4. O expediente do "inocente perseguido".
A seleção de qualidades especiais que o locutor direta ou indiretamente reclama possuir assume significado somente em relação aquelas conspicuamente ausentes. Além de sugerir seus méritos como líder, ele sublinha, por exemplo, sua honestidade e integridade, seguindo assim os velhos padrões da propaganda eleitoral. Entretanto jamais se refere aos recursos particulares de que dispõe para fazer o trabalho mal-definido a que se propõe. Nada é dito de sua formação profissional, perfil político, erudição ou aspecto pessoal que o possa qualificar como líder político. Ao invés, satisfaz-se com vagas referências ao chamado de Deus. A propaganda pessoal e a vaguidade sobre si mesmo configuram um sentido específico. Aparte a possibilidade de calcular a disseminada aversão ao político profissional e talvez a qualquer tipo de especialista, um sentimento baseado na resistência enraizada e inconsciente à divisão do trabalho vigente, Thomas emprega a vaguidade de sua própria imagem como uma câmara de projeção de quaisquer fantasias da audiência. Ele se exibe como uma espécie de quadro vazio, que pode ser preenchido pelas mais contraditórias concepções por parte dos ouvintes. Ele pode ser imaginado por eles como um clérigo humano e benevolente ou um soldado negligente, como um ser humano altamente emocional ou um homem tarimbado na vida prática, como um observador perspicaz que sabe tudo das estórias de bastidores e como uma alma pura que prega no deserto. A vaguidade sobre sua própria personalidade é um meio de integração correlato à vaguidade de seus objetivos políticos. Ambas servem para manter reunidos os diferentes tipos de ouvintes que, quanto menos sabem exatamente quem ele é e o que ele representa, mais cegamente estão dispostos a segui-lo. Determinado abstracionismo, mesclado com umas poucas referências concretas à vida cotidiana, é uma das caraterísticas-padrão do agitador fascista.
Existem, porém, alguns traços específicos que ocorrem repetidas vezes. Em primeiro, a reiteração de sua própria inocência. Ele não é apenas um personagem irretocável e privado de egoísmo. Devido às suas elevadas qualidades morais, ele está sujeito à constante perseguição, às ameaças e conspirações de seus inimigos. Thomas várias vezes chega ao ponto de dizer que ele pode ser envenenado a qualquer momento ou, então, que sua igreja (que, a propósito, é sua propriedade privada) pode ser incendiada. "As pessoas escreverão todo o tipo de coisa. Contra mim elas escrevem tudo. Escrevem que vão me matar" (22/5/35). Outros agitadores fascistas da costa oeste, como [George] A. Phelps, também fazem uso do expediente do inocente perseguido, desenvolvido pelos nazistas. Caracteristicamente, os últimos chamavam sua guarda de elite mais agressiva e da qual os membros da Gestapo são recrutados de SS, Schtzstaffel, isto é, "corpos de proteção". O expediente do inocente perseguido serve a um duplo propósito. Em primeiro lugar, ele permite que se interprete as ameaças ao líder como ameaças a todos e, ainda, que se racionalize a agressividade, convertendo-a em autodefesa. "Ouçam cristãos, vocês se lembram do que eu disse: se eles me perseguirem, vão perseguir vocês" (13/7/35). O exemplo mais saliente desse truque se encontra na desculpa global do hitlerismo, referido como um "mecanismo de auto-defesa" pelo Padre [Charles Edward] Coughlin. Foi tomado de empréstimo da alta política. Desde que César atacou os gauleses semi-selvagens com seu exército altamente treinado e explicou sua guerra de conquista como resultado de medidas de proteção absolutamente necessárias, a agressão militar tem sido chamada de defesa. Afinado intimamente com todos os padrões de conduta imperialistas, o fascismo foi o primeiro a adaptar esse expediente aos objetivos da política interna e até mesmo à construção ideológica destinada à ação individual. Há, porém, uma profunda implicação psicológica neste mecanismo. Espera-se que sirva de estímulo para a violência, não que seja levado a sério.
A psicanálise mostrou como as tendências sádicas e agressivas, para as quais apela a propaganda fascista, não diferenciam claramente entre vítima e agressor: psicologicamente, ambas as noções são, até certo ponto, intercambiáveis, dado que ambas remontam a uma fase de desenvolvimento em que a distinção entre sujeito e objeto, ego e mundo exterior, ainda não está claramente estabelecida. Esta ambivalência é evidenciada ainda mais observando o amplo apelo que tem o conceito de auto-sacrifício na propaganda fascista. Em última análise, a conversibilidade dos conceitos torna possível culpar a vítima em foco pelo crime que se deseja cometer. Através da projeção inconsciente, faz-se com que eventos que existem apenas na imaginação se tornem reais. O exemplo mais eloqüente desse mecanismo é, claro, o incêndio do Reichstag. Na Alemanha, o expediente do inocente perseguido sempre foi usado com certo cinismo e, como tal, foi recebido pela sociedade. Por exemplo, podemos citar a satisfação com as inumeráveis piadas do tipo "mascate judeu morde cão de pastoreio ariano". É bastante provável que o mesmo expediente esteja sendo aplicado do mesmo modo no cenário americano.