O TEMPO – SUBSTÂNCIA DO CAPITALISMO *
por João Bernardo
A lógica do texto escrito difere do impulso da viva voz, e o que exige no papel uma explanação detalhada pode às vezes ser resumido por um gesto de mão a acompanhar meia dúzia de palavras. Dentro destas limitações, empregando termos diferentes mas mantendo a sequência das ideias, reproduzo aqui uma palestra proferida a 19 de Outubro de 2005 na Fundação Santo André.
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Os dois campos de desenvolvimento tecnológico invocados correntemente para definir as condições de produção que sucederam ao fordismo são a informática e a automatização.
Nos meios universitários e nos meios jornalísticos – já que os dois andam cada vez mais juntos no mesmo afã de apresentação superficial dos fenómenos – tem sido considerado que ainformática pôs termo ao carácter material do trabalho, generalizando em vez dele a actividade virtual, e que a automatização tornou obsoletos os próprios trabalhadores, substituindo-os por máquinas inteligentes. Se o trabalho deixou de ser real e se os seres humanos estão a dar lugar a máquinas, então a mais-valia e a teoria do valor teriam perdido o significado e estaríamos a viver uma era que os apologistas insistem em classificar como pósmoderna. De imediato, a respeito do carácter virtual que os computadores imprimiriam ao trabalho, pode argumentar-se que a insistência dos administradores de empresa em instalar cadeiras ergonómicas, teclados adequados à disposição dos dedos, iluminações especiais e não sei quantas mais formas de melhorar o rendimento físico dos digitadores revela o carácter material desta nova modalidade de acção humana. Ou será que as lesões por esforço repetido são virtuais também?
Quanto à automatização, recordo, como já fiz noutros textos, o que foi várias vezes afirmado em The Economist, uma revista que exprime de maneira muitíssimo competente as necessidades e os interesses do grande capital transnacional, e que ninguém poderá suspeitar de ter simpatia pelos trabalhadores. Em 21 de Maio de 1988, ao analisar a diferença entre os robots introduzidos no fabrico de automóveis durante a década de 1970 e os introduzidos durante a década seguinte, The Economist sublinhou que o principal efeito da nova tecnologia consistia no aumento do nível de qualificação exigido aos trabalhadores encarregados de a operar. Este artigo concluía que «à medida que as fábricas automatizadas se tornam mais complexas e passam a depender mais dos computadores, o que surge como a questão decisiva é a qualidade do pessoal e não a sua redução numérica». Em 14 de Abril de 1990 The Economist insistiu no tema, escrevendo que «a General Motors aprendeu numa joint venture formada com a Toyota que o que realmente interessava no processo de produção eram as pessoas». Mais detalhadamente, podemos ler em The Economist de 10 de Agosto de 1991 que os administradores da General Motors, depois de terem estudado as razões que haviam levado ao fracasso do processo de automatização prosseguido pela sua empresa durante uma dezena de anos e de o terem comparado com o exemplo japonês, aprenderam que «eram evidentes duas coisas». «Os robots não eram seguramente a chave do sucesso. E agora que o processo de fabrico japonês estava a ser exportado com êxito para os Estados Unidos tornava-se evidente que trabalhadores japoneses fanáticos e mal pagos não se comportavam como robots. […] É certo que o grau de automatização nas fábricas de propriedade japonesa é ligeiramente superior ao existente nas de propriedade norte-americana ou europeia. Mas isto deve-se ao facto de os japoneses terem descoberto que é mais fácil automatizar depois de ter havido uma enorme insistência na qualidade. Só a partir do momento em que a produção está a decorrer sem problemas é que os japoneses automatizam ou introduzem novos modelos. […] tornou-se evidente que a verdadeira chave do sucesso para uma indústria automobilística competitiva não era a alta tecnologia, mas o modo como os trabalhadores eram treinados, geridos e motivados. […] A lição custou caro, mas a General Motors acabou por aprender que o seu bem mais importante e mais valioso não eram os robots, mas a sua própria força de trabalho».
Não se trata da simples substituição de pessoas por máquinas automáticas mas da substituição de umas pessoas por outras mais qualificadas. A qualificação da força de trabalho, de modo a aproveitar cada vez mais a capacidade intelectual dos trabalhadores, é esta uma das principais lições dadas pelos administradores da Toyota, e que os gestores de todo o mundo se têm esforçado por aprender e aplicar. Só a esquerda arrependida continua surda, hoje como ontem, aos ensinamentos ministrados pelo grande capital.
Se passarmos do nível dos processos particulares de fabrico para o do conjunto da sociedade, verificamos que a tecnologia informática e a automatização constituem a infraestrutura que permite que a dispersão física dos trabalhadores não comprometa as economias de escala, e que sustenta a actual fragmentação da classe trabalhadora e a precarização do trabalho. A ligação das máquinas aos computadores aumentou muitíssimo o grau de concentração das decisões e ao mesmo tempo dispersou a sua execução, de maneira que os trabalhadores, onde quer que exerçam a actividade, são vigiados pela administração e obedecem às suas directrizes. A cooperação entre os trabalhadores passou a dispensar a reunião nos mesmos locais de trabalho, bastando o facto de eles dependerem de um mesmo centro de decisões para colaborarem uns com os outros. Os chefes de empresa podem, assim, explorar o esforço conjugado dos assalariados enquanto diminuem as probabilidades de uma acção reivindicativa conjunta. Em vez de terem substituído as pessoas por máquinas e de terem tornado virtual o trabalho, a automatização e a informática reforçaram o enquadramento dos trabalhadores e agravaram a exploração do trabalho. Mas a questão deve ser vista também noutra perspectiva, que permite extrair lições mais profundas.
Contrariamente ao que sucede com a esmagadora maioria dos autores de formação marxista, eu considero que existem duas classes capitalistas: a burguesia e os gestores. Na verdade, a definição de uma classe formada por gestores – qualquer que seja o nome dado a esta entidade social – tem-se confundido com a acção prática e a crítica teórica prosseguidas por alguns sectores da extrema-esquerda contra a burocratização dos partidos socialistas durante a época da Segunda Internacional e, mais tarde, contra o desenvolvimento do capitalismo de Estado soviético. Foi o combate dos trabalhadores às novas modalidades de exploração surgidas a partir do interior das suas lutas que exigiu a identificação dos gestores enquanto exploradores.
Mas a afirmação da existência de uma classe social formada por gestores não tem consequências apenas sobre a análise do capitalismo de Estado e influencia a maneira como se considera o próprio fundamento do capitalismo. Os burgueses exercem a supremacia económica e social graças à propriedade dos meios de produção, e é através da transmissão hereditária destes bens que eles asseguram aos filhos a condição de capitalistas. Todavia, a superioridade económica e social dos gestores não provém de qualquer propriedade, mas do controlo que, através da administração, exercem sobre os processos de trabalho e sobre a vida social em geral. E os filhos dos gestores podem suceder aos pais graças à aquisição de um estatuto social fornecido pela frequência dos melhores estabelecimentos de ensino e pela participação nas redes de relações da elite. Em resumo, a exploração tanto se realiza através do exercício da propriedade como através do exercício do controlo.
Isto significa que no capitalismo a exploração não consiste somente na apropriação final dos bens materiais e dos serviços produzidos pelos trabalhadores, mas também no controlo do processo de produção. Por outras palavras, os trabalhadores não perdem apenas o direito aos frutos do seu trabalho mas igualmente o direito a decidirem a maneira como trabalham. Contrariamente ao que sucedia nos sistemas económicos baseados na cobrança de tributos, em que os explorados detinham o controlo sobre o seu processo de trabalho, no capitalismo os trabalhadores podem ser expropriados do resultado do trabalho precisamente porque começam por ser afastados do controlo sobre o processo de trabalho.
Nestas circunstâncias, a autoridade dos capitalistas, antes de incidir sobre a materialização ou a concretização do processo de trabalho, incide no próprio processo, que deve portanto ser considerado plenamente como tal, ou seja, como decurso no tempo. Muito mais fundamentalmente do que uma apropriação de bens, a exploração capitalista é um controlo exercido sobre o tempo.
No capitalismo o explorador controla o seu próprio tempo e o tempo alheio, enquanto o explorado não controla o seu tempo nem o dos outros. Se entrarmos pela primeira vez numa empresa em que todos andem vestidos com as mesmas batas e quisermos determinar através da observação empírica imediata se uma dada pessoa exerce funções de gestor ou de trabalhador, basta observar qual é a sua relação com o tempo. Qualquer trabalhador sabe, embora os teóricos por vezes o esqueçam, que o que ele vende ao patrão é o seu tempo e não a concretização do seu esforço. O que vai suceder com os resultados do trabalho, isso não diz respeito ao trabalhador nem lhe interessa. Uma catástrofe pode destruir os objectos fabricados e deixar sem efeito os serviços cumpridos, uma crise pode impedir a venda dos bens, nada disto altera o facto primordial de que o trabalhador foi expropriado do seu tempo, e portanto explorado.
Se a exploração capitalista resulta do controlo exercido sobre o tempo dos trabalhadores, o progresso no capitalismo define-se exclusivamente como produtividade, o que é o mesmo que dizer como um conjunto de operações efectuadas sobre o tempo.
Trabalhar menos e ganhar mais é o desejo expresso de viva voz por todos os trabalhadores, e que qualquer deles aplica na prática quotidiana através de pequenas e grandes astúcias. Esta pressão exercida permanentemente sobre os patrões é responsável pelo desenvolvimento económico.
Se por um lado os capitalistas aceitam a diminuição do número de horas de relógio que compõem a jornada de trabalho, por outro lado eles impõem o aumento da intensidade do trabalho dentro dos limites de cada hora e treinam os trabalhadores de modo a serem capazes de aumentar a qualidade e a complexidade do seu esforço. Em vez de cancelar a intervenção dos trabalhadores, a automatização acresceu o ritmo dos gestos de trabalho e passou a exigir novas qualificações. E assim, uma hora de trabalho, que nos alvores do capitalismo era preenchida por uma actividade simples, representa hoje uma actividade muitíssimo intensa e complexa, equivalente a um grande número de horas simples. Este aumento da produtividade do trabalho tem como efeito a redução do tempo necessário ao fabrico de cada objecto e à execução de cada serviço, de modo que a remuneração dos trabalhadores, que medida em volume de bens adquiridos tem aumentado consideravelmente ao longo da história recente, tem-se reduzido drasticamente se for medida pelo tempo de trabalho necessário ao fabrico de cada um desses bens. Com o progresso do capitalismo, os trabalhadores ficam sujeitos a jornadas menores, mas trabalham mais tempo económico real; e adquirem mais bens concretos, mas que correspondem a menos tempo de trabalho incorporado. É este o mecanismo fundamental do que em termos marxistas se denomina mais-valia relativa, ou seja, o agravamento da exploração através do progresso da produtividade. Toda a dinâmica do capitalismo e toda a sua capacidade de recuperação das lutas sociais têm a mais-valia relativa como motor.
Em última análise, o desenvolvimento do capitalismo consiste numa conjugação de tempos com sentido inverso. Aumenta a complexidade de cada hora de trabalho, e portanto aumenta o tempo económico real contido nos limites dessa hora. E diminui o tempo incorporado em cada um dos bens adquiridos pelos trabalhadores, diminuindo portanto o tempo total incorporado na formação de cada trabalhador e na sua reprodução, apesar de aumentar a quantidade de bens e serviços necessários a essa formação e a essa reprodução.
É nesta perspectiva que se devem criticar as teorias que, começando por reduzir o trabalhador no capitalismo a um produtor de bens materiais, decretaram o fim do capitalismo e a extinção do próprio trabalho quando aumentou a importância da produção de bens imateriais e de serviços. Falar hoje de trabalho virtual ou é um logro ou é abrir uma porta já aberta, porque o capitalismo tem por base, desde os seus primórdios, não bens concretos mas processos de trabalho entendidos como processos no tempo. O tempo, não os objectos, é a substância do capitalismo. Antes de ser material, a exploração deve entender-se na sua imaterialidade temporal, e precisamente graças ao controlo exercido sobre estes processos temporais os gestores têm sido capazes de agravar a exploração e, o que é sinónimo, desenvolver o capitalismo. Tudo se resume a tempos e a desfasamentos temporais.
A inclusão dos ócios no quadro do capitalismo reforça a importância do tempo enquanto substância do modo de produção.
Esta perspectiva de análise prolonga o modelo económico globalizante que apresentei pela primeira vez em dois artigos, «O Proletariado como Produtor e como Produto», Revista de Economia Política, 1985, vol. 5 nº 3 e «A Produção de Si Mesmo», Educação em Revista [FaE, UFMG], 1989, ano IV nº 9, e que tenho vindo a reelaborar em vários livros. Em termos demasiado simples, trata-se de considerar que o modelo da mais-valia, tal como Marx o apresentou, é insuficiente se se limitar à produção de bens, devendo incluir a produção dos próprios trabalhadores. É neste sentido que analiso a função dos ócios.
Até uma época bastante recente, mesmo nos países desenvolvidos o consumo dos assalariados durante os períodos de lazer ocorria geralmente em formas pré-capitalistas, sobretudo em modalidades de economia doméstica. Nas últimas décadas, porém, com a substituição dos restaurantes familiares pelo fast food, a substituição das pequenas lojas pelos hipermercados e pelos shopping centers, a difusão das viagens organizadas e a proliferação de serviços destinados a acompanhar, enquadrar e dirigir todas as diversões imagináveis, os ócios passaram a oferecer ao capitalismo inesgotáveis oportunidades de mercado. Todavia, apesar do volume de negócios que representa, este aspecto está longe de ser o mais importante. É impossível aumentar as qualificações da força de trabalho sem prolongar o tempo de formação dos trabalhadores, e as instituições de ensino são insuficientes para este fim, porque as inovações tecnológicas continuam a ocorrer depois de cada pessoa sair da escola. Os capitalistas encontraram-se perante uma situação paradoxal. Como manter os trabalhadores actualizados e adestrados sem comprometer os horários de trabalho? O problema foi solucionado mediante a conversão dos ócios em processo de qualificação da força de trabalho.
Com o aparecimento dos microcomputadores, a electrónica permitiu, pela primeira vez na história da humanidade, que um instrumento destinado ao trabalho servisse também de meio de divertimento. Todas as formas electrónicas de lazer constituem, por si só, uma forma de adestramento da força de trabalho, o que significa que as pessoas passam alegremente a maior parte dos seus ócios adquirindo habilitações que as tornam mais produtivas. Aliás, a questão é mais complicada ainda, porque os vídeos musicais e publicitários – se é que uns se distinguem dos outros – e os jogos electrónicos habituaram todas as pessoas a modalidades de tempo interseccionado que antes eram apanágio das técnicas vanguardistas de escrita ou de pintura. É durante os lazeres que os indivíduos adquirem a capacidade de lidar com as organizações temporais complexas indispensáve is aos actuais processos de trabalho.
Essa banalização das formas tem correspondido a uma completa indigência dos conteúdos, mas é exactamente isto que se pretende. Provocou-se a habituação dos trabalhadores à modernidade sem lhes suscitar inquietações de espírito, e temos aqui o ideal da pós-modernidade, a simbiose da técnica e da moda numa conjugação que só é fútil para a população comum, porque se carrega para os capitalistas do seu pleno significado.
Funcionalmente analfabetos mas ágeis em todas as facetas da vida urbana, dotados de uma percepção imediata da comunicação audiovisual, atentos aos caprichos mais efémeros –mesmo sem passarem por qualquer curso de qualificação profissional estes jovens adquirem as habilitações básicas para lidar com as novas tecnologias. O que é, então, mais importante: o conteúdo, enquanto conteúdo ideológico dos lazeres, ou a forma, enquanto quadro temporal em que os lazeres decorrem? As novas noções práticas do tempo, indispensáveis para fazer progredir a produtividade na era da tecnologia electrónica, é nos lazeres, muito mais do que nas escolas ou nas empresas, que os trabalhadores as assimilam. Em vez de constituírem uma fuga à exploração, os lazeres tornaram-se uma parte indispensável dos mecanismos da mais-valia. Subjacente a esta linha de raciocínio está a questão da autoridade exercida pelas empresas não só sobre os assalariados, durante o horário de trabalho, mas igualmente sobre camadas populacionais mais amplas, e ao longo das vinte e quatro horas do dia. Tenho insistido desde há bastantes anos, em livros, artigos e cursos, na distinção entre o que classifico como Estado Restrito, quer dizer, o aparelho clássico de poder, formado por governo, parlamento e tribunais, e o que classifico como Estado Amplo, ou seja, o exercício da soberania pelas próprias empresas. Este Estado é amplo porque o seu perímetro se sobrepõe ao perímetro das classes capitalistas.
Hoje, na era da transnacionalização, em que as fronteiras entre países e as legislações nacionais não opõem qualquer barreira eficaz à movimentação do capital e à actuação dos capitalistas, as grandes empresas tornaram-se incomparavelmente mais poderosas do que os órgãos clássicos do Estado. E a inclusão dos ócios nos mecanismos da exploração veio ampliar mais ainda a soberania das empresas, permitindo que elas presidam a todos os momentos da nossa vida.
Neste contexto, que significado adquirem a democracia e a luta política? Os democratas de todos os matizes, desde a direita liberal até à esquerda bem comportada, apelam para a difusão da cidadania no âmbito das instituições clássicas do Estado, mas como pode vigorar aí a democracia quando as empresas exercem um poder cada vez mais totalizador? Em A Opção Imperialista, uma obra notável publicada em 1966 e que é urgente retirar do esquecimento, escreveu Mário Pedrosa (pág. 347): «Onde a liberdade individual é subjugada? No setor mais importante da vida moderna, no local de trabalho, na oficina, na fábrica, na emprêsa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes?».
Para que a disciplina de empresa continue a pautar os comportamentos fora da empresa é necessário que o ócio dos trabalhadores, bem como as vinte e quatro horas dos desempregados, não sejam tempo livre mas tempo controlado. É necessário que os pensamentos não vôem mas sigam trilhas. Este resultado não se obtém apenas através da concentração das indústrias cinematográfica e televisiva num escasso número de mãos, com a consequente futilidade de conteúdo das diversões. Hoje, não é apenas nos níveis económico e ideológico que os capitalistas controlam os ócios, mas ainda no nível directamente repressivo. Dentro das empresas, a electrónica permitiu a fusão do processo de fiscalização com o processo de trabalho. Esta conjugação, inédita na história da humanidade, ampliou-se à sociedade em geral quando os bancos e as lojas começaram a sujeitar os clientes a formas de vigilância que até então haviam reservado para os assalariados. Depois, o facto de os computadores e outros instrumentos electrónicos servirem tanto de meio de trabalho como de meio de divertimento permitiu a fiscalização automática dos ócios. Desde as virtuais às palpáveis, não existe hoje qualquer modalidade urbana de diversão que não seja fiscalizada. Entre o mais intenso dos gestos de trabalho e o mais espreguiçado dos gestos de repouso existe um continuum preenchido pela vigilância electrónica.
E como as firmas de segurança particulares ultrapassaram em verbas e pessoal as polícias oficiais, e como são as próprias empresas quem regista, armazena e selecciona o vastíssimo rasto de informação que cada um de nós deixa ao longo dos nossos lazeres, cabelhes a elas, e não ao aparelho tradicional de Estado, formar a infra-estrutura repressiva.
Uma tradição muito difundida na extrema-esquerda considera que a consciência política se obtém na passagem da luta contra os patrões para a luta contra os governantes. Mas será possível nas condições actuais sustentar que o Estado clássico, enquanto órgão de decisões, prevalece sobre as empresas, enquanto instituições dotadas de soberania? Desde a década de 1960 que as movimentações dos trabalhadores ocorridas fora dos quadros sindicais e partidários vêm a entender que o Estado clássico não é mais o alvo supremo das lutas e a considerar a questão da democracia como uma necessidade da estrutura interna das próprias organizações de luta. Sem a transformação das relações sociais de trabalho, de modo a pôr fim ao totalitarismo empresarial, é ilusório pretender que a liberdade possa vigorar em qualquer outro domínio. É esta a lição que Mário Pedrosa resumiu com uma lucidez tanto mais notável quanto o seu livro A Opção Imperialista foi escrito e publicado enquanto vigorava no Brasil o regime militar. Apesar disso, Mário Pedrosa compreendeu que era sobretudo no local de trabalho que a autocracia estava instalada.
Todavia, nos últimos anos os trabalhadores têm deparado com enormes dificuldades para se organizar em lutas colectivas no âmbito das empresas. A terceirização e a subcontratação fragmentaram os trabalhadores, e esta situação agravou-se devido à introdução de horários flexíveis, à expansão dos contrato a prazo e da actividade a tempo parcial e à proliferação de firmas que alugam força de trabalho. Os obstáculos são maiores ainda quando se tenta mobilizar conjuntamente empregados e desempregados. Em alguns países, especialmente onde o desemprego e a economia paralela assumem maiores dimensões, os piquetes e os boicotes urbanos parecem ser uma tentativa de ultrapassar as dificuldades erguidas à acção no interior das empresas. Estas novas modalidades de luta são internas à sociedade capitalista, porque operam num espaço e num tempo – os lazeres – de que o capitalismo se apoderou. Mas como assegurar continuidade às movimentações desse tipo, como consolidar convergências pontuais fora das relações de trabalho estáveis? Isso exigirá que os trabalhadores teçam novas redes de solidariedade nos locais de residência, opondo-se à desagregação e à dispersão dos velhos bairros proletários que constitui hoje um dos principais objectivos do urbanismo.
É um dos sintomas reveladores da fase actual do capitalismo, que as acções de protesto no espaço e no tempo de lazer substituam ou coadjuvem as acções de protesto no espaço e no tempo de trabalho.
*[Publicado em Cadernos de Ciências Sociais [Fundação Santo André], nº 1, 2005 (publicado na realidade em 2006)]