoso que não esteja ligado a nenhuma filosofia específica e adote o
procedimento, seja lá qual for, que pareça mais adequado para a ocasião?
Essa
é, com efeito, a conclusão a que têm chegado observadores inteligentes e
ponderados. “Duas conclusões práticas muito importantes decorrem desse [caráter
do processo histórico]”, escreve
Lênin 5, continuando a passagem que
acabo de citar, “Primeiro, que a fim de cumprir sua tarefa, a classe
revolucionária [isto é, a classe daqueles que desejam mudar quer uma parte da
sociedade, como a ciência, quer a sociedade como um todo] tem de ser capaz de
dominar, sem exceção, todas as formas
dou aspectos da atividade social [tem de ser capaz de entender, e aplicar, não
apenas uma metodologia particular, mas qualquer metodologia e qualquer variação
dela que se possa imaginar]…; segundo, tem de estar preparada para passar de
uma à outra da maneira mais rápida e mais inesperada.” “As condições externas”,
escreve Einstein, 6 “que são
colocadas para [o cientista] pelos fatos da experiência não lhe permitem
deixar-se restringir em demasia, na construção de seu mundo conceitual, pelo
apego a um sistema epistemológico. Portanto, ele deve afigurar-se ao
epistemólogo sistemático como um tipo de oportunista inescrupuloso…”. Um meio
complexo, contendo desenvolvimentos surpreendentes e imprevistos, demanda
procedimentos complexos e desafia uma análise baseada em regras que tenham sido
estabelecidas de antemão e sem levar em consideração as condições sempre
cambiantes da história.
Ora,
é evidentemente possível simplificar o meio em que um cientista trabalha pela
simplificação de seus atores principais. A história da ciência, afinal de
contas, não consiste simplesmente em fatos e conclusões extraídas de fatos.
Também contém idéias, interpretações de fatos, problemas criados pro
interpretações conflitantes, erros e assim por diante. Em uma análise mais
detalhada, até mesmo descobrimos que a ciência não conhece, de modo algum,
“fatos nus”, mas que todos os “fatos” de que tomamos conhecimento já são vistos
de certo modo e são, portanto, essencialmente ideacionais. Se é assim, a
história da ciência será tão complexa, caótica, repleta de enganos e
interessantes quanto a mente daqueles que as inventaram. Inversamente, uma
pequena lavagem cerebral fará muito no sentido de tornar a história da ciência
mais tediosa, mais uniforme, mais “objetiva” e mais facilmente acessível a
tratamento por meio de regras estritas e imutáveis.
A
educação científica tal como hoje a conhecemos tem precisamente esse objetivo.
Simplifica a “ciência” pela simplificação de seus participantes: primeiro,
define-se um campo de pesquisa. Esse campo é separado do restante da história
(a física, por exemplo, é separada da metafísica e da teologia) e recebe uma
“lógica” própria. Um treinamento completo em tal “lógica” condiciona então
aqueles que trabalham nesse campo; torna suas
ações mais uniformes e também congela grandes porções do processo histórico. Fatos “estáveis”
surgem e mantêm-se a despeito das vicissitudes da história. Uma parte essencial
do treinamento que faz que tais fatos apareçam consiste na tentativa de inibir
intuições que possam levar a que fronteiras se tornem indistintas. A religião
de uma pessoa, por exemplo, ou sua metafísica, ou seu senso de humor (seu senso
de humor natural, não aquele tipo endógeno e sempre um tanto desagradável de
jocosidade que encontramos em profissões especializadas) não podem ter a menor
ligação com sua atividade científica. Sua imaginação é restringida, e até sua
linguagem deixa de ser sua própria. Isso se reflete na natureza dos “fatos”
científicos, experienciados como independentes de opinião, crença e formação cultural.
É
possível, assim, criar uma tradição que é mantida coesa por regras estritas e,
até certo ponto, que também é bem sucedida. Mas será que é desejável dar apoio
a tal tradição a ponto de excluir tudo o mais? Devemos ceder-lhe os direitos
exclusivos de negociar com o conhecimento, de modo que qualquer resultado
obtido por outros métodos seja imediatamente rejeitado? E será que os
cientistas invariavelmente permaneceram nos limites das tradições que definiram
dessa maneira estreita? São essas as perguntas que pretendo fazer neste ensaio.
E minha resposta, a essas perguntas, será um firme e sonoro NÃO.
Há
duas razões que fazem tal resposta parecer apropriada. A primeira é que o mundo
que desejamos explorar é uma entidade em grande parte desconhecida. Devemos,
portanto, deixar nossas opções em aberto e tampouco devemos nos restringir de
antemão. Prescrições epistemológicas podem parecer esplêndidas quando
comparadas co outras prescrições epistemológicas ou com princípios gerais – mas
quem pode garantir que sejam o melhor modo de descobrir não somente uns poucos
“fatos” isolados, mas também alguns profundos segredos da natureza? A segunda
razão é que uma educação científica, como antes descrita (e como praticada em nossas escolas), não pode ser conciliada com
uma atitude humanista. Está em conflito “com o cultivo da individualidade, a
única coisa que produz ou pode produzir seres humanos bem desenvolvidos”;7 “mutila por compressão, tal como
mutila o pé de uma dama chinesa, cada parte da natureza humana que sobressaia
perceptivelmente, e tende a fazer que certa pessoa tenha um perfil marcadamente
diferente”8 dos ideais de
racionalidade que, por acaso, estejam em moda na ciência ou na filosofia da
ciência ou na filosofia da ciência. A tentativa de fazer crescer a liberdade,
de levar uma vida plena e gratificante e a tentativa correspondente de
descobrir os segredos da natureza e do homem acarretam, portanto, a rejeição de
todos os padrões universais e de todas as tradições rígidas.(Naturalmente,
acarretam também a rejeição de grande parte da ciência contemporânea.)
É
surpreendente ver quão raramente os anarquistas profissionais examinam o efeito
estultificante das “Leis da Razão” ou da prática científica. Os anarquistas
profissionais opõem-se a qualquer tipo de restrição e exigem que ao indivíduo
seja permitido desenvolver-se livremente, não estorvado por leis, deveres ou
obrigações. E, contudo,, engolem sem protestar todos os padrões severos que
cientistas e lógicos impõem à pesquisa e a qualquer espécie de atividade capaz
de criar ou de modificar o conhecimento. Ocasionalmente, as leis do método
científico, ou aquilo que um autor particular julga serem as leis do método
científico, são até mesmo integradas ao próprio anarquismo. “O anarquismo é um
conceito universal baseado em uma explicação mecânica de todos os fenômenos”,
escreve Kropotkin.9 “Seu método de
investigação é o das ciências naturais exatas… o método de indução e
dedução.” “Não está tão claro”, escreve um professor “radical” moderno de
Columbia, 10 “que a pesquisa
científica exija absoluta liberdade de expressão e debate. A evidência sugere,
antes, que certos tipos de restrição à liberdade não colocam obstáculos no
caminho da ciência…”
Há,
certamente, algumas pessoas para quem isso “não está tão claro”. Comecemos,
portanto, com nosso esboço de uma metodologia anarquista e de uma ciência
anarquista correspondente. Não há por que temer que a reduzida preocupação com
lei e ordem na ciência e na sociedade, que caracteriza esse tipo de anarquismo,
vá levar ao caos. O sistema nervoso humano é por demais bem organizado para que
isso ocorra.11 Poderá, é claro, vir
um tempo em que seja necessário dar à razão uma vantagem temporária e em que
seja necessário dar à razão uma vantagem temporária e em que seja prudente
defender suas regras a ponto de excluir tudo o mais. Não creio, contudo, que
estejamos, hoje, vivendo nesse tempo.12
NOTAS
1
“A história como um todo, e a história das revoluções em particular, é sempre
mais rica em conteúdo, mais variada, mais multiforme, mais viva e engenhosa do
que imaginam mesmo os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes das
classes mais avançadas” (LENIN, V.I. “Left-Wing
Communism – Na Infantile Disorder. Selected Works, v.3, Londres, 1967, p.
401). Lênin dirige-se a partidos e vanguardas revolucionários em vez de
cientistas e metodólogos; a lição, contudo, é a mesma. Cf. nota 5.
2 BUTTERFIELD, Hebert. The
Whig Interpretation of History. Nova York, 1965, p.66.
3 Ibidem, p. 21.
4 Ibidem, p. 25, cf.
HEGEL. Philosophie der Geschichte, Werke, v. 9, ed. Edward Gans, Berlim, 1837, p. 9: „Mas o que a
experiência e a história nos ensinam é que as nações e os governos jamais
aprenderam coisa alguma da história ou agiram de acordo com regras que poderiam
ter dela derivado. Cada período apresenta circunstâncias tão peculiares,
encontra-se em um estado tão específico, que decisões terão de ser tomadas,e
somente podem ser tomadas, nele e a partir dele”. – “Muito engenhoso”; “astuto
e muito engenhoso”; “NB” escreve Lênin em suas anotações marginais e essa
passagem (Collected Works, v. 38,
Londres, 1961, p. 307).
5
Ibidem. Vemos aqui muito claramente como algumas substituições podem
transformar uma lição política em uma lição de metodologia.Isso não é de modo algum surpreendente. Metodologia e
política são ambas meios de passar de ume stágio histórico a outro. Vemos
também como um indivíduo, como Lênin, que não é intimidado por fronteiras
tradicionais e cujo pensamento não está preso à ideologia de uma profissão
particular, pode dar conselhos úteis a todos, até mesmo a filósofos da
ciências. No século XIOX, a idéia de uma metodologia elástica e historicamente
informada era uma cosa natural. Assim, Ernst Mach escreveu em seu Erkenntnis und Irrtum, Neudruck, Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, Darmstadt, 1980, p. 200: „Diz-se com freqüência que não
se pode ensinar a pesquisa. Isso é inteiramente correto, em certo sentido. Os
esquemas da lógica formal e da lógica indutiva pouco adiantam, pois as
situações intelectuais nunca são exatamente as mesmas. Mas os exemplos de
grandes cientistas são muito sugestivos”. Não são sugestivos porque deles
podemos abstrair regras e sujeitar a pesquisa futura à sua jurisdição; são
sugestivos porque deles podemos abstrair regras e sujeitar a pesquisa futura à
sua jurisdição; são sugestivos porque tornam a mente ágil e capaz de inventar
tradições de pesquisa inteiramente novas. Para um tratamento mais detalhado da
filosofia de Mach, ver nosso ensaio Farewell
to Reasaon, Londres, 12987, capítulo 7, bem como o v. 2, capítulos 5 e 6,
de nossos Philosophical Papers,
Cambridge, 1981.
6 EINSTEIN, Albert. Albert
Einstein: Philosopher Scientist. P. A. Schilpp (Ed.) . Nova York, 1951, p.
683ss.
7 MILL, John Stuart
8 Ibidem, p. 265.
9 KROPOTKIN, Peter
Alexeivich. Modern Science and Anarchism.
Kropotkin’s Revolutionary Pamphets, ed. R.W.
Baldwin, Nova York, 1970, p. 150-2. „Uma das grandes características de Ibsen é
que nada era válido para ele, exceto a ciência“ SHAW, B. Back to Methuselah.
Nova York, 1921, p. XCVII. Comentando esses e fenômenos similares, Strindberg
escreve (Antibarbarus): “Uma geração que teve a coragem de livrar-se de Deus,
de esmagar o Estado e a Igreja e de subverter a sociedade e a moralidade
continuava todavia a curvar-se diante da Ciência. E na Ciência, onde deveria
reinar a liberdade, a ordem do dia era ‘acredite nas autoridades ou terá sua
cabeça cortada’”.
10 WOLFF, R.P. The Poverty
od Liberalism. Boston, 1968, p. 15. Para
uma crítica de Wolff, ver a nota 52 de nosso ensaio „Against Method“, em Minnesota
Studies in the Philosophy of Science, v. 4., Minneapolis, 1970.
11 Mesmo em situações indeterminadas e ambíguas alcança-se logo uma
uniformidade de ação e adere-se tenazmente a ela. Ver SHERIF, Muzaer. The Psycology of Social Norms. Nova
York, 1964.
12
Essa era minha opinião em 1970, quando escrevia a primeira versão deste ensaio.
Os tempos mudaram. Considerando algumas tendências na educação nos Estados
Unidos (“politicamente correto”, menus acadêmicos etc.), na filosofia
(pós-modernismo) e no mundo em geral, penso que se deveria agora, dar maior
peso à razão, não porque ela seja e sempre tenha sido fundamental, mas porque
parece ser necessário, em circunstâncias que ocorrem muito freqüentemente hoje
(mas que podem desaparecer amanhã), criar uma abordagem mais humana.