INTEGRALISMO = FASCISMO?
Antônio Cândido
introdução ao livro de José CHASIN: O integralismo de Plínio Salgado: formas de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo, ed. Ciências Humanas.
Ao abrir este livro, pode o leitor estar certo de que abriu um estudo de alto valor, feito com tenacidade crítica, força de convicção, solidez de argumentos, coragem mental, clareza expositiva e grande originalidade. Não é só uma interpretação em profundidade do integralismo, sobretudo na vertente própria ao seu fundador e chefe, Plínio Salgado; mas também a proposta de um certo modo de investigar os fatos da sociedade e da história brasileira, procurando instaurar o significado decisivo da particularidade contra os eventuais perigos de uma visão indiferenciada, que borra os contornos específicos da realidade. Um livro, portanto, que vale como informação e reflexão, mas também como estímulo metodológico.
O autor nem sempre é conciso, e o leitor poderia censurar cordialmente uma certa prolixidade, que talvez tenha ocorrido porque ele "não teve tempo de ser breve". Mas com certeza louvará a paixão intelectual presente em cada linha, reforçando a precisão dos conceitos. A precisão, aliás, parece ter sido especialmente visada pelo autor, que muito justamente não se conforma com meias noções e procura sempre o maior rigor possível. Mesmo que isso o leve por vezes a um certo gosto que eu chamaria sem malícia de escolástico pelo jogo das provas e as finuras da argúcia. Mas o que resulta é um texto concatenado e inteligível, com alguns arabescos sintáticos, é verdade, mas sem a neblina expositiva que anda na moda e parece aumentar o prestígio de quem a usa na razão inversa do grau de compreensão de quem lê.
Como atitude, é apreciável a objetividade com que o integralismo e o seu figurante principal são abordados e analisados por alguém que se situa ideologicamente no pólo oposto. Antes de avaliar, Chasin preferiu estudar seriamente, como se não tivesse juízos prévios. Esta atitude só pode reforçar os comentários finais do.capítulo IV, que enfeixam o diagnóstico severo formado ao longo da investigação sobre esse movimento aparentemente uno (por causa das manifestações externas altamente formalizadas), mas de fato complexo e mesmo compósito, como demonstrou Hélgio Trindade num livro essencial (nem sempre avaliado neste com inteira justiça), e como Chasin reforça, dizendo que "talvez seja mais correto falar de integralismos do que de integralismo".
Confesso que a leitura me fez voltar quase insensivelmente às experiências de moço, no decênio de 1930, quando os meus companheiros e eu éramos contra o integralismo, mas nos interessávamos por ele e tínhamos colegas e amigos integralistas com os quais convivíamos bem, apesar de alguma pega ocasional, como o que nos levou, no Ginásio, a uma cisão e conseqüente retirada do jornalzinho que editávamos e do grêmio que fundáramos.
Procurando um primeiro esclarecimento por meio dessa forma precária mas viva de conhecer que é a impressão pessoal, lembro que muitos rapazes se tornavam integralistas por uma espécie de insatisfação contra as oligarquias, particularmente ostensivas nas pequenas cidades. Ou querendo promover de maneira paternalista, mas-sincera, os direitos do Trabalho em face do Capital (manipulado perfidamente pêlos "banqueiros internacionais", os "judeus de Wall Street"). Tinha os que aderiam por devoção religiosa, prolongando o espírito de catecismo e Congregação Mariana, numa piedade assustada que procurava garantias de manutenção da Igreja (como era então) contra o que chamavam "o materialismo ateu do nosso tempo" e englobava um medo irracional do comunismo. Alguns obedeciam a um sentimento aristocrático e/ou nacionalista de alta tensão patriótica, desejando preservar "as nossas tradições"; mas muitos mais seguiam uma espécie de surdo instinto conservador pequeno-burguês, nostálgico de um passado mais próspero e temeroso de proletarização. Nem faltava os que eram levados por um sentimento literário, arrebatados na retórica verde-amarela do chefe e vendo no movimento o encontro (sempre buscado em nossa literatura) com a verdade verdadeira do país. E praticamente em todos, pelo menos um incremento do vago anti-semitismo latente no católico médio.
O espetáculo e a vivência das reuniões exaltadas, com brados retumbantes, insígnias, hierarquia, davam a eles segurança, bem-estar, e justificavam também o ódio ao adversário. Alguns que conheci eram de mentalidade agressivamente fascista, não faltando quem fosse membro dos grupos de choque, cujo distintivo, se bem me lembro (usado atrás da lapela do paletó), era um escudo vermelho com uma espada dourada e o sigma na parte superior. Estes podiam ser espancadores nas expedições punitivas, dando com prazer às vítimas o óleo de ricino avacalhante de origem mussoliniana. Mas não cheguei a conhecer os nazistões racistas que sabia existirem em torno de Gustavo Barroso ou nas colônias de origem alemã, no Sul. Que era um movimento variado e complexo, não há sombra de dúvida.
É justo dizer, portanto, que na minha geração o ingresso nas "hostes do sigma", como diziam, não foi para muitos rapazes adesão consciente a uma modalidade de fascismo, mas fruto de inquietação honesta, embora quase sempre reacionária, nascida da revolta contra o império do coronelismo atrasado e bilontra, mascarado de “imortais princípios de 89”. O integralismo lhes parecia, com efeito, uma "solução nacional", e muitos deles largaram o movimento assim que o seu aspecto fascista se evidenciou ou se tornou insuportável, com os progressos do nazismo e sobretudo a guerra, que os obrigou a optar entre uma tradição mais liberal, própria dos Aliados, e o autoritarismo de cunho militar que predominava nas Potências do Eixo. Assim, mesmo partindo da mera experiência pessoal, bem sei quanto é preciso pensar com objetividade, ter o senso dos matizes e calcular a força especificadora das condições históricas.
Por isso, já agora no plano da análise conceituai, aceito como legítimo o pressuposto básico deste livro: o esforço lógico e político de distinguir. Distingo, logo penso – poderia ser o lema para as discussões sobre a atividade da inteligência. Com efeito, por vezes as generalizações desfiguram e correm o risco de ser um ocultamento da realidade; e o desconhecimento dos traços particulares pode abrir caminho para a confusão, porque corresponde ao veso de explicar tudo por cima, numa penumbra onde todos os gatos do mundo e da mente são confortavelmente pardos. Pensemos no malefício teórico e prático que podem exercer proposições como: "Quem não é fascista é comunista", ou "Quem não é comunista é fascista"; ou esta, muito em voga nos mais variados escalões: "Comunismo e fascismo são a mesma coisa, porque são totalitarismos". Uma das mais trágicas dessas generalizações ideologicamente interessadas foi a que os comunistas alemães efetuaram no começo do decênio de 1930, classificando os socialistas de "social-traidores" e considerando-os da mesma laia que os nazistas. Resultado foi a desunião das esquerdas e a vitória eleitoral de Hitler. Generalização simetricamente funesta fizeram muitos socialistas que, impressionados pêlos lados mais negativos do stalinismo, englobaram todo o comunismo num "fascismo vermelho", o que só serviu para confundir a visão correia do problema e, não raro, convergiu com a reação burguesa.
Para Chasin, a identificação do integralismo ao fascismo é uma generalização deformante; mas a sua retificação diferenciadora visa a restabelecer o que lhe parece a verdade, e não a melhorar a visão do integralismo, que para ele é adversário, tanto quanto para os que fazem aquela identificação.
O seu principal ponto de apoio teórico talvez seja a discussão sobre o conceito de totalitarismo, que funcionaria, para os que os identificam, como denominador comum de ambos os movimentos. Mas é claro que a sua veemente discussão mira mais longe; visa ao próprio conceito, que serve à crítica liberal para operar a assimilação muito mais grave entre fascismo e comunismo, na medida em que ambos seriam afastamentos de um modelo ideal, supra-sumo da filosofia e da organização política, – o do liberalismo. Pelo fato de restringirem ou suprimirem as garantias jurídicas dos direitos individuais, fascismo e comunismo seriam totalitarismos, igualados na vala comum dos inimigos das liberdades democráticas.
A distinção corretora de Chasin é vigorosa e bem conduzida; mas talvez, no afã de desqualificar o conceito, ele haja atenuado a possibilidade de registrar os fatos. As medidas e práticas mutiladoras da liberdade individual ("normais" nos regimes fascistas e análogos) devem ser encaradas objetivamente quando ocorrem nos regimes que, na raiz e nas metas, são efetivamente revolucionários. O que é preciso é distinguir as restrições justificáveis e as injustificáveis das liberdades democráticas, que aliás conviria não vincular tão organicamente ao liberalismo, porque isso pode ser um modo de "fazer o jogo" burguês. O liberalismo proclamou como suas, e apenas suas, conquistas que na verdade escapam ao contexto do capitalismo e da prática política burguesa, que as condicionaram em parte sob a forma por que as conhecemos. Mas a verdade é que um dos desígnios históricos do socialismo, desde a sua configuração plena na primeira metade do século XIX, foi tentar dar realidade efetiva a essas liberdades e torná-las patrimônio de todos os homens, não privilégio de grupos oficialmente considerados de "cidadãos", em detrimento de outros. Justamente para isso, para torná-las bem-comum, é que pensadores como Marx procederam à análise desmascaradora do sistema capitalista, mostrando que só o fim da propriedade privada dos meios de produção e a superação da economia de mercado permitiria instaurá-las na sua plenitude, isto é, para todos. Quando um regime alega que as restringe ou suprime porque são conceitos de classe ou preconceitos burgueses, não devemos acompanhá-lo nesta escamoteação, mas indagar porque, como, até quando foram suspensas. Em Cuba elas foram parcialmente postas entre parênteses a fim de construir o socialismo; no Brasil, para impedir a marcha dele; em conseqüência, a sua restrição pode se justificar em Cuba, mas não no Brasil. Isso posto, não se pode negar que em ambos os casos está presente um fermento do chamado "totalitarismo". Não creio que se ajude a causa do socialismo negando que na Rússia ocorreram traços deste tipo, equivalentes aos que ocorreram nos regimes fascistas: ausência de liberdade de opinião e associação, supressão de garantias individuais, terror policial, etc. Mas a grande diferença é que no primeiro caso tratava-se de construir uma sociedade igualitária e progressista num mundo hostil, em meio a erros, atrasos, tropeços, abusos de toda sorte, além de uma tradição milenar de tirania absoluta; no segundo caso, tratava-se de freiar, em países de estrutura política muito mais favorável, o advento dessa sociedade, procurando manter tudo aquilo que constitui o peso morto do passado.
No primeiro caso, portanto, houve supressão ou não-estabelecimento de práticas que o socialismo sempre reputou humanizadoras e essenciais para a sua realização; e que deverão por isso voltar um dia, conforme está implícito em sua filosofia. No segundo caso, o intuito foi a supressão de uma vez por todas, porque elas foram reputadas desnecessárias e mesmo perniciosas, conforme está explícito na filosofia dos movimentos fascistas, que as substituem por sucedâneos mais ou menos caricaturais. Isso não importa em dizer que os fins justificam os meios (no caso russo); meios e fins são inseparáveis no processo dialético e só se definem reciprocamente, em função da totalidade que lhes dá significado.
Para voltar ao nosso caso, quero dizer que é possível abrir uma discussão sobre a natureza do fascismo rejeitando o conceito de totalitarismo, contanto que isto não sirva para um outro mascaramento da realidade.
Não é a intenção de Chasin, obviamente; mas aproveitei para um excurso que me parece útil e para exprimir, agora, uma impressão de leitura: que o nosso autor ficou talvez excessivamente preocupado em criticar o conceito e, com isso, não apenas desenvolveu o assunto mais do que o contexto pedia, mas deixou de formular uma caracterização do fascismo, que servisse de ponto de apoio para a sua análise. O leitor conclui que o totalitarismo é um conceito burguês mistificador, que sob pretexto de definir o fascismo quer no fundo desqualificar simultaneamente o comunismo, não tendo, portanto, valor científico para identificar integralisrno e fascismo. Mas (pensa), o que vem afinal a ser este, exatamente? A resposta não se encontra de maneira concentrada no livro. Além disso, como veremos, o autor deixou de lado outros elementos que poderiam ter alargado a discussão e talvez fizessem ver, ao lado das diferenças, as afinidades entre fascismo e integralismo.
Para efetuar a sua análise diferencial, ele mostra diversos pontos de divergência e mesmo incompatibilidade entre ambos, e completa o seu modo de ver apontando a relação entre os movimentos de tipo fascista e o capitalismo, a fim de sublinhar de que maneira aqueles ocorreram nos países onde este se manifestou com atraso sensível ("capitalismo tardio"), caracterizando-se em conseqüência pela mistura de traços modernos e sobrevivências arcaicas, como aconteceu na Alemanha, Itália e Japão, de maneiras diversas. Este esquema conceituai radica na obra de Marx e se exprime na teoria do "capitalismo prussiano" de Lênin; Chasin a aplica de maneira feliz ao Brasil, a exemplo de Carlos Nelson Coutinho, procurando, como ele, interpretar a realidade segundo as posições teóricas de Lukács, cujo livro sobre A destruição da razão lhe fornece decisivos elementos de análise.
No seu modo de entender, como há correlação determinante entre capitalismo e fascismo, este não poderia ocorrer no Brasil, onde aquele estava em fase atrasadíssima ("capitalismo hiper-tardio"); onde não havia, pois, condições para uma reação defensiva da burguesia do tipo que foi o fascismo nos países de "capitalismo tardio". Portanto, o integralismo não teria sido um fascismo, apesar de analogias e certa tendência mimética; mas uma formação ideológica peculiar que não chega a ser doutrina, ajustada às condições locais, filiada a uma genealogia local, manifestando-se por "um discurso genética e intrinsecamente débil, atravessado por uma fraqueza congénita que traduz, em última instância, a inviabilidade concreta da resposta que o motiva. Debilidade, a nível do discurso, a refletir o raquitismo do sujeito histórico expresso, agente este que não pode ir além de soluções de meio termo que, em tantos pontos, caracteriza a propositura pliniana".
Não se pode senão louvar o esforço de distinção clarificadora e de caracterização especifica que situa a discussão sobre o integralismo na devida base econômica e social; e que procura rastrear no próprio Brasil precedentes de inspiração ruralista, irracionalista, sentimental, tão freqüente em nosso nacionalismo cultural. Ela representa um progresso analítico importante, e o leitor verá a riqueza de facetas e dados em que a discussão se desdobra, até saturar a comprovação da premissa básica. Mas, para mim, indo longe demais.
Negando que seja possível aplicar ao Brasil, sem mais aquela, conceitos extraídos de outros contextos históricos e sociais, o nosso autor se engrena numa linha de pensamento que prefere salientar a diferença brasileira, não a continuidade cultural em relação às matrizes européias. A sua argumentação apresenta o que há de melhor nesta linha, mas também alguma coisa do que ela tem de menos seguro, levando a certo perigo de particularização que pode comprometer o entendimento adequado dos fatos, porque impede o retorno dialético aos conceitos. Penso que fascismo funciona como um destes, em relação ao integralismo; dissociá-los é uma empresa nova e arrojada, que desperta no leitor admiração mas também receio de suscitar confusões.
Uma dúvida que me veio de passagem foi a seguinte: se levarmos a outros campos o tipo de raciocínio de Chasin, poderemos encontrar no caminho um argumento que vem do fim do século passado e aparece até em Sílvio Romero, a saber: que o socialismo era inviável no Brasil por ser arma de luta de um proletariado de sociedade industrial (como não era a nossa), reagindo a condições específicas desta. Sendo outro o contexto brasileiro, ele seria aqui uma importação artificial, uma "ideologia exótica". Pergunta-se: o anarquismo, o socialismo, – mais tarde o comunismo, – que atuam entre nós desde o século passado, foram formações locais, respondendo a contingências locais, não se identificando aos congêneres europeus apesar do nome, do desejo expresso de filiação e de analogias mil? Ou é possível, mesmo em contexto diverso, transpor na essência movimentos políticos que guardam os traços de origem, não obstante as adaptações sofridas? Mas isso é uma dúvida lateral que precisaria ser melhor formulada e não cabe aqui.
Encarando a argumentação de Chasin com boa vontade e reconhecendo a sua coerência, pode-se dizer que ela teria validade dependendo do que se entenda por fascismo. O nosso autor, como vimos, não achou necessário estabelecer um conceito sintético; pressupôs que fosse conhecido ou seria identificado pelas características que vão surgindo ao longo da discussão. Aliás, seja dito que fascismo não é uma designação feliz, por ser nome de um movimento singular, o italiano, transposto para o fenômeno geral. (Um caso de sinédoque política, ou seja, de designação do todo pela parte). Mas é ele, não outro, que conota o movimento situado entre as duas guerras mundiais, e que foi contra-revolucionário, anti-democrático, para-militar, tomando elementos ao socialismo embora fosse antes de mais nada dirigido contra ele.
Por isso, se chamarmos fascistas apenas às organizações derivadas do movimento italiano e mais tarde do alemão, ou que os tomaram declaradamente por modelos, Chasin terá eventualmente razão; é mais difícil tê-la se, como prefiro, tomarmos fascismo no sentido amplo indicado acima. A favor de Chasin, manda a verdade registrar o ponto de vista de um dos maiores especialistas na matéria, Ernst Nolte, que considera fascistas "os movimentos políticos que, na praxis ou na ideologia, reivindicam explicitamente o modelo italiano ou, mais tarde, o alemão, nacional-socialista". 1 Em relação a outros, Noite prefere falar em "filo-fascismo", "semi-fascismo", "pseudo-fascismo", "proto-fascismo", modalidades que podem também constituir etapas de um movimento fascista (p. 222). Estaria o integralismo num destes últimos casos?
Seja como for, registro que apesar da abundância de suas considerações, Chasin não quis fazer uma discussão mais completa de outros aspectos que mostrariam, ao lado das diferenças, as inegáveis analogias. Por exemplo: o fato do fascismo e integralismo serem formas de falso anti-capitalismo, mas na verdade funcionarem como defesa deste, seja ele pleno, "tardio" ou "hiper-tardio". O fato de ambos insistirem nos direitos dos operários e na iniqüidade da burguesia mas, ao mesmo tempo, preconizarem todas as medidas necessárias para o domínio desta e oferecerem àqueles uma espécie de miragem de aburguesamento. Com efeito, assim como os nazistas e fascistas, os integralistas pregavam a substituição da luta de classes pela ascensão dos melhores, para renovar as camadas dirigentes gastas e continuar estrutural e funcionalmente o seu papel na sociedade.
No principal livro que escreveu como definição do movimento, Plínio Salgado deixa tudo isso evidente. Ataca a liberal-democracia e diz que o integralismo será a democracia verdadeira. Reconhece afinidades com o socialismo, mas vê nele o perigo máximo contra a sociedade, negando-lhe o caráter revolucionário que, alega, caberia ao integralismo (exatamente como diziam Mussolini e Hitler sobre os seus movimentos). (O que é o Integralismo, Rio, Schmidt, 1933).
No Brasil não era agudo o "perigo vermelho" sob a forma de pressão imediata de um proletariado numeroso e aguerrido, que apavorou a burguesia européia depois da Primeira Grande Guerra e criou condições para o êxito do fascismo; mas não se esqueça que este "perigo" era temido desde o começo do século, sendo objeto das reflexões de um pensador que influenciou Plínio Salgado, como Oliveira Viana 2 . :
Lembre-se, ainda, que houve aqui, no decênio de 1930 e sobretudo até o golpe de estado de 1937, algo correspondente, sob a forma de histeria de classe. A Revolução de Trinta abriu uma fase de grande inquietude, com radicalização para a esquerda em diversos setores e, de modo geral, um desafogo, uma curiosidade mental, um rasgar de horizontes, que pareciam o fim do mundo para os conservadores. O integralismo, como o fascismo, apareceu ao modo de alternativa salvadora, tomando do socialismo alguns traços, com o intuito de desfigurá-los. Aliás, é notável no citado escrito de Plínio Salgado a ignorância a respeito do marxismo, violentamente atacado mas, a certa altura, anunciado como método para analisar os malefícios do capitalismo e do liberalismo no Brasil (p. 82). Nem falta, para acentuar a afinidade com o fascismo, a atitude de descarregar sobre o estrangeiro capitalista todos os males do país.
Não há dúvida que Plínio Salgado acentuava o cunho brasileiro, cristão e mesmo classe-média do seu movimento (ao contrário da insistência demagógica de Mussolini e Hitler no caráter proletário dos seus partidos e das "revoluções" que preconizavam). E aí está um dos seus aspectos próprios, bem analisado por Chasin. Mas convém mencionar que este aborda sobretudo o pensamento do fundador, quando, se for tomado no conjunto, o integralismo certamente aparecerá mais fascista. Hélgio Trindade, que Chasin reforça sob este aspecto, mostrou como a linha do chefe o era menos do que outras, que formavam com ela o conjunto complexo da Ação Integralista Brasileira. Aliás, muitas das afirmações de Plínio Salgado a respeito de sua independência e mesmo oposição ao fascismo, que aparecem e são comentadas neste livro, pertencem a escritos posteriores à guerra, quando ele procurava dar um outro sentido ao seu movimento; com o intuito de sobreviver politicamente (o que cm parte conseguiu).
O fato de haver correntes diferenciadas dentro de um partido ou movimento não oblitera necessariamente, aliás, a sua diretriz principal.Elas ocorrem sobretudo nas fases anteriores ao triunfo e à dominação; mas se por acaso os alcançam, vem logo o ajuste de contas unificador, que abala e ensangüenta internamente as revoluções e tomadas de poder. No nazismo havia diversas tendências, inclusive uma espécie de socialismo de caserna, populista e boçal, representado por Goebbels (que traiu) e Roehm, tendo como apoio a vasta organização para-militar das tropas de assalto (S.A.); Hitler liquidou tudo isso em 1934, no massacre da "noite das facas longas".
O fascismo foi em parte uma ideologia de disfarce, mascarada inclusive com princípios tomados ao adversário mais visado, o socialismo, como vimos. Isso, combinado à falta de base teórica autêntica, levou-o a assumir características adequadas a cada país; daí diferenças, que podem ser levadas mais longe do que elas realmente significam, e que a meu ver não permitem separar ontologicamente a ocorrência peculiar brasileira. Dizendo que "o fascismo não tem e não pode ter uma doutrina definida e coerente, como o socialismo", Daniel Guérin cita um conceito de Pierre Gerôme que exprime bem o que estou querendo dizer: "Há uma demagogia fascista que varia segundo os países e para cada país, conforme as classes sociais e as circunstâncias. Pouco importa ao fascismo acumular contradições no seu programa…"3
Eu diria mesmo, já que estamos discutindo dúvidas, que o cunho fascista pode ser pesquisado em outros níveis, além da referência às idéias e ao fundamento econômico. Seria o caso dos aspectos exteriores, que Chasin não focaliza e que Plínio Salgado, depois da guerra, considerou acessórios e mesmo enganadores, levando a uma visão errada do seu movimento. Mas penso que eles são significativos e mostram até que ponto o integralismo participava de um sistema semiológico próprio dos movimentos fascistas. O critério não é bastante, mas é útil como contraprova.
De fato, a Ação Integralista Brasileira possuía todos os elementos de caracterização externa do fascismo, como a camisa-uniforme, nascida da camiccia nera de Mussolini, que nele era verde (como nos congêneres romeno e húngaro), tendo sido parda no nazismo, preta nos fascistas tchecos e ingleses, azul nos irlandeses e nos portugueses de Rolão Preto; e até dourada num agrupamento mexicano aparentado. Ou, ainda, o signo de conotação meio mística: fascio littorio, svástica, cruz de flechas, tocha e, no Brasil, o sigma somatório. Ou, também, a saudação romana, comum a todas as modalidades e que entre nós passou por um processo revelador de assimilação, identificando-se à saudação indígena de paz com o brado "Anauê". Resultou uma saudação nacional, peculiar, reveladora do indianismo que sempre reponta em nossos diferentes nacionalismos como busca do timbre diferenciador; mas que nem por isso deixa de ser manifestação do sistema simbólico do fascismo, geral.
***
Um texto estimulante e mesmo fascinante, como este, nos leva a rever, a pensar de novo os problemas conexos. Talvez eu o esteja aproveitando para reabrir uma reflexão pessoal sobre velhas preocupações com o fascismo e o socialismo. Com isso, fui e voltei do texto aos problemas externos e destes ao texto, sem na verdade me concentrar em aspectos que deveriam ser ressaltados num prefácio. É o caso, por exemplo, do corpo central deste livro volumoso, ocupado pela análise exaustiva, penetrante da obra de Plínio Salgado. Seria também preciso falar do método, rigoroso, intransigente e produtivo, que permitiu focalizar o integralismo de maneira renovada.
Estejamos ou não de acordo com a premissa de Chasin (o integralismo não é um fascismo), o fato é que não será mais possível ver o fenômeno integralista com os mesmos olhos, porque ele realizou um dos feitos mais difíceis para um estudioso: alterar as noções dominantes e transformar em problema o que era considerado como fato estabelecido. Se pessoalmente não aceito a sua premissa, sinto que não poderei mais falar do assunto sem passar por ela e sem que ela me leve a matizar o meu ponto de vista.
Depois da leitura deste livro, alguns dirão: o autor está certo; outros dirão: o autor não está certo. Mas não se poderá mais estatuir simplesmente – "o integralismo é um fascismo". Isso é um modo de dizer que a conclusão do autor não lucra em ser avaliada como acerto ou erro, mas como renovação do problema, ou melhor, problematização do fato. Chasin renovou, reviu e tornou impossível o esquematismo anterior. Ele não gosta dos pontos de vista imantados, que lhe parecem ecletismo pelo que lemos a certa altura do livro, com base em Lukács; mas o fato é que a riqueza da sua argumentação leva a essa atitude a meu ver de alta nacionalidade, que é pensar simultaneamente os diversos lados de um problema. E isso aumenta a nossa clarividência e poder de visão.
Assim, a argumentação forte e inspirada de Chasin me parece facultar uma conclusão diferente da dele, mas devida em parte a ela. Por exemplo: que o integralismo não foi certamente uma cópia; correspondendo às condições histórico-sociais, foi um movimento reacionário conciliatório, norteado por valores e interesses da pequena-burguesia parasitária do capitalismo; inscrito num panorama de capitalismo atrasado, o presente e sobretudo o futuro lhe causavam medo, e ele incorporou um máximo de tradição ruralista e patriótica, refugando a dinâmica do mundo industrial; para fazer isso,’ absorveu elementos essenciais do fascismo, que o inspirou em boa parte, desenvolvendo, todavia, traços próprios que permitem considerá-lo uma variante especificamente brasileira; se não foi’, um fascismo, foi certamente um semi-fascismo verde-‘ amarelo, que não chegou talvez a definir toda a sua fisionomia nos cinco anos que durou oficialmente.
O leitor verá e depois concluirá, na viagem que vai começar em torno de um texto exuberante e fecundo, dos que mais apaixonam e perturbam em nossa bibliografia recente.
NOTAS
1 Nota do autor: La crisi dei regini liberali e i movimenti fasisti, trad. italiana, Bologna, Mulino, 1970, p.6.
2 Nota do autor: Ver por exemplo, nos Pequenos estudos de psicologia-social. São Paulo. Monteiro Lobato, (1922), o estudo: “Nacionalismo e questão social”, p.87.
3 Nota do autor: Daniel Guérin, Fascisme et Grand Capital, Italie-Allemagne, 2ªed., Paris, Gallimard, 1945, p.104.