Sociais das Polícias
Sobre a greve da polícia civil
Politicamente isto é um problema: como se
posicionar frente a um conflito entre governo e as polícias, ainda mais no
contexto brasileiro?
Numa primeira aparência, vemos o conflito entre
polícia militar e civil, nos posicionando ao lado dos grevistas, mesmo sabendo
que num nível mais profundo, ligado às práticas, era um conflito entre aqueles
que até hoje praticam a tortura nas delegacias e aqueles que até hoje praticam
a execução sumária (o julgamento e execução no próprio local do suposto ou
posposto crime).
Mas por outro lado, é bom lembrarmos que a
polícia se desenvolveu num acordo pós-ditadura que a torna praticamente
blindada a reformas, garantida, entre outros, pelo esquema sistêmico de corrupção
que circula as delegacias.
Guaracy Mingardi descrevia isto como uma ecologia
da delegacia onde há o truta (ou ladrão, meliante, elemento, etc.), o ganso (ou
cagüete, dedo-duro, amigo-de-polícia, etc.), o delegado de plantão, o delegado,
o investigador, o escrivão e o advogado de porta de cadeia.
Comecemos pelo esquema mais simples: o ladrão é
preso, normalmente dedurado por alguém conhecido como ganso, o advogado de
porta de cadeia negocia um acordo (ou acerto), o investigador caso aceite
repassa para o escrivão que faz um processo ambíguo, um registro de fácil
contestação de prévio conhecimento do advogado, e a maior parte fica com o
delegado (talvez por possuir curso superior, trabalho complexo?).
Destes, notemos, só o ladrão realizou trabalho e,
muitas vezes, caso o cliente "suma da praça", o próprio advogado realiza
uma falsa denúncia para que ele arranje dinheiro de algum modo, provavelmente
voltando ao crime, onde o advogado assume o papel de ganso.
Cada delegacia produz grana de um jeito, em bairros
nobres, flagrantes de porte de drogas (ameaçando passar a linha tênue entre o
porte e o tráfico) e pobres, com furto ou assalto, a maioria destes casos não
mereceria menção, talvez nem devessem mesmo ser presos por coisinhas tão
diminutas, mas o caso é como isto se relaciona com o cotidiano do policial.
Por que eles fazem isto? – Primeiro por que é
algo sistêmico e que vêm da ditadura e segundo, por que talvez seja impossível
sair disso até hoje por causa dos baixos salários. Em geral, o delegado não ganha
tão mal dentro da delegacia, mas ganha em relação a outros trabalhos públicos
com curso superior em direito, enquanto todo o resto da delegacia ganha pouco
mesmo, o que força a buscar bicos como segurança, e outros já citados (o que
desgasta ainda mais o policial que além de fazer o que faz mal, ainda faz
muitas coisas que cansam muito).
O cotidiano da delegacia é rico em ocorrências,
destas só conhecemos as espetaculares, por que é só estas que interessam à
imprensa, e, principalmente, ao governo do estado, o que faz com que se desprezem
as ocorrências diminutas.
Outro problema é a relação entre a polícia
militar e a civil. Comecemos pelo fato da polícia militar descarregar centenas
de pessoas de quem não tiraram nada na rua, então conduzem estas pessoas para
serem "trabalhadas" (torturadas), infelizmente a única forma de
interrogatório que existe no país.
Destas a grande maioria não tem nada a ver, mas a
lógica da PM é outra, eles trabalham com números, isto é, se tantas pessoas
forem presas, eles, os soldados, são bonificados ou sobem mais rápido na
carreira, seja em número de presos, o que é mais difícil (pois quem prende é a
polícia civil), quanto em número de corpos abatidos, o que é mais fácil, e que
normalmente é reconhecido pelas pessoas (os programas de TV de ou para policiais em geral reclamam pelo número de pessoas soltas sem
se perguntar qual o número destas realmente é envolvido em crimes).
A PM, nem preciso dizer, ganha pouco, isto é
notório, mas o principal é que passam dificuldades econômicas que os levam a
bicos e esquemas corruptos na rua que são bem menos rendosos que os da Polícia
Civil (que obriga a serem feitos em maior quantidade). Além disso, policiais
militares são humilhados e torturados o tempo todo.
Se um policial mata alguém, é premiado, se mata
alguém errado é advertido e deslocado, mas se vai com a bota suja é preso e
pode apanhar. Isso é bem pitoresco, eles são constantemente torturados o que
provavelmente os faz achar que tem o direito de bater em qualquer um, assim
como são obrigados a respirar gás lacrimogêneo e sofrer maus-tratos.
Quando surgem problemas com policiais e soldados
(PMs não são policiais, são uma coisa mais estranha que não cabe aqui explicar)
que querem cumprir regras, eles em geral são “removidos” de delegacia em
delegacia, cada vez mais longe da casa, até aceitar os esquemas normais (ou
então decidem de “livre e espontânea vontade” ir “pra casa do chapéu” onde
ninguém quer ir). Além disso, é recorrente esquecerem tudo o que aprenderam na
academia, sempre considerado bobagem, direitos humanos então? – todos sabem –
mas o problema é que eles também acabam sem direitos no meio das camarilhas.
Tentativas de reforma já foram tentadas e
falharam em todas as vezes, principalmente a tentativa no governo Montoro. Lá,
houve confronto com tiroteio nas delegacias (a PM cercou e atirou nas
delegacias) e depois de três meses o governador Montoro abandonou o grupo de
policiais honestos que reuniu achando que se abandonasse a repressão da PM, ia
haver aumento da violência conforme propagado pela imprensa. Ao contrário, o
que isto levou foi ao advento da ascensão da violência desta fase que chega ao
pico nos anos 80 quando a PM entra em novo confronto com a Civil desta vez
disputando pontos de tráfico no centro.
Nos anos noventa, aí a coisa foi pro brejo, mas
houveram manifestações de PMs em greve em outras partes do país, resultando em
prisão, tortura e intervenção federal do Exército quando convinha contra os
grevistas.
A PM sofre do problema de não ser nem militar nem
civil, isto é, nem ganha bem, nem tem atribuição específica… cobram deles todo
tipo de coisa e ela se modifica conforme os interesses dos batalhões
específicos onde permanecem as ideologias e "técnicas" da ditadura. O
principal é que por defenderem a ordem, eles defendem algo acima da lei e que
não é especificado, sem serem um exército dentro do quartel com regras
específicas, eles estão passeando por aí de camburão levando o terror aos
transeuntes. A idéia de ordem diz respeito a algo acima da lei que permanece
mesmo quando a lei muda, como conjugar isto e uma força policial?
Isto faz com que se tornem em parte esta coisa
doida que são. Poucos sabem, mas a reunião mais importante de um governador
empossado é com as polícias, parece normal até, exceto por um detalhe, esta
reunião é onde é posta a questão do limite das atribuições do governador em
relação às polícias e não o contrário.
Fora isso, a polícia civil raramente entra em
greve principalmente por causa dos delegados, se isto ocorre, é pra valer.
Agora, até onde isso vai, infelizmente depende dos governos federal (que criou
uma tropa de choque nacional do exército) e estadual (as polícias militares),
isto é, se eles vão querer briga e até onde vai.
Há o receio de que tendam a militarizar ainda
mais a polícia civil e não o contrário. Afinal a tendência geral é comprarem
equipamentos e não qualificarem o trabalho e acabarem com a corrupção dando
outras opções melhores.
Toda a vez que algum governador diz: vou melhorar
a segurança pública, normalmente ele quer dizer que além de dar destaque a
casos exemplares, ele vai comprar acessórios, como crianças antigamente em
relação aos “Comandos em Ação”: compra arminhas, tanque, helicóptero,
metralhadora, tudo menos imaginar que há alguém que faz isso e precisa ser qualificado,
parecendo pressupor alguém controlado e disciplinado como um soldado, mas que
ganhe pouco como um leão de chácara.
Mas, mais estranho é, como estão se ligando
nacionalmente os policiais civis se não é via representação sindical? É
utilizando os contatos dos sistemas de inteligência para repressão?
Fica aberta esta questão…
A tirinha acima foi extraída do Blog Malvados sob autorização do
editor, o humorista André Dahmer, acessível em: http://www.malvados.com.br. Apesar de
homônimo, ele não é o mesmo André Dahmer, da Delegacia de Inteligência da
Polícia Civil de São Paulo e diretor da Associação dos Delegados de São Paulo.