A actualidade das reflexões de Maurício Tragtenberg em Administração, Poder e Ideologia

 

A actualidade das reflexões de Maurício Tragtenberg em Administração, Poder e Ideologia (São Paulo: UNESP, 2005).

A terceira edição de Administração, Poder e Ideologia, agora publicada – as outras datam de 1980 e 1989 – integra-se numa colecção coordenada por Evaldo Vieira e dedicada à obra de Maurício Tragtenberg. Os ensinamentos e a actividade de Maurício Tragtenberg foram cruciais para a formação na esquerda brasileira de uma corrente anticapitalista, igualmente oposta às empresas privadas e às burocracias estatais, partidárias e sindicais de qualquer cor política. Ficará talvez desanimado quem folhear rapidamente Administração, Poder e Ideologia, procurando inteirar-se do assunto pela leitura de parágrafos dispersos. Se Maurício nunca se preocupou com a forma literária, o descuido é sobretudo visível neste livro, em onde a expressão ficou muitas vezes reduzida a um mero esquema, com passagens abruptas e hiatos no raciocínio. Mas valerá a pena para o leitor superar a escrita apressada de Maurício e concentrar-se na enorme riqueza das ideias.

Evocando os ensinamentos de Adolf Berle, Maurício Tragtenberg chamou a atenção para a capacidade de os administradores das grandes empresas influenciarem directamente o poder político. Tratava-se do prolongamento lógico da separação entre a propriedade detida pelos accionistas e o controlo exercido pelos principais administadores, e apesar de Berle ser geralmente considerado o pioneiro no estudo desta questão, Maurício recordou a precedência de Walther Rathenau na análise da transformação da propriedade privada em propriedade impessoal e na obtenção de um papel político pelas grandes empresas. Aliás, Maurício é autor de um estudo sobre as ideias de Rathenau, que decerto não será esquecido na colecção da Unesp. Os marxistas, especialmente Lenin, interpretaram como uma antecipação do socialismo a organização capitalista da economia promovida pelo estado-maior alemão durante a primeira guerra mundial. Na realidade foi uma antecipação do capitalismo de Estado, tal como a Rússia soviética o começou a aplicar ao longo de 1918 e até ao final, e tal como se desenvolveu em formas mitigadas no resto do mundo. Homem de negócios e ideólogo, além de figura política, Rathenau esteve no centro da experiência inovadora alemã, e a análise das suas concepções permitiu a Maurício Tragtenberg interpretar esta linha de evolução das grandes empresas não como uma antecipação do socialismo mas como um desenvolvimento do capitalismo. «À medida que se desenvolve, a grande corporação tende cada vez mais a ser propriedade de um grupo que age em conformidade com os critérios capitalistas de racionalidade. Como resultado final, temos uma sociedade de grandes corporações, cujo controle está em mãos de uma oligarquia fechada que se autopromove e se auto-reproduz» [pág. 14]. Escritas há vinte e cinco anos, estas linhas retratam profeticamente a situação actual e mostram aos distraídos que a globalização, em vez de ser uma perversidade da história, é uma fase lógica do processo de desenvolvimento inerente ao capitalismo.

Usada por Maurício Tragtenberg também para a análise do socialismo, esta problemática permitiu-lhe proceder à crítica dos regimes de tipo soviético, onde a burocracia assumira o mesmo papel que Berle havia definido para os administradores nas grandes empresas norte-americanas. Vemos, assim, que o socialismo heterodoxo de Maurício tinha raízes muito profundas e ramificadas.

Mas Administração, Poder e Ideologia não se limita a analisar o poder exercido pelas grandes empresas sobre a sociedade em geral, e encontramos no livro estudos abundantemente documentados acerca do modo como no taylorismo e no fordismo níveis salariais relativamente elevados pressupunham condições de trabalho degradantes e ritmos infernais. «Observa-se um fato no capitalismo desenvolvido: a mais valia-relativa não substitui a mais-valia absoluta. Se, de um lado, opera-se a redução da jornada de trabalho, de outro, ela foi intensificada» [pág. 165]. Todavia, a percepção de que o desenvolvimento da mais-valia relativa tem sido sempre acompanhado por novas modalidades de mais-valia absoluta não levou Maurício Tragtenberg a descurar os problemas específicos da mais-valia relativa, e este é um dos aspectos interessantes do livro. Prolongando as análises de Peter Drucker a respeito das relações entre administradores e trabalhadores no interior das empresas e levando até às últimas consequências as pretensões da escola das relações humanas, Maurício pôde insistir já em 1980, antes de estar generalizado o toyotismo, na capacidade de os empresários recuperarem os anseios dos trabalhadores. Foi sem dúvida necessária uma grande argúcia, e para um autor de extrema-esquerda necessária igualmente a capacidade de romper com dogmas ainda poderosos, para detectar naquela época que «empresa é também aparelho ideológico» [pág. 37].

Maurício Tragtenberg mostrou que a escola das relações humanas, tal como fora desenvolvida por Elton Mayo, surgira em virtude dos problemas criados pelo taylorismo e pelo fordismo, e nesta medida Maurício pôde antecipar as correntes de gestão actuais. «[…] os executivos europeus utilizam conceitos criados pelos novos eventos: diálogo, participação. Isso, para a mão-de-obra, não passa de mais um recurso para arrancar maior produtividade» [pág. 28]. Se, como Maurício salientou, nas décadas de 1920 e 1930 «“relações humanas” surgiu e se desenvolveu como reacção ao sindicalismo operário norte-americano» [pág. 32], também é pertinente observar que o toyotismo constituiu a resposta patronal às grandes vagas de lutas dos trabalhadores nas décadas de 1960 e de 1970, ocorridas fora dos sindicatos, cuja burocratização fora acelerada, entre outros factores, precisamente pela escola das relações humanas. Maurício Tragtenberg resumiu em poucas palavras a bem conhecida situação nos Estados Unidos, escrevendo que «as grandes empresas e os sindicatos desenvolveram uma divisão de trabalho: as empresas preocupam-se com as máquinas, os sindicatos preocupam-se com a mão-de-obra» [pág. 126]. Esta «divisão de trabalho», que sob uma ou outra forma se reproduzira em todo o mundo, fez com que as lutas mais radicais surgissem ou se expandissem exteriormente aos sindicatos, e Maurício dedicou duas dezenas de páginas ao movimento espontâneo de greves ocorrido no final da década de 1960 e no começo da década seguinte nos Estados Unidos e em vários países europeus. O quadro de análise proposto em Administração, Poder e Ideologia permite interpretar o toyotismo como a resposta patronal aos movimentos de contestação operária que, ao porem em causa a legitimidade dos sindicatos burocratizados, ameaçaram seriamente os fundamentos sociais do fordismo. «[…] as greves selvagens mostraram o que havia de mitológico na tal integração da classe operária no capitalismo» [pág. 228]. Numa lúcida antecipação, depois de concluir que as greves espontâneas das décadas de 1960 e 1970 «são movimentos da base para o “topo”, reacções contra as negociações colectivas conduzidas pela burocracia sindical, reivindicação de participação real e não simbólica», Maurício observou que «pesquisas recentes mostram um grande potencial inexplorado para assumir responsabilidades e planejar o trabalho». Ele comentou em seguida que «isso não parece corroborado pelas direções patronais que, na sua maioria, opõem-se à participação operária» [pág. 148]. Todavia, já então os gestores mais argutos buscavam formas de aproveitar aquele «grande potencial inexplorado para assumir responsabilidades e planejar o trabalho», e esta preocupação ditou o reconhecimento de que o fordismo podia ser substituído por métodos de exploração mais eficazes. Como Luc Boltanski e Ève Chiapello mostraram em Le Nouvel Esprit du Capitalisme, ([Paris]: Gallimard, 1999), num estudo muitíssimo detalhado do caso francês, o toyotismo recuperou e reformulou em termos capitalistas os temas lançados pelas lutas espontâneas e autogestionárias das décadas de 1960 e 1970, da mesma maneira que, várias décadas antes, os discípulos da escola de relações humanas haviam recuperado e reformulado certos temas do antigo sindicalismo radical.

Se o critério por que se deve aferir o mérito de um livro é o de ultrapassar a época em que foi escrito, esta obra de Maurício Tragtenberg satisfaz plenamente tal exigência. Aqueles que leram atentamente Administração, Poder e Ideologia ou que ouviram Maurício glosar em aulas e conversas particulares os temas do livro ficaram preparados para entender desde início as funções do toyotismo enquanto reorganização do processo de exploração.

Nesta perspectiva, depois de mencionar o predomínio dos livros de auto-ajuda no interior das bibliotecas de empresa e a proliferação dos psicológos de empresa, Maurício escreveu: «Trata-se de uma nova casta que aparece: psicocratas e tecnofrenos. Manipulado, angustiado, inculpado, o indivíduo hoje se caracteriza por uma grande apatia política. […] toda preocupação do poder é fragmentar as classes sociais em indivíduos. É o triunfo do psicológico sobre o político deliberadamente ocultado. Trata-se da regressão do político ao psíquico». Um quarto de século depois de estas linhas terem sido publicadas pela primeira vez, tal situação não caracteriza já apenas o interior das grandes empresas mas a sociedade em geral. O que entretanto ocorreu foi a expansão de certas técnicas de organização e de controlo da força de trabalho, convertidas em técnicas de governo da própria sociedade. E Maurício Tragtenberg logo em seguida indicou a conclusão, hoje mais actual do que nunca: «O indivíduo só pode recuperar o seu poder social, apreender a dimensão do político e influenciar a sociedade no interior de sua classe social. […] A regressão do político ao psíquico se dá quando a luta de classes não se pode aprofundar» [págs. 38-39, subs. orig.].

As primeiras cinquenta e cinco páginas de Administração, Poder e Ideologia fundamentam a crítica à co-gestão alemã e às experiências similares na Bélgica e em França, descritas com detalhe nas sessenta e cinco páginas seguintes. Pode lamentar-se que Maurício Tragtenberg tivesse optado por proceder a um longo enunciado de legislação, para só depois o comentar de maneira crítica, e é talvez aqui que mais se notam os inconvenients de uma redacção apressada. Mas o leitor que não desanime com a aridez formal das leis acabará por ser recompensado pela maneira como Maurício aplicou a este estudo prático as lições de carácter geral que formulara a respeito da escola de relações humanas. «[…] comparada à direção patronal de “direito divino”, a participação ou co-gestão aparece como algo renovador. Contudo, a legalização dos conselhos de empresa ou sua seção sindical, o direito de reunir-se regularmente na mesma não são suficientes para garantir uma espécie de “dualidade de poder” na empresa. […] A co-gestão não altera o poder dos grupos financeiros que dominam as empresas industriais […] A preocupação da co-gestão é: garantir a paz social, a harmonia social e a mutação da sociedade através da empresa» [págs. 109-110]. E, mais vigorosamente: «A co-gestão na empresa apareceu, em sua clareza, como a integração do sindicalismo no Estado burguês» [pág. 228]. A propósito do participacionismo em França, Maurício indicou que «a “associação capital e trabalho” mascara a exploração do trabalho pelo capital e tem por fim encerrar os assalariados no horizonte da empresa, pondo-os em concorrência uns com outros, para maior proveito da classe capitalista em seu conjunto», e acrescentou que «o assalariado, a pretexto de “participar”, intensifica sua própria exploração» [págs. 106-107]. A leitura de Administração, Poder e Ideologia permite entender claramente o nexo lógico entre o Estado de bem-estar social assente no fordismo e o paternalismo toyotista assente no neoliberalismo. «A impossibilidade de uma gestão real dos meios de produção pela mão-de-obra significa, na prática, um reforço ao modo capitalista de produção» [pág. 110].

Quer no quadro das decisões governamentais e do relacionamento entre os sindicatos e as administrações de empresa quer no quadro de uma organização interna das empresas e através do relacionamento directo entre os departamentos de pessoal e os trabalhadores, a participação de representantes dos trabalhadores em certos níveis da hierarquia administrativa das empresas, afastados das decisões estratégicas importantes, só se pode entender no contexto de uma grande atomização da vida política e de uma profunda burocratização do movimento sindical ou de um forte recuo das lutas dos trabalhadores. Tanto as modalidades de co-gestão analisadas por Maurício Tragtenberg como os círculos de controlo da qualidade e outras inovações difundidas pelo toyotismo implicam um procedimento do mesmo tipo da democracia representativa – por oposição à democracia directa, com revocabilidade permanente e rotatividade nos cargos – e em alguns dos seus outros livros, além de múltiplos artigos e inúmeras intervenções pessoais, Maurício denunciou as armadilhas e os paradoxos da delegação de poder contidos na democracia representativa. Esta relação estreita entre a crítica ao Estado e a crítica à empresa é uma das principais, e mais actuais, lições do conjunto da obra de Maurício Tragtenberg. Ainda neste livro Maurício uniu as duas vertentes, quando sublinhou que «no período do capitalismo monopolista de Estado, tanto na empresa quanto no Estado, a burguesia reforça o carácter autoritário do Estado, de um lado; de outro, intensifica a pressão ideológica mediante “panacéias” administrativas que se constituem em pseudogestão e pseudoparticipação» [pág. 111].

Maurício Tragtenberg mostrou também que esse processo ocorria independentemente do lado em que os seus promotores se situavam durante a guerra fria e quer invocassem ideologias de direita como de esquerda. «[…] o Estado coordenador, normalizador e planificador central dos desejos sociais não é um simples instrumento neutro […]; tanto a classe dominante como outra máquina burocrática, o Partido Bolchevique, podem dominá-lo para gerir a sociedade e instaurar sua dominação. Tomar o poder central é fazê-lo perpetuar-se, fazê-lo funcionar, não fazê-lo desaparecer. Integrar-se ao poder capitalista, como o fazem os sindicatos de direita e esquerda, mesmo “operários”, […] não permite, de forma alguma, modificar ou reorientar o poder num sentido “socialista”. Onde conquistaram o aparelho de Estado, os partidos ditos “comunistas”, longe de abolir a organização salarial e patriarcal do capital, consolidaram-na, racionalizaram-na, reproduziram-na ao infinito, em todas as áreas» [págs. 130-131]. Maurício deixou bem claro que as formas autoritárias de gestão das empresas e de organização da sociedade caracterizavam todo o capitalismo e constituíam o elemento fundamental comum tanto ao capitalismo privado que é hoje hegemónico como ao capitalismo de Estado que prevalecia no antigo bloco soviético. «Em nossa opinião, não se trata de mudar as peças do jogo, mas o próprio jogo» [pág. 140].

Esta nova leitura de Administração, Poder e Ideologia levou-me a recordar a influência exercida por Mário Pedrosa sobre Maurício Tragtenberg. Embora não se encontre evocada no texto nem mencionada na bibliografia, é perceptível que a obra genial de Mário Pedrosa, A Opção Imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), inspirou algumas das teses e alguns dos pontos de vista deste livro de Maurício. Quando classifico de genial A Opção Imperialista não me estou a deixar levar por entusiasmos e meço as palavras, pois trata-se de um livro que se deve colocar no mesmo plano que, por exemplo, a obra de Sweezy para o entendimento dos mecanismos do capitalismo na segunda metade do século XX. É indispensável passar da análise isolada de obras ou de autores para o estudo das relações profundas – nem sempre evidentes – entre os marcos culturais mais significativos, que aliás não são forçosamente os mais divulgados. Talvez um dia a historiografia do pensamento no Brasil alcance a altura atingida por alguns dos pensadores brasileiros.

 

João Bernardo

[Publicado em Margem Esquerda, nº 7, Maio de 2006]

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SOMOS TODOS GRUPELHOS – Felix Guattari

SOMOS TODOS GRUPELHOS – Felix Guattari*

Análise da conjuntura libertária pós-68   

 Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desen­volvimento das ciências. 

Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças. 

Para nós, nos países "ricos", as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa in­terzona pequeno‑burguesa para atenuar o quanto for possível os con­tornos de classe. A própria classe operária está profundamente infil­trada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos trai­dores, social‑democratas ou revisionistas… Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Pri­meiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetiva­mente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. De­pois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalha­dores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da bur­guesia ‑ maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva). 

Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do "socialismo" burocrático são corroídas por uma an­gustia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto­sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um anta­gonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém‑se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement. 

O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto… Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então "a criança não vai muito bem na escola", ou ainda "os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras"; as doenças, os casa­mentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento… 

Assim, tornou‑se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os mili­tantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica "que poderia ser bem melhor". A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de pro­dução; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas resi­duais e "normalizadas", o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de "acidentes de trabalho" que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes? 

O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retocá‑las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém‑chegados ‑ à parte alguns porra‑loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados ‑, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus pro­gramas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo ‑ note‑se o falismo‑ ‑ para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas "organizações". 

A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá‑la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente.

De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização anti­autoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superati­vos, se eles se comportarn com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afir­mar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins polí­ticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua ener­gia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se autoconsome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos! A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica ‑ a libido ‑ em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos inte­ressados; é o princípio da "causa justa", que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor – "pela boa causa" ‑ caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacri­ficiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata‑se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução ‑ e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes mono­maníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da "base", enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local… A gente não se enchia tanto em Maio de 68!

Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os "porta‑vozes" disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá‑la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo. 

O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquer­dismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucum­bir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o "partido de Maurice Thorez" ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer. 

Cada qual com seu congressinho anual, seu mini‑Comitê Central, seu super‑birô político, seu secretariado e seu secretário‑ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.). 

Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolu­cionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam. 

Ah, então trata‑se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado‑maior… Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem. 

O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artifi­ciais, cornunas?… O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, ete. Num grupo de base, pode‑se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua fini­tude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam cau­cionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré‑requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária. 

Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados. 

Felix Guattari (1930 – 1992) 

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NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao "grupelho" no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 – anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC,perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela "doença infantil do comunismo", justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. "Somos todos grupelhos": a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. "Saúde infantil" do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua "doença senil". Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de "doença senil".A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de "grupo sujeito", contraposto a "grupo sujeitado" (cf. nota 7 de "A Transversalidade"), à idéia de "agenciamento coletivo de enunciação" e, na década de 70, ao conceito de "molecular", contraposto a "molar". (N. do Trad.).

2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se "interesse" pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).

3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por "fantasia", de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo "phantasia", sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.). 

http://sabotagem.revolt.org/node/208

 

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Socialismo ou Estatismo

Rudolf Rocker 

SOCIALISMO OU ESTATISMO?
Maurício Tragtenberg

 


A reedição da obra de Rudolf Rocker, velho militante libertário alemão na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil, se constitui em tema de primeira importância. R. Rocker coloca em discussão os grandes temas do socialismo mundial: a relação Partido e classe operária, as relações do socialismo com o Estado seja ele “burguês” ou “proletário” e a viabilidade de um projeto socialista não burocrático e autoritário.

Mostra ele, se não quisermos o facismo nem a social democracia nem a burocracia autoritária stalinista ou não, temos que nos bater contra a “direita” e ao mesmo tempo contra a exploração do trabalho pelo capital, procurando alterar as forças no interior da “esquerda” introduzindo ali a luta contra a divisão de trabalho, contra a hierarquia e as relações autoritárias. Eis que os clássicos “partidos de esquerda” reduzem a revolução social a formas consagradas, a cerimônias onde o Partido torna-se seu próprio fim possibilitando a pessoas que gostariam de transformar sua vida, e não podem fazê-lo, interiorizar essa transformação no simples fato de “pertencerem” ao Partido.

O conceito de “partido histórico” surge dessa prática, o partido perdeu sua marca revolucionária, transformou-se numa “instituição” onde sua história foi reabsorvida. Ele é uma instituição que se dirige a indivíduos abstratos e atomizados, enquanto uma verdadeira praxis só pode surgir a partir de movimentos coletivos concretos. Daí a necessidade de desenvolver nas pessoas o espírito de crítica a qualquer “ordem” e não o respeito de uma “ordem” pretensamente revolucionária. Para Rocker a liberdade para todos implica na sua própria liberdade, daí a história da classe operária revelar certa consciência da liberdade, pois, se os homens fossem semelhantes a coisas as lutas revolucionárias perderiam qualquer sentido. Rocker entende a revolução como o acesso dos homens à liberdade, porém além dos limites do liberalismo clássico, define que se é livre entre iguais, a liberdade tem a igualdade como fundamento.

R. Rocker faz a crítica do “planismo de Estado” travestido de “socialista” onde partidos hierárquicos burocráticos e centralizados produzem estruturas burocráticas, hierárquicas e centralizadas também. Perpetuam a separação entre “pensar” e “fazer” muitos fazem e poucos pensam, reproduzem a separação entre “dirigentes” e dirigidos. No vasto movimento da classe operária internacional todos são militantes, isso é que é fundamental reter.

Especialmente significativo é o seu capítulo “Socialismo e Estado” onde discute os temas cruciais do “socialismo burocrático” colocado teoricamente em xeque pelos socialistas libertários do século passado como Proudhon e Bakunin, por marxistas como Gramsci no seu primeiro período, por Penekoek, teórico dos “conselhos operários”, e praticamente contestado pelo gigantesco movimento de trabalhadores na Polônia em torno do sindicato “Solidariedade”.

No capítulo anteriormente citado, Rocker discute a espinhosa questão do “Estado de transição”, iniciando por uma crítica ao “socialismo de Estado” de Louis Blanc e Lassalle que pretendiam utilizar o Estado burguês para acelerar a mudança social, pretensão essa retomada pelos partidos social democráticos da IIa. Internacional e pelo “euro comunismo”, uma social democracia “recuperada”.

Não deixa também Rocker de criticar a tese do “Estado transitório” ou o conceito de “Ditadura do Proletariado” como fase transitória do capitalismo ao socialismo. Pois, em Marx não se observa uma linearidade a respeito do tema do “desaparecimento do Estado”, pois há diferenças de posição a respeito em textos como “O Manifesto do Partido Comunista” e “A Guerra Civil em França”. Embora não desapareçam todas as ambigüidades, a constante da análise de Marx reside na noção do “debilitamento paulatino” do Estado Operário a partir de sua constituição. É mister esclarecer que o conceito de “ditadura do proletariado” é de Blanqui e foi desenvolvido por Lenin num sentido mais blanquista que marxista, como notou Rosa Luxembourg em “A Revolução Russa”. Embora Marx tenha utilizado o conceito “ditadura do proletariado” na Crítica ao Programa de Gotha, o fez raramente depois. Entre a definição marxista e a leninista do conceito há uma diferença básica: Marx caracteriza como “ditadura do proletariado” uma forma de sociedade, enquanto Lenin caracteriza-a como uma forma de governo.

A 30 de maio de 1871, Marx em “A Guerra Civil em França” adota a tese de “ditadura do proletariado” igual a governo comunal autogestionário que Engels, na sua Introdução à edição alemã de 1891, aponta a Comuna de Paris “como exemplo típico de ditadura do proletariado”. Isso significa uma revisão total das idéias a respeito expostas no “Manifesto do Partido Comunista” em 1848: Na realidade Marx oscila entre o estatismo e o anti-estatismo. Isso se deveu ao fato de ter sofrido influência jacobina no sentido do estatismo e de Proudhon no sentido anti-estatista, daí suas posturas libertárias rechaçando o “socialismo de Estado” de Louis Blanc e Lassalle.

Outro ponto a enfatizar na atitude do socialismo libertário enquanto prática e teoria política é sua defesa do operário não especializado, vendo no “especializado” o germe de uma futura “aristocracia operária”, já criticada por Marx no século XIX e Lenin no século XX que se constitui em suporte da política social-democrática e sindical burocrática na Europa.

Por outro lado, é saudável a atitude crítica do socialismo libertário ante a hegemonia dos intelectuais nos chamados partidos “proletários”, eis que, os mesmos, na sua maioria de origem burguesa ou pequeno burguesa tendem a levar ao movimento operário seus vícios de formação classista, dominando os Comitês Centrais desses partidos e ao tomar o poder de Estado planejam “para” o proletariado “sem” o proletariado. A hegemonia da intelectualidade pequeno burguesa na sua maioria autoritária, carreirista e ávida de poder se realiza através dos partidos autoritários de “esquerda” com a legitimidade conferida pela teoria da “vanguarda” elaborada por Kautsky e retomada por Lenin segundo a qual eles como portadores da “ciência” levam ao proletariado por mediação do partido “a consciência política”, pois o operário deixado a si mesmo só chegaria a um nível de consciência econômica, argumentam Kautsky e Lenin. Na prática o que se deu é que a camada intelectual enraizada no Partido Único no leste europeu e na URSS tendem a se transformar numa burocracia autoritária com privilégios e imunidades ante a classe operária, cuja contestação é dada pelos trabalhadores hoje na Polônia. Sua ação em torno do sindicato “Solidariedade” se constitui num saudável exercício de política operária oposta ao chamado “socialismo burocrático” estatista.

Em suma, a obra de R. Rocker é fundamental na medida em que mostra a possibilidade de uma prática socialista que deriva das bases – por exemplo, os conselhos de fábrica – que atuam não só como contestação ao modo de produção capitalista, mas também como agentes de um novo modo de produção qualitativamente distinto do capitalista. A negação dessa prática de “Comissões de Fábrica” como elemento fundante de uma nova estrutura produtiva somente levou às formas de “socialismo de Estado” onde relações capitalistas de produção regidas pela lei do valor continuam sob roupagem nova. É isso que cabe desmistificar, daí a atualidade do presente livro em boa hora reeditado.

 

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O Brasão da Universidade de São Paulo

O Brasão da Universidade de São Paulo  

            Quando se começou a construir a torre da praça do relógio, tudo estava muito em ordem; e talvez a ordem fosse excessiva; pensava-se demais em indicadores de caminhos, intérpretes; alojamentos para trabalhadores e rotas de enlace, como se se dispusesse de séculos e outras tantas probabilidades de trabalhar livremente. A opinião então reinante chegava até a estabelecer que toda lentidão para construir seria pouca; não era preciso exagerar muito esta opinião para retroceder ante a própria idéia de pôr as bases. Argumentava-se deste modo: em todas as empresas ganhadoras da licitação, o positivo é a idéia de construir uma torre que chegue ao céu e se veja de toda parte.

            Diante desta idéia o resto é acessório. Uma vez captado o pensamento em toda sua grandeza, não pode desaparecer já: enquanto existem os homens, perdurará o desejo intenso de terminar a construção da torre com seu relógio. Neste sentido não há o que temer pelo futuro, pois antes do mais, o saber da humanidade vai em aumento, a arte da construção fez progressos e fará ainda outros novos; um trabalho para o qual necessitamos ainda um ano, será realizado dentro de um século, talvez em apenas seis meses e, por acrescentamento, melhor e mais duradouramente.

            Por que esgotar-se, pois, desde já até o limite das forças? Isso teria sentido se fosse possível esperar que a torre fosse construída num lapso de uma geração.

            Isto, contudo, de nenhum modo era dado acreditá-lo. Pois bem, poderia pensar-se que a próxima geração, com seus mais amplo saber, haveria de achar mau o trabalho da geração precedente e que teria de demolir o construído para tornar a começar. Pensamentos deste gênero paralisavam as forças, e a edificação da universidade a partir da perspectiva de suas categorias componentes deslocava a construção da torre.

            Cada grupo regional queria possuir o bairro mais formoso, pelo que sobrevieram regras que redundaram em sangrentos combates. Estas lutas eram incessantes; o que serviu de argumento aos burocratas para que, por falta da necessária concentração, a torre fosse erguida muito lentamente, ou, melhor ainda, apenas ao fim de estipulada uma paz geral. Mas não se perdeu tempo tão somente em combates, pois durante as tréguas se embelezou a universidade, o que deu origem a novas invejas e novas lutas. Assim transcorreu o lapso da primeira geração, mas nenhuma das que seguiram foi diferente; apenas a destreza ia em aumento constante e, com ela, a sede de luta. A isso veio somar-se que a segunda ou terceira geração reconheceram a insensatez da construção da torre, mas os vínculos mútuos eram já demasiado fortes como para que se pudesse deixar o campus. Tudo quanto está entroncado com a lenda e a canção que surgisse na universidade está cheio da nostalgia para o anunciado dia no qual o campus seria aniquilado por cinco breves golpes de espada sucessivamente descarregados sobre ela por um punho gigantesco segurando uma espada. Por isso tem a universidade no brasão um santo num trono que nos incita a rezar e dois outros brasões, um com um punho, outro com uma espada.

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Fábula Curta sobre a USP

Fábula Curta

"Ai de mim!", disse o menino da São Remo, – "o mundo vai ficando dia a dia mais estreito". – "Outrora, tão grande era que ganhei medo e corri, corri até que finalmente fiquei contente por ver aparecerem muros de ambos os lados do horizonte, mas estes altos muros correm tão rapidamente um ao encontro do outro que eis-me já no fim do percurso, vendo ao fundo a guarda universitária que irá me bater". "– Mas o que tens a fazer é mudar de direção", disse o estudante, jogando-lhe uma pedra.

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Dos Militantes

 Dos Militantes* 

            Muitos se queixam de que as palavras dos sábios, aqueles velhos militantes que mandam em seus partidos, não passam de símiles das posições de outros sábios maiores empenhados em tornar estes sábios, sábios parlamentares, mas cujas grandes palavras de ordem não são utilizáveis na vida cotidiana envolta em pequenos afazeres acadêmicos  – e esta é a única que temos. Quando o sábio militante diz: "Vamos para lá companheiros a caminho da revolução", ele não quer significar que se deva passar para o lado de lá da luta de classes, o que sempre seria possível se a meta do caminho assim o justificasse; ele, no entanto, se refere a alguma outra revolução distante, algo que nós não conhecemos com precisão, como entre a via Bolivariana ou entre os detalhes da gloriosa Revolução Russa, como outrora era o caminho Iugoslavo e o SOREX, ou então, ainda, algo que nem ele consegue designar com mais precisão e que, também neste caso, não pode nos ajudar em nada. Todas as falas desses militantes são alegorias (ou símiles umas das outras e de outras coisas), na realidade, querem apenas dizer que a revolução é a revolução, e isso nós já sabíamos. Porém aquilo com que nos ocupamos todos os dias são outras coisas. 

    A esse respeito alguém disse: "Por que vocês se defendem? Se seguissem os militantes, teriam também se tornado militantes e com isso seriam livres dos esforços e da opressão do dia-a-dia".

    Um outro disse: "Aposto que este também é um militante".

    O primeiro disse: "Você ganhou".

    O segundo disse: "Mas infelizmente, só na militância".

    O primeiro disse: "Não, na realidade; na militância você perdeu".

Publicado Inicialmente em: http://brasil.indymedia.org/es/red/2008/03/414506.shtml

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Pedido de Esclarecimento de Metáfora a Franz Kafka

Pedido de Esclarecimento de Metáfora Caro Sr. Franz Kafka

            Gostaria de manifestar o pedido de esclarecimento de metáfora, pois segundo fui informado, teria problemas com a seguinte parábola enviada sobre nossos militantes de partido, acredito que o senhor tenha se referido a eles como símiles, já outros, como alegorias. Ambos tem sentido diferente, pois de um lado dizem respeito à relação do jovem de partido com a imitação uns dos outros e ao fato de se referirem a outras coisas externas utilizando outras palavras.

            Neste sentido, quando alguém fala “revolução”, diz respeito a uma acirrada disputa eleitoral por um espaço político constrito por um determinado período de tempo, propiciando, com este recurso, ser visto como outro e os outros como se fossem parte deste espaço. Funciona ao mesmo tempo como um telescópio e um letreiro de néon. Por outro lado, também ouvimos sobre a “luta de classes”, que segundo pudemos constatar, representa a luta entre os diversos partidos estudantis e os demais estudantes egressos de distintas classes sociais que possam ter interesses não eleitorais.

            Optamos por chamá-los militantes, vocábulo que talvez não conheça, por aversão à proximidade do termo com a palavra militar e seu poder irresistível sobre os civis. Em seu período, os filólogos acreditavam que militante vinha de militar, a partir da estranha transformação de um substantivo em verbo, deste modo, militar no sentido de que alguém milite, referia-se ao fato de um grupo social que age como um milico. Hoje esta teoria está descartada e sabemos que não se age politicamente apenas em uma entidade que obrigue as ações humanas a mimetizar as organizações mais autoritárias da sociedade, mas isto somente porque aprendemos a fugir tão prontamente avistemos sua sombra.

            O fato de que, ao nos movermos, isto poder significar um gesto contra a revolução e a esperança de alterar o quadro terrível de autoritarismo e destruição que por aqui encontramos também nos enche de vergonha. Entre o medo e a vergonha, ficamos atônitos. Achava que havia uma saída deste impasse, pois alguns companheiros se sentiam temerosos da necessidade constante de demonstração de força que obriga pôr-se em movimento em meio a tudo isso, pois o sinal de qualquer gesto, por menor que seja, é encarado como se estivéssemos inseridos na mesma disputa alegórica que os partidos, quanto para alguns de nós, revolução e luta de classes significaria outra coisa. 

            Se puder nos esclarecer sobre esta metáfora ficaria grato dado o fato de que ela pode nos trazer problemas e inimizades.      

 

 Grato pela atenção lembrando que abaixo segue o texto com correções

 

Douglas A.      

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A Abutre

 A abutre 

Parábola sobre o método de assistência social da Universidade de São Paulo baseada em fatos reais. 

Era uma assistente social que depois de cuidar do meu caso bicava meus pés. Ela já havia estraçalhado botas e agora bicava os pés propriamente. Toda vez que atacava, voava várias vezes ao meu redor, inquieta, e depois prosseguia o trabalho. Uma vez me visitou no Crusp, em meu minúsculo apartamento ao lado do bandejão, um colega de curso que também era militante da ala jovem de nosso pequeno partido, olhou um pouquinho e perguntou então por que eu tolerava os ataques da assistente social. -Estou indefeso – eu disse. – Ela chegou e começou a bicar, naturalmente, eu quis afastá-la da minha vida, tentei até um recurso em instâncias superiores, mas uma funcionária dessas tem muita força política, ela também queria me jogar para fora deixando-me sem auxílio alimentação, aí eu preferi humilhar-me sacrificando-lhe os pés. Agora eles estão quase despedaçados e mais, segundo ela, tudo o que eu tinha era um favor dado aos obedientes desfavorecidos por parte de nossa poderosa Reitoria. – Imagine, deixar-se torturar dessa maneira! – disse o militante jovem . – Basta um "Ato", uma pequena manifestação e a assistente está liquidada politicamente. – É mesmo? – perguntei. – E você e o seu partido podem cuidar disso? – Com prazer – disse ele -, só preciso ir para casa pegar meu megafone e chamar os companheiros. Você pode esperar mais meia hora? – Isso eu não sei – disse e fiquei em pé um momento, paralisado de medo e tristreza, pois era a segunda vez que sofria de depressão. Depois falei: – De qualquer modo tente, por favor. – Muito bem – disse o militante. – Vou me apressar. Durante a conversa a assistente ficou sabendo através do porteiro que era um dos seus colaboradores, ao me avistar, saiu do COSEAS e deixou o olhar perambular entre mim e aquele militante. Agora eu via que ela tinha entendido tudo: levantou vôo, fez a curva da volta bem longe para ganhar ímpeto suficiente e depois, como um lançador de dardos, arremessou até o fundo de mim o bico pela minha boca. Ao cair para trás senti, liberto das necessidades e dos seus favores impiedosos, como ela se afogava sem salvação no meu sangue, que enchia todas as profundezas e inundava todas as margens.

*Publicado inicialmente em:  http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/03/414322.shtml

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O Poderoso Professor Doutor Leônidas Posêidon

O Poderoso Professor Doutor Leônidas Posêidon* 

            O Prof. Dr. Leônidas Posêidon estava sentado à sua escrivaninha e fazia contas. A administração de todas as pesquisas do projeto temático águas pago por agências financiadoras, além das disciplinas de pós, palestras, consultorias, da Fundação Hydros, dos encargos burocráticos e administrativos da Universidade, além de entrevistas lhe dava um trabalho interminável. Poderia ter quantos auxiliares e bolsistas quisesse, possuía muitos, aliás; mas, uma vez que levava muito a sério seu ofício, revia mais uma vez tudo e sendo assim os auxiliares o ajudavam somente a preencher infindáveis relatórios CAPES e CNPq e os bolsistas fugiam de sua alçada com seus interesses diminutos. Não se pode dizer que o trabalho o alegrasse; na verdade ele o realizava só porque lhe fora imposto; já havia solicitado muitas vezes tarefas mais prazerosas, conforme se expressava; mas, sempre que lhe faziam propostas diferentes, era manifesto que nada o agradava tanto quanto o cargo que até então ocupara. Era muito difícil, além disso, encontrar outra coisa para ele. Com efeito, era-lhe impossível atribuir-lhe algo como um determinado tema ou subprojeto; sem mencionar que, neste caso, o trabalho de calcular não seria apenas maior, mas também mesquinho, o grande Prof. Dr. Leônidas Posêidon só podia receber um posto em que fosse dominante, no mínimo, coordenador. E, se lhe ofereciam um ofício fora do tema água, sentia-se mal com a idéia: seu alento divino se descontrolava, o impecável avental  engomava.

            De resto, não levavam realmente a sério as queixas que fazia; quando um poderoso importuna, é preciso dar a impressão de tentar ceder mesmo nas questões mais sem perspectiva: ninguém pensava em remover de fato o Prof. Dr. Posêidon do seu posto; desde o início mais remoto, quando bolsista de iniciação científica, tinha sido destinado a ser o principal especialista em todos os mares e assim devia permanecer.

            O que mais o irritava – e essa era a causa principal de sua insatisfação com o cargo – era escutar as imagens que faziam dele como, por exemplo, ele navegando a pesquisar diligentemente de modo concentrado e desalinhado em meio às ondas. Enquanto isso o Prof. Dr. Posêidon estava sentado em sua escrivaninha ao lado do Rio Pinheiros, muito distante dos mares do mundo e fazendo contas ininterruptamente; de vez em quando uma descida à Reitoria para se resolver problemas com o sistema Júpiter e pautas do C.U.(sic) eram as únicas quebras de monotonia – passeio, por sinal, de que ele na maioria das vezes voltava furioso. Assim é que mal tinha visto os mares: só fugazmente, durante a célere pesquisa no laboratório instalado no Litoral que garantiu sua ascensão ao topo da carreira (como Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1A), sem nunca o ter efetivamente atravessado. Costumava dizer que ia esperar o fim da Universidade quando fosse privatizada de vez, aí então se produziria com certeza um segundo de tranqüilidade, no qual ele, bem próximo ao fim, depois de revisar o último relatório de produtividade para as agências e para a CERT, poderia ainda dar, rapidamente, um pequeno giro por tudo em meio aos escombros.

Publicado inicialmente em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/03/414325.shtml

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Carta a Franz Kafka – Sobre a questão do estatuto e das sindicâncias*

Carta a Franz Kafka – Sobre a questão do estatuto e das sindicâncias*
 

Carta a Franz Kafka constando dos seguintes tópicos:
 

1.Pedido encaminhado da alteração de um texto resguardando seu espírito literal.
2.Sobre a tentativa infrutífera de homenageá-lo
3.Sobre a questão do que teria acontecido com Joseph K. em seu processo de sindicância.

4. Texto Sobre a questão das leis trazido para seu verdadeiro contexto
 

Caro Senhor Franz Kakfa 

Venho por meio desta, agradecer o favor de ilustrar alguns casos desta nossa instituição, a universidade e seu modo de organização, no entanto, sinto com pesar a perda de força da metáfora que gentilmente acrescentou aos fatos para universalizá-los, mas, para nosso contexto, peço a permissão para torná-los mais claros para os dias que seguem, pois alguma coisa parece mudar na ordem dos estamentos, encargos e processos. Soube que seria difícil trazer estas questões à tona, pois desde que seu amigo Brod retirou estes escritos do Baú, justamente aqueles que o senhor havia pedido para que se queimassem, como um segredo de amanuense, descobriu-se que tinha razão e a rapina se fez sobre seu corpo. Diriam que é crime recitar qualquer de seus escritos em público sem pagar uma taxa, ou mesmo transcrevê-los, enfim, descobrimos que o senhor todo, como todo aquele que escreve e publica é propriedade de alguém, estendendo-se este processo "Ad Aeternam Gloriam lex mercatoria". Estranho paradoxo que inspira: estando o senhor vivo, não era parte da norma institucional e queria mesmo destruí-la, estando morto teus restos a animam a cumprir-se, enquanto nós vivos dela também estamos fora como um peso morto. Disseram algo sobre um garoto curioso que desejou levar uma das partes de seu corpo que havia sobrado. Era um dedo. Os estudiosos de assuntos de apropriação como advogados despóticos teriam-no ignorado a princípio, mas, ao perceber o interesse do rapaz, prontamente se atiraram ao pedaço de seu dedo indicador direito. Alegam tentar vendê-lo para melhor preservá-lo transformando-o em patrimônio. O que não foi possível devido às manchas de tinta azul que o coloriam de modo irregular dando um tom abstrato que não combinaria com o conjunto da obra, conforme prescreveu um crítico. Houve quem dissesse que a tinta era de um corante venenoso. Certa vez, um outro homem que havia sido um crítico, disse que a caneta que portava era uma arma, a única que restava, acharam que apelou tentando resguardar certo valor ou inocentar-se do ato de que era julgado sem acusação formal, ou então, mais ainda, tentar extrair alguma dignidade na humilhante situação de não possuir nenhuma arma . O menino não. Ele sabia. De algum modo que ainda não entendemos, ele ouviu suas palavras quando disse que "as cadeias da humanidade torturada são feitas de papel timbrado". E mais, que estes papéis são formulários apoiados sobre o papel político da escrita e do veto, representada então por seu carimbo, o mesmo que lhe manchou as mãos. Hoje temos senhas e ficamos distantes uns dos outros coordenados por um grande computador central, não haveria mais resquícios físicos ou testemunhas dos processos. Em agradecimento, tentei inutilmente defender alguma data para lembrá-lo, mesmo que de modo discreto, tentando fazer este gesto confundir-se com outra data qualquer mais civil. Pensei no dia do funcionário público, o que trouxe certo aborrecimento. Um grupo de pessoas imaginou lembrar o dia do funcionário público pela morte de um dos grandes funcionários públicos deste país, podendo também, comemorar, a data. Então deste desejo festivo surgiu a dúvida que arrastou diversos partidos: se o presidente seria ou não um destes funcionários. Venceu que não, baseado no argumento de que haveria uma reiterada independência sua em relação ao Estado e aos trâmites. Pensaram então em comemorar a data com o aniversário de outros burocratas, casta local de numerosos escritores e poetas. Como haviam muitos, elegeu-se o preferido, que foi Carlos Drummond de Andrade (31 de outubro), que talvez conheça, mas foi cancelado pois sua memória era por demais associada a imagem de um homem sentado em Copacabana que teria virado bronze, ou um personagem tranqüilo e de olhar profundo flauteando por aí. Tal data foi vetada, diagnosticando o caso pragmaticamente como um mau exemplo, inspirando abertamente a falta não justificada. Porém não quiseram se desentender com os drumonianos passando esta data para uma comemoração mais apropriada, o dia do funcionário público aposentado. Já o que parecia ser um sucesso em relação ao outro processo aberto sobre a instituição de um feriado, esfumou-se (era véspera de feriado e não fizeram o devido protocolo) e o presidente da República instituiu o dia 28 de outubro oficialmente como o dia do funcionário público. Isto aconteceu porque naquele ano a data caía numa segunda-feira, prolongando o fim de semana. Dizem as más línguas que o presidente buscava o apoio da categoria, já o dia 17 de julho ficou registrado como o dia do funcionário público aposentado pois caía num domingo sem chamar a atenção e a ira da população para este setor tão odiado. Sobre o caso do senhor Joseph K., tive sucesso em obter maiores detalhes vindos de um amigo funcionário da instituição que cuidava do caso e posso adiantar alguns detalhes. A história pareceria confusa a não iniciados da Grande Ordem da Harmonia Administrativa que sobre nós desaba, mas seu trâmites não lhe são arcanos e sabe-se de absoluta normalidade em nosso contexto. Inclusive me assusta seu interesse que outros tomariam por suspeito. Parece que um dia abriram um processo sindicante contra a instituição que participava, não importa qual, mas o fato é que chegou o dia em que se suspeitou do descumprimento de uma norma por parte de seu conhecido e este foi colocado num ponto onde não conseguiu discernir o que fazer, pois foi posto na posição de que sem descumprir a lei, agiu e ao agir pensou fazê-lo preservando a instituição de que participava. No entanto, não percebeu que a própria instituição queria acabar com a lei mudando a si mesma a partir da instância cabível e competente, o que obviamente não era da alçada de Joseph K. Este, sem perceber, descumpriu uma lei que não era de sua alçada e que nem estava escrita o que teve efeito inverso obrigando a instituição a mudar duas vezes e continuar a ser a mesma de outrora. Sua atitude foi tomada como um protesto, o que não é contra a norma – dado nosso tempo democrático – mas uma série de conseqüências advém da quebra de hierarquia, mesmo invisível, sendo então aberto um processo de sindicância que não teria formalmente como concluir por nada contra a sua pessoa que não havia cometido crime algum, no entanto, esta questão é menor e diz respeito à instituição cabível para esta definir uma sentença a partir da ciência da imputabilidade em meio à diversas normas, estatutos, regimentos, etc, que foram criadas um sobre o outro que negando-se mutuamente e negando em alguns aspectos a lei federal, atribui e justifica instâncias decisoras capazes de julgamento. Nosso partido sabendo da causa marcou reunião, mas não pode incluir sua causa na pauta por causa de questões mais urgentes que demandariam o advogado que possuem. Isto tudo correria sem maiores problemas não fosse outro agravante, Joseph K. não era o verdadeiro sindicado, mas Josip K. que não foi encontrado na data que poderia validar o processo trazendo mais um agravante. Como o processo, ao passar de determinada data, prescreveria gerando grave aborrecimento e despesas inúteis, tomaram Joseph K. pelo acusado para garantir que deste modo a instituição não errasse e fizeram com que as acusações contra Josip fossem arquivadas e não o contrário. Isto foi garantido pelo fato de que a instância competente tinha de achar um acusado e condená-lo, mas como fazê-lo formalmente faria com que houvesse registros do erro, era preferível resolver o caso acima da instituição, no verdadeiro fundamento da força da lei que é a palavra de determinadas figuras reconhecidas do judiciário e dos altos funcionários desconhecidos em conversas informais que decidem acima das ambigüidades normativas que alguns garantem ser o fator que garante nossa harmonia. Todos ficaram satisfeitos com o resultado do processo exceto, é claro, aquele seu conhecido (perdoe, é amigo seu ?). Ainda assim, haviam alguns que afirmassem que quando recebeu a aplicação da sentença, a sombra de um sorriso apareceu em seu rosto aliviado pelo fim dos trabalhos processuais. Infelizmente um único problema se soma a este processo, pois, como um funionário inadvertidamente escreveu seu nome com um "p" a mais, este se perdeu em meio aos arquivos, não podendo ser mais encontrado, conforme afirma o setor de protocolo. Devo terminar antes que acabe o papel que está submetido a cotas dado o fato de nosso superior ter viajado em atividades oficiais, impedindo que se substituísse o papel comprado errado pelo prgão que seguiu estritamente as novas normas estaduais que atribuem por decreto um tipo único de papel que não se adapta às impressoras (antes disso não escrevi, pois, ao cortar os custos, proibiram comprar a tinta, porém, daquela vez por controle interno). Há quem atribua este fato ao interesse de mostrar a ineficiência do setor público frente ao privado onde as normas não existem, e, logo não são transgredidas, mas o papeis parecem ser os mesmos. O único que pode permitir através de favores as exceções que continuariam a operacionalidade do setor ou seu impedimento de modo correto e estritamente legal seria o diretor, a instância local acima da norma, mas este viajou recentemente para um lugar desconhecido distante das requisições.  Peço Humildemente desculpas pela longa Carta, mas difícilmente teria outra chance de falar convosco. Sem mais para o momento, segue esta carta com meus votos de estima e consideração  

Douglas A.  

Conforme dito, segue o texto com as correções: 

Sobre a questão do Estatuto** 

Em geral as nossas normas e o estatuto não são conhecidos, senão que constituem um segredo do pequeno grupo de burocratas que nos administra. Embora estejamos convencidos de que este antigo estatuto é cumprido com exatidão é extremamente mortificante ver-se regido por normas que não se conhecem. Não penso aqui nas diversas possibilidades de interpretação nem nas desvantagens que se derivam de que apenas algumas pessoas, e não toda a comunidade universitária, possam participar da interpretação. Talvez estas desvantagens não sejam tão grandes. O Estatuto é tão antigo que os séculos contribuíram para sua interpretação e esta interpretação já se tornou norma também, mas as liberdades possíveis a respeito da interpretação, mesmo que ainda subsistam, acham-se muito restringidas. Além do mais a Reitoria e o Conselho Universitário não tem evidentemente nenhum motivo para deixar-se influir na interpretação por seu interesse pessoal em nosso prejuízo, já que as normas disciplinares do Estatuto foram estabelecidas desde as suas origens por ela mesma; a qual se acha fora do Estatuto, que, precisamente por isso, parece ter-se posto exclusivamente em suas mãos. Isto, naturalmente, encerra uma sabedoria ? de quem duvida da sabedoria das antigas normas -, mas ao mesmo tempo nos é mortificante, o que provavelmente é inevitável. Além do mais, estas aparências de normas apenas podem ser na realidade suspeitadas. Segundo a tradição existem e foram confiadas como segredo à Reitora, mas isto não é mais do que uma velha tradição, digna de crédito pela sua antiguidade, pois o caráter destas normas exigem também manter em segredo sua existência. Mas se nós, estudantes, professores de todas as categorias e funcionários, seguimos atentamente a conduta da Reitoria desde os mais remotos tempos, e possuímos anotações das gerações anteriores referentes a isso, e as temos prosseguido conscienciosamente até acreditar discernir nos fatos inumeráveis certas linhas diretrizes que permitem concluir sobre esta ou aquela determinação histórica, e se depois destas deduções finais cuidadosamente peneiradas e ordenadas procuramos adaptar-nos de certo modo ao presente e ao futuro, tudo aparece então como incerto e talvez como simples jogo de inteligência, pois talvez essas normas que aqui procuramos decifrar não existam. Há um pequeno partido que sustenta realmente esta opinião e que procura provar que quando um Estatuto existe apenas pode rezar que: o que a Reitoria faz é o Estatuto. Esse partido vê apenas atos arbitrários na atuação da Reitora e rechaça a tradição popular, a qual, seguindo o seu parecer, apenas comporta benefícios casuais e insignificantes, provocando em troca graves danos, ao dar às três categorias uma segurança falsa, enganosa e superficial com respeito aos acontecimentos do futuro. Não pode negar-se este dano, mas a maioria esmagadora de nosso povo vê sua razão de ser no fato de que a tradição não é nem mesmo ainda suficiente, que portanto há ainda muito que investigar nela e que, sem dúvida, seu material, por enorme que pareça, é ainda demasiado pequeno, pelo que terão que transcorrer séculos antes de que se revele como suficiente. O obscuro nesta visão aos olhos do presente apenas está iluminado pela fé de que virá o tempo em que a tradição e sua investigação conseqüente ressurgirão de certo modo para pôr ponto final, que tudo será aclarado, que as normas e Estatutos apenas pertencerão à comunidade universitária representada pelas três categorias e o Conselho Universitário terá desaparecido. Isto não é dito por ninguém e de modo algum com ódio contra a Reitoria. Melhor, devemos odiar-nos a nós mesmos, por não sermos dignos ainda de ter uma Instituição Democrática. E por isso, esse partido, na realidade tão atraente sob certo ponto de vista e que não acredita, em verdade, em Estatuto ou norma alguma, não aumentou as suas fileiras, e isso porque ele também reconhece a Reitoria e o direito de sua existência.Em realidade, isto apenas pode ser expresso com uma espécie de contradição: um partido que, junto à crença nas normas, repudiasse a Reitoria como instituição e não os reitores ocupantes do posto, teria imediatamente toda a Comunidade Universitária a seu lado, mas um partido semelhante não pode surgir porque ninguém se atreve a repudiar a Reitoria e o Conselho Universitário. Sobre o fio deste cutelo vivemos. Um escritor resumiu isto certa vez da seguinte maneira: a única norma, visível e isenta de dúvida, que nos foi imposta, é a Reitoria e o Conselho Universitário, e desta norma haveríamos de nos privar a nós mesmos?

* publicado originalmente em http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2008/03/414272.shtml

** A partir do Texto em  http://www.e-text.org/text/Kafka,%20Franz%20-%20contos.pdf

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