DA MISÉRIA NO MEIO ESTUDANTIL – INTERNACIONAL SITUACIONISTA II


 II. NÃO BASTA QUE O PENSAMENTO PROCURE REALIZAR-SE; É NECESSÁRIO QUE A REALIDADE TRATE DE DESCOBRIR O SEU PENSAMENTO

Após um longo período de sono letárgico e de contra-revolução permanente, esboça-se, desde há alguns anos, um novo período de contestação de que parece ser portadora a juventude. Mas a sociedade do espectáculo, na representação que faz de si mesma e dos seus inimigos, impõe as suas categorias ideológicas para a compreensão do mundo e da história. Ela conduz tudo quanto aí se desenrola à ordem natural das coisas, encerrando as verdadeiras novidades que anunciam a sua superação no contexto restrito da sua ilusória novidade. A revolta da juventude contra o modo de vida que se lhe impõe não é, na realidade, mais do que o sinal precursor duma vasta subversão que englobará o conjunto dos indivíduos que sentem cada vez mais a impossibilidade de viver; não é mais do que o prelúdio da próxima época revolucionária. Só que a ideologia dominante e os seus órgãos diários, segundo mecanismos experimentados de inversão da realidade, não podem deixar de reduzir este movimento histórico real a uma pseudocategoria socio-natural: a Ideia de Juventude (cuja essência consistiria na revolta). Reduzindo, deste modo, uma nova juventude da revolta à eterna revolta da juventude – que renasceria em cada geração para se apagar quando o "jovem é tomado pela seriedade da produção e pela actividade com vista a fins concretos e verdadeiros". A "revolta dos jovens" foi e é ainda objecto duma verdadeira praga jornalística, que dela faz o espectáculo duma "revolta" possível oferecida à contemplação para impedir que se a viva, como esfera aberrante -já integrada- necessária ao funcionamento do sistema social; esta revolta contra a sociedade tranquiliza a sociedade porque se a imagina como coisa parcial, e como coisa parcial que como tal se mantenha, no apartheid das "questões da juventude" -do mesmo modo que haveria um problema feminino ou um problema negro -, supondo-se, assim, que haverá de durar apenas uma parte da vida. Na realidade, porém, se de facto existe um "problema da juventude" no interior da sociedade moderna é porque a crise profunda desta sociedade é ressentida com a acuidade maior pela juventude (1). Produto por excelência desta sociedade moderna, ela própria é moderna, quer para nela se integrar sem reservas, quer para a recusar radicalmente. O que é digno de admiração não é tanto que a juventude seja revoltada, mas sim que os "adultos" se mostrem tão resignados. Coisa aliás que não tem uma explicação mitológica, mas outrossim histórica: a geração precedente conheceu todas as derrotas e consumiu todas as mentiras do período de desagregação do movimento revolucionário.

Considerada em si mesma, a "juventude" constitui um mito publicitário já profundamente ligado ao modo de produção capitalista, como expressão do seu dinamismo. Esta ilusória primazia da juventude tornou-se possível com a nova arrancada da economia, após a Segunda Guerra Mundial, na sequência da introdução maciça no mercado de toda uma categoria de consumidores mais maleáveis, papel este que assegura um diploma de integração na sociedade do espectáculo. Mas a explicação dominante do mundo encontra-se de novo em contradição com a realidade socio-económica (porque atrasada em relação a esta), e é justamente a juventude que começa por afirmar um irresistível furor de viver, insurgindo-se espontaneamente contra a chatice quotidiana e o tempo morto que o velho mundo continua a segregar através das suas diferentes modernizações. A fracção revoltada da juventude exprime a pura recusa, sem a consciência duma perspectiva de superação; exprime a sua recusa niilista. Esta perspectiva busca-se e constitui-se por toda a parte do mundo. Do que precisa é de atingir a coerência da crítica teórica e a organização prática duma tal coerência.

Ao nível mais sumário, os "Blusões Negros", e isto em todos os países, exprimem com a maior violência aparente a recusa de se integrarem. Mas o carácter abstracto da sua rejeição não lhes deixa qualquer possibilidade de escaparem às contradições de um sistema de que são o produto negativo e espontâneo. Os "Blusões Negros" são produzidos por todas as costuras da ordem actual: pelo urbanismo dos grandes centros habitacionais, pela decomposição dos valores, pela extensão dos ócios consumíveis cada vez mais chatos, pelo controlo humanitário-policial cada vez mais alargado ao conjunto da vida quotidiana, pela sobrevivência económica da célula familiar privada de qualquer significado. Os "Blusões Negros" desprezam o trabalho mas aceitam as mercadorias. O que quereriam era poder dispor de tudo quanto a publicidade lhes mostra, imediatamente e sem que tivessem de pagar. Esta contradição fundamental domina por inteiro a sua existência, e é ela o contexto que retém e aprisiona a sua tentativa de afirmação no sentido da busca duma verdadeira liberdade no emprego do tempo, da afirmação individual e da constituição de um género de comunidade. (Simplesmente, tais microcomunidades recompõem, à margem da sociedade desenvolvida, um primitivismo em que a miséria real inelutavelmente recria a hierarquia no grupo. Esta hierarquia, que só pode afirmar-se na luta contra outros grupos, isola cada um dos grupos e, no seio de cada grupo, o indivíduo.) Para sair desta contradição, o "Blusão Negro" acaba por se ver perante a necessidade de trabalhar para poder comprar mercadorias – e, aqui, todo um sector da produção é expressamente constituído para a sua recuperação como consumidor (motos, guitarras eléctricas, vestuário, discos, etc) -, ou então tem de atacar as leis da mercadoria, quer de forma primária, roubando-a, quer duma forma consciente, elevando-se à crítica revolucionária do mundo da mercadoria. O consumo porém abranda os costumes destes jovens revoltados, vindo a sua revolta a cair no pior dos conformismos. O mundo dos "Blusões Negros" só tem como perspectiva a tomada de consciência revolucionária ou a obediência cega nas fábricas.

Os Provos constituem a primeira forma de superação da experiência dos "Blusões Negros", a organização da sua primeira expressão :política. Surgiram por virtude de um encontro entre alguns detritos da arte decomposta em busca de êxito e uma massa de jovens revoltados em busca de afirmação. A sua organização permitiu a uns e a outros avançar e aceder a um novo tipo de contestação. Os "artistas" trouxeram com eles algumas tendências, ainda muito mistificadas, no sentido do jogo, revestidas de um confuso amontoado ideológico; os jovens revoltados só tinham por eles a violência da sua revolta. Desde a formação da sua organização, as duas tendências mantiveram-se distintas; a massa sem teoria viu-se desde logo sob a alçada tutelar duma ínfima camada de dirigentes suspeitos, que procuram manter o "poder" de que dispõem através da segregação duma ideologia provotista. A violência dos "Blusões Negros", em vez de passar, no plano das ideias, para uma tentativa de superação da arte, foi o reformismo neo-artístico que prevaleceu. Os Provos são a expressão do último reformismo produzido pelo capitalismo moderno: o da vida quotidiana. Quando se mostra necessária pelo menos uma revolução ininterrupta para se transformar a vida, a hierarquia Provo julga -tal como Bernstein julgava transformar o capitalismo em socialismo através das reformas- que basta serem aplicados alguns melhoramentos para que a vida quotidiana se modifique. Os Provos, ao optarem pelo fragmentário, acabam assim por aceitar a totalidade. Para se dotarem de uma base, os seus dirigentes inventaram a ridícula ideologia do Provotariado (mistela artístico-política inocentemente composta dos restos bolorentos duma festa que não conheceram), destinada, segundo eles, a opor-se à pretensa passividade e ao emburguesamento do proletariado, formulário este, vazio e pretensioso, de todos os cretinos do século. Porque perderam a esperança de transformar a totalidade, perdem a esperança nas únicas forças que contêm a esperança duma superação total. O proletariado é o motor da sociedade capitalista, sendo por isso o seu perigo mortal; tudo é feito para o reprimir (partidos, sindicatos burocráticos, polícia e, mais ,frequentemente do que contra os Provos, colonização de toda a sua existência), na medida em que ele é a única força realmente ameaçadora. Os Provos disso não compreenderam nada; mantêm-se, deste modo, incapazes de fazer a crítica do sistema de produção, ficando, do mesmo passo, prisioneiros de todo o sistema. E quando, num motim operário anti-sindical, a sua base aderiu à violência directa, os dirigentes viram-se completamente ultrapassados pelo movimento, não vendo, no seu desvario, nada melhor do que denunciar os "excessos" e apelar ao pacifismo, renunciando lastimavelmente ao seu programa, que consistia nisto: provocar as autoridades para mostrar o seu carácter repressivo (clamando que eram provocados pela polícia). Para cúmulo, apelaram, pela rádio, os jovens amotinados a que se deixassem educar pelos "Provos", quer dizer, pelos dirigentes os quais largamente puseram à mostra que o seu vago "anarquismo" não passava de um novo embuste. A revoltada base dos Provos só pode aceder à crítica revolucionária começando por se revoltar contra os seus chefes, o que significa aderir às forças revolucionárias objectivas do proletariado e desembaraçar-se de gente como um Constant, artista oficial da Holanda monárquica, ou como um De Vries, parlamentário falhado e admirador da polícia inglesa. Só assim os Provos podem juntar-se à autêntica contestação moderna, que neles já dispõe duma base real. Se pretendem realmente transformar o mundo, que abandonem todos quantos pretendem contentar-se com a sua reabilitação.

Ao revoltarem-se contra os seus estudos, os estudantes norte-americanos puseram imediatamente em causa uma sociedade que tem necessidade de tais estudos. Do mesmo modo que a sua revolta (em Berkeley e alhures) contra a hierarquia universitária se afirmou, desde logo, como uma revolta contra todo o sistema social baseado na hierarquia e na ditadura da economia e do Estado. Ao recusarem-se a integrar as empresas a que os seus estudos especializados muito naturalmente os destinavam, põem profundamente em causa um sistema de produção no qual todas as actividades, bem como o seu produto, escapam por inteiro aos seus autores. Assim, através de tentativas, e duma confusão ainda muito importante, a juventude norte-americana acaba por procurar, na "sociedade da abundância", uma alternativa revolucionária coerente. Em larga medida ela mantém-se vinculada aos dois aspectos relativamente acidentais da crise americana: os Negros e o Vietname; e as pequenas organizações que constituem a "Nova Esquerda" disso se ressentem imenso. Se, na sua forma, se faz sentir uma autêntica exigência de democracia, a debilidade do seu conteúdo subversivo fá-las cair em contradições perigosas. A hostilidade em relação à política tradicional das velhas organizações é facilmente recuperada pela ignorância em relação ao mundo político, que se traduz por uma grande falta de informação e por ilusões a respeito do que efectivamente se passa no mundo. A hostilidade abstracta perante a sua sociedade condu-los à admiração ou ao apoio dos seus inimigos mais aparentes: as burocracias ditas socialistas, a China ou Cuba. É assim que se depara, num grupo como o Resurgence Youth Movement, simultaneamente com uma condenação à morte do Estado e com um elogio da "Revolução Cultural" conduzida pela mais gigantesca burocracia dos templos modernos: a China de Mao. Ao mesmo tempo que a sua organização semilibertária e não-directiva corre a toda a altura o risco, devido a uma manifesta falta de conteúdo, de cair na ideologia da "dinâmica dos grupos" ou no universo fechado da Seita. O consumo maciço de droga é a expressão duma miséria real e o protesto contra esta miséria real: ela constitui a busca falaciosa de liberdade num mundo sem liberdade, a crítica religiosa de um mundo que superou ele próprio a religião. Não é por acaso que se a encontra sobretudo nos meios beatniks (verdadeira direita dos jovens revoltados), centros da rejeição ideológica e da aceitação das mais fantásticas superstições (zen, espiritismo. misticismo da "New Church" e outras inúteis merdas como o gandhismo ou o humanismo…). Através da sua tentativa de busca de um programa revolucionário, os estudantes norte-americanos cometem o mesmo erro que os Provos e proclamam ser "a classe mais explorada da sociedade"; eles precisam, desde hoje, de compreender que não têm interesses distintos de todos quantos sofrem a opressão generalizada e a escravidão mercantil.

A Leste, o totalitarismo burocrático começa também a produzir as suas forças negativas. A revolta dos jovens é ali particularmente virulenta, e só é conhecida através das denúncias que dela fazem os diferentes órgãos do aparelho ou as medidas policiais que adopta para as conter. É assim que tomamos conhecimento de que uma parte da juventude já não "respeita" a ordem moral e familiar (tal como existe na sua mais detestável forma burguesa), se entrega à "libertinagem", despreza o trabalho e já não obedece à polícia do partido. Na URSS, chega-se mesmo a nomear expressamente um ministro para combater a vadiice rufia. Paralelamente porém a esta revolta difusa procura afirmar-se uma contestação mais elaborada, e os grupos ou pequenas revistas que vivem na clandestinidade surgem e desaparecem segundo as flutuações da repressão policial. O facto mais importante consistiu na publicação, pelos jovens polacos Kuron e Modzelewski da sua Carta-Aberta ao Partido Operário Polaco. Neste texto, afirmam de modo expresso a necessidade da abolição das relações de produção e das relações sociais actuais e consideram que, para tal fim, "a revolução é inelutável". A intelligentsia dos países de Leste procura actualmente tornar conscientes e formular claramente as razões desta crítica que os operários concretizaram em Berlim Leste, em Varsóvia e em Budapeste – a crítica proletária do poder de classe burocrático. Esta revolta tem profundamente contra si a desvantagem de começar por pôr os problemas reais, bem como a sua solução. Se nos outros países o movimento é possível, mantendo-se no entanto o objectivo mistificado, nas burocracias de Leste a contestação não alimenta ilusões e os seus objectos são conhecidos. Trata-se, para ela, de inventar as formas da sua realização, de abrir o caminho que aí conduz.

Quanto à revolta dos jovens ingleses, esta encontrou a sua primeira expressão organizada no movimento antiatómico. Esta luta parcial, vinculada à volta do vago programa da Comissão dos Cem -que pôde congregar cerca de 300 mil manifestantes-, levou a cabo o seu mais belo gesto na Primavera de 1963 com o escândalo do R.S.G. 6 (2). Uma tal luta não podia senão vir a decair, por falta de perspectivas, recuperada pelos escombros da política tradicional e pelas boas almas pacifistas. O arcaísmo do controlo na vida quotidiana, característico da Inglaterra, não pôde resistir ao assalto do mundo moderno, e a decomposição acelerada dos valores seculares engendra tendências profundamente revolucionárias na crítica de todos os aspectos de modo de vida (3). É necessário que as exigências desta juventude se juntem à resistência duma classe operária que se situa entre as mais combativas do mundo, a dos shop-stewards e das greves selvagens; o êxito das suas lutas só em perspectivas comuns pode ser procurado. O desmoronar da social-democracia no poder constitui apenas uma possibilidade suplementar no sentido de uma tal conjugação. As explosões que um tal encontro ocasionará mostrar-se-ão muito mais temerárias do que tudo quanto se pôde ver em Amsterdão. O motim provotário, perante um tal encontro, não passará de uma brincadeira de crianças. Só daí pode surgir um verdadeiro movimento revolucionário, no qual as necessidades práticas terão encontrado a sua resposta.

O Japão é o único dentre os países industrialmente avançados onde esta fusão da juventude estudantil e dos operários de vanguarda já se realizou. Zengakuren, a famosa organização dos estudantes revolucionários e a Liga dos Jovens Trabalhadores Marxistas, constituem as duas importantes organizações formadas segundo a orientação comum da Liga Comunista Revolucionária . Esta formação põe-se já o problema da organização revolucionária. Simultaneamente, e sem ilusões, combate o capitalismo no Ocidente e a burocracia dos países ditos socialistas. Agrupa já alguns milhares de estudantes e operários organizados numa base democrática e anti-hierárquica, na base da participação de todos os membros em todas as actividades da organização. São deste modo os revolucionários japoneses os primeiros no mundo a levar a cabo desde já grandes lutas organizadas, referindo-se a um programa avançado e com uma larga participação das massas. Incessantemente, milhares de operários e estudantes saem à rua e afrontam violentamente a polícia japonesa. Todavia, a L.C.R., e se bem que os combata firmemente, não explica completa e concretamente os dois sistemas. Procura ainda definir com precisão a exploração burocrática, do mesmo modo que ainda não conseguiu formular explicitamente as características do capitalismo moderno, a critica da vida quotidiana e a crítica do espectáculo. A Liga Comunista Revolucionária, no fundamental, continua a ser uma organização proletária clássica. É presentemente a mais importante formação revolucionária no mundo, e deve constituir, desde já, um dos pólos de discussão e de congregação para a nova crítica proletária no mundo.

1. No sentido de que a juventude se não limita a ressenti-la, procurando exprimi-la.
2. Durante o qual os partidários do movimento antiatómico descobrirm, tornaram público e a seguir invadiram os abrigos antiatómicos u1tra-secretos reservados aos membros do Governo.
3 Estamos a pensar na excelente revista Heatwave, cuja evolucão parece indicar um radicalismo cada vez mais rigoroso. Endereço: Redclife Rd., 13. London SW 10. (Bem entendido, esta e outras indicações semelhantes estão fora de uso. N. do T .).
4. Kaihosha, c/o Dairyulso, 3 Nakanoekimae, Nakanoku, Tóquio, Japão. Zengakuren, Hirota Building 2-10, Kandajimbo cho, Chlyoda-Ku, Tóquio. Japão.

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