TECNOLOGIA, PERDA DO HUMANO E CRISE DO SUJEITO – Laymert Garcia dos Santos

Tecnologia, perda do humano e crise do sujeito do direito

Laymert Garcia dos Santos
 
    Quando se observa a veloz corrosão dos direitos e da Direito suscitada pela evolução econômica de um mundo globalizado, o que salta aos olhos é a impressão de inevitabilidade desse processo. Como se as sociedades nacionais democráticas tivessem sido precipitadas num movimento de desarticulação por uma força tal, que nenhuma outra parece capaz de fazer-lhe frente. Os neoliberais da autodenominada "world class" cunharam uma frase definitiva para expressar, em toda circunstância, essa inevitabilidade, e justificar suas decisões: "Não há alternativa" – dizem eles. A frase sempre soa como um ponto final no debate e, ao mesmo tempo, como uma espécie de isenção de responsabilidade pêlos efeitos das medidas tomadas, por mais negativas e predatórias que elas sejam. Os que resistem ou se opõem, os inconformados e os excluídos são, assim, desafiados, com cinismo e desprezo, a construírem alternativas e a comprovarem a sua consistência.
    Evidentemente, aqueles que afirmam não haver alternativa o fazem convictos de que nenhuma outra força vai emergir e crescer a ponto de ameaçar as tendências dominantes que os favorecem e impulsionam suas iniciativas. Minha pergunta é: De onde lhes vem essa convicção, essa segurança? Talvez sua confiança esteja fundada na crença da primazia absoluta do capital, do seu caráter invencível, desde que o desenvolvimento da racionalidade econômica confundiu-se com o desenvol­vimento da racionalidade tecnocientífica. Com efeito, tudo se passa como se a evolução e o sentido dessas duas racionalidades houvessem se tornado um só e único movimento que por um lado recusa até mesmo a idéia de qualquer limite para o capital, e, por outro, qualquer limitação ao progresso tecnocientífico. Assim, no fundo, a frase "Não há alternativa" assume o contorno de fatos do destino.
    Um exemplo claro da interpenetração entre racionalidade econômica e racionalidade tecnocientífica nos tempos atuais nos é dado por Fumio Kodama1. Conduzindo uma análise empírica da geração, inovação e difusão de altas tecnologias no Japão, o scholar descobriu que está ocorrendo uma mudança paradigmática com relação à tecnologia. "Tal mudança, escreve Kodama, está tornando obsoletos os argumentos de política científica e tecnológica até agora correntes nas teorias da administração de empresas e nas relações internacionais. (…) As transformações estão em toda parte: em quem torna a alta tecnologia disponível; em como esta é gerada; e para que ela é utilizada. Elas estão no campo das empresas industriais c do seu principal negócio, isto é, nos agentes econômicos através dos qual a alta tecnologia chega ao mercado. Elas estão nas atividades de pesquisa e desenvolvimento e nos processos de desenvolvimento tecnológico, isto é, nas atividades intelectuais humanas que geram alta tecnologia. Elas também estão no padrão de inovação e na difusão da tecnologia, isto é, no processo social através do qual a alta tecnologia é realizada."‘.
    Kodama encontra seis categorias de transformações que caracterizam a mudança de paradigma tecnológico. Destes, destaco duas que nos interessam sobremaneira. A primeira refere-se às atividades de pesquisa e desenvolvimento. É que a indústria está promovendo grandes alterações nas tomadas de decisões sobre investimento em pesquisa. As decisões de investir, afirma Kodama, não se baseiam mais nas taxas de retorno e se assemelham muito ao princípio do surfe: as ondas de inovações se sucedem, uma atrás da outra, e você ou investe ou morre. Por outro lado, o padrão de competição também está mudando; até há pouco, o competidor costumava ser uma outra empresa do mesmo setor industrial, mas agora, em muitos casos, o competidor é uma companhia de um setor industrial diferente, o que faz com que se passe de competidores visíveis para inimigos invisíveis. A segunda grande transformação refere-se aos padrões de inovação. Na visão convencional a inovação técnica se realiza através da ruptura das fronteiras de tecnologias existentes, como é o caso dos transistores, por exemplo. Entretanto não é o que ocorre nos campos da mecatrônica, da optoeletrônica e da biotecnologia, nos quais a inovação se dá muito mais através da fusão de diversos tipos de tecnologia do que de rupturas tecnológicas. A fusão, escreve Kodama, significa mais que a soma e a combinação de tecnologias diferentes, porque implementa uma aritmética em que um mais um é igual a três. A fusão é mais do que a complementaridade, pois cria um novo mercado e novas oportunidades de crescimento para cada participante da inovação. A fusão vai além da acumulação de pequenos aperfeiçoamentos, pois mistura sinergeticamente aperfeiçoamentos de vários campos antes separados, criando um produto com um ingrediente extra que não tem igual no mercado. Finalmente, a fusão vai além das relações interindustriais, pois diferentes inovações de diferentes indústrias avançam paralelamente, assumindo a forma de pesquisa conjunta. 3
    As observações de Kodama sugerem que o princípio da competitividade obriga a racionalidade econômica a atrelar-se à racionalidade tecnocientífica, ao subordinar as decisões de investimento não às taxas de retorno, mas à dinâmica da inovação; como se a corrida tecnológica lançasse as empresas numa constante fuga para frente, ou numa constante antecipação do futuro; como se a sobrevivência das empresas no mercado dependesse mais de sua capacidade de invenção c substituição de produtos do que da extensa exploração comercial dos mesmos, cujo ciclo de vida é cada vez mais curto. Por outro lado, a fusão de tecnologias parece imprimir uma velocidade inédita à dinâmica da inovação, confirmando o diagnóstico de Richard Buckminster-Fuller, de que estamos vivendo, desde o início da década de 70, um processo de aceleração da aceleração tecnocientífica. 4
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    Tudo se passa então como se estivéssemos vivenciando um período de ondas de revolucionarização que, emergindo de dentro do capitalismo, lhe dão novo alento e vão lhe abrindo novas perspectivas: é a Revolução Eletrônica, seguida pela Revolução das Comunicações, seguida pela Revolução dos Novos Materiais e pela Revolução Biotecnológica. O impacto crescente que essa evolução econômica e tecnocientífica exerce sobre as sociedades e os efeitos colaterais que ela suscita em todas as áreas começa a ser sentidos e percebidos, mas ainda estamos longe de poder analisá-los e avaliá-los. De todo modo, os aspectos sociais e ambientais negativos que ela já explicitou não parecem arranhar, quanto mais comprometer, a legitimidade do progresso da ciência e da tecnologia. Ora, não há como questionar o caráter aparentemente inexorável e irre­versível do rumo tomado pela evolução econômica e tecnocientífica sem interrogar essa legitimidade.
    O pensamento de Keiji Nishitani é, nesse ponto, de grande valia, na medida em que capta com grande clareza o "espírito" do progresso tecnocientífico e o que torna a soberania da ciência ao mesmo tempo tão onipresente e tão inquestionada. Analisando as relações entre ciência e filosofia de um ângulo novo, o filósofo japonês considera a vigência imediata das leis da natureza nos seres inanimados e nos seres vivos. As coisas inanimadas, diz ele, são completamente passivas à vigência da lei, e nessa medida essa vigência pode ser considerada como direta; nos seres vivos, porém, as leis da natureza surgem leis vividas, pois em todos esses seres as leis se apresentam como leis vividas em suas vidas. Nesse sentido, o termo "instinto" designaria a apreensão ou a apropriação dessas leis, e o comportamento instintivo seria a lei da natureza tornada manifesta 5.
    O modo de ser do objeto técnico, entretanto, não e imediato e sim mediato. Diferentemente do instinto, a tecnologia implica uma apreensão intelectual dessas leis, um processo de abstração que será em seguida desdobrado num processo de concretização: quando o homem pré-histórico aprendeu a fa­zer fogo através do uso de instrumentos, essa habilidade con­tinha embrionariamente a compreensão das leis da natureza como leis. Nesse caso, em vez de manifestar-se diretamente, a lei da natureza se manifesta como lei através da tecnologia do homem, isto é, como atividade refratada pelo conhecimento. "O mesmo ocorre no caso do conhecimento e da tecnologia que se tornam científicos – escreve Nishitani. Nas ciências naturais, as leis tornam-se conhecidas somente como leis em sua abstração e universalidade; a tecnologia que contém tal conhecimento torna-se a tecnologia mecanizada. (…) As má­quinas e a tecnologia mecânica são a suprema incorporação e apropriação das leis da natureza pelo homem"6.
    A vigência das leis da natureza se manifesta portanto em diversas dimensões. No campo físico como matéria, no campo biológico como instinto, no campo humano como matéria, vida e intelecto… e no campo da tecnologia mecânica, como sua forma de manifestação mais depurada. Está se vendo que quanto maior o poder de apropriação, incorporação e uso dessas leis, mais intensa é a sua manifestação. Mas por outro lado, e paradoxalmente, quanto maior o poder dos seres de usar as leis da natureza para seus próprios propósitos, maior é o grau de liberdade de uso dessas leis, menor é a sujeição a elas.
    Nishitani acredita que nada expressa melhor esse paradoxo do que a máquina. "As máquinas, diz ele, são puros produtos do intelecto humano, construídas para os propósitos do próprio homem. Em lugar algum podem ser encontradas no mun­do da natureza (como produtos da natureza); entretanto, a obra das leis da natureza encontra sua expressão mais pura nas máquinas, mais pura do que em qualquer produto da natureza. As leis da natureza operam diretamente nas máquinas, com uma imediaticidade que não pode ser encontrada em produtos da natureza. Na máquina, a natureza é trazida de volta para si mesma de uma maneira mais depurada (abstraída) do que é possível na própria natureza. Assim as operações da máquina tornaram-se uma expressão do trabalho do homem. Com uma abstração mais pura do que tudo nos produtos da natureza, quer dizer, com um tipo de abstração impossível para os acontecimentos naturais, a expressão das leis da natureza tornou-se uma expressão do trabalho do homem. Isto mostra a profun­didade do controle das leis da natureza. (…) Entretanto, visto pelo outro lado, o surgimento da máquina marca a suprema emancipação da vigência das leis da natureza, a suprema aparição da liberdade de usar tais leis. Na máquina, o trabalho humano é completamente objetivado; de certo modo, a ação intencional do homem é incorporada na natureza como parte das coisas da natureza, e assim o controle sobre a natureza é radicalizado. E um controle sobre a natureza mais abrangente do que o autocontrole da própria natureza. Vemos então aqui com a maior clareza a relação segundo a qual subordinar-se ao controle da lei implica diretamente em liberar-se dela"7.
    A análise de Nishitani é importante porque nos faz perce­ber a paradoxal relação entre homem e natureza mediada pela ciência e pela tecnologia. Sua compreensão da máquina ao mesmo tempo como suprema manifestação das leis da natureza e como supremo artifício é extremamente instingante. Mais ainda é sua caracterização da nova situação criada com o advento da máquina. Com efeito, o filósofo apontara um movimento segundo o qual, da matéria inerte à máquina, os seres assumiam cada vez mais o controle das leis da natureza; mas agora este movimento estaria sofrendo um processo de inver­são, no qual o controlador é cada vez mais controlado. De um lado, as leis da natureza começaram a reassumir o controle sobre o homem que as controla; de outro, quarto mais o ho­mem tem de sujeitar-se, mais procura tratar as leis da natureza como algo que lhe é completamente exterior.
Vejamos como as coisas se passam. Segundo Nishitani, o campo no qual a máquina aparece é constituído pela articula­ção entre dois fatores: uma inteligência abstrata que busca a racionalidade científica e uma natureza "desnaturalizada", "mais pura do que a própria natureza". Ocorre que esse campo está minando a própria natureza da humanidade. Quando as leis da natureza assumem o máximo de controle sobre os seres e os seres assumem o máximo de controle sobre as leis, rompe-se a barreira entre a humanidade do homem e a naturalidade da natureza, instaurando-se uma profunda perversão, uma inversão da relação mais elementar na qual o homem assumira o controle das leis da natureza por meio do controle que essas mesmas leis forjaram sobre a vida e o trabalho do homem; agora as leis da natureza reassumem o controle através de um processo de mecanização do homem. A essa inversão corresponde uma outra, relativa à vigência das leis da natureza sobre o homem. Pois o máximo de racionalidade científica e o máximo de natureza desnaturalizada levam o homem a comportar-se como se existisse inteiramente fora das leis da natu­reza, instaurando um modo de ser que se ancora no niilismo. Como escreve Nishitani: "Desde tempos imemoriais o homem falou da vida respeitando a lei ou a ordem da natureza. Agora esse modo de ser foi completamente rompido. Em seu lugar surge um modo de ser no qual o homem se situa na liberdade do niilismo e comporta-se como se estivesse usando as leis da natureza completamente de fora. É um modo de ser do sujeito que adaptou-se a uma vida de desejo cru e impetuoso, de vitalidade nua. Nesse sentido, assume uma forma próxima do "instinto"; mas como modo de ser de um sujeito situado no niilismo, é, na verdade, diametralmente oposto ao "instinto"". Nishitani conclui que o surgimento da mecanização da vida humana e a transformação do homem num sujeito completamente não-racional perseguindo seus desejos são faces da mesma moeda. Para ele, a tecnologia das máquinas revela em sua forma mais radical a situação na qual subordinar-se às leis da natureza implica diretamente em emancipar-se delas. Mas ao mesmo tempo permanece oculta a verdadeira configuração dessa situação; isto é: a inversão, a perversão da antiga relação entre homem e natureza. A racionalização da vida leva o ho­mem a submeter-se às máquinas que ele mesmo construiu; por outro lado, o progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao do progresso da moralidade da conduta humana, já que o processo fortalece um modo de ser pré-reflexivo, não-racional e não-espiritual, e nem por isso instintivo.
    Nishitani escreveu seu texto em meados dos anos 50 e já apontava, ali, em plena era da tecnologia mecânica, a tendência à perda do humano. É interessante observar que a mesma preocupação vai se manifestar com grande acuidade nos ensaios escritos vinte anos mais tarde por Philip K. Dick sobre o homem, o andróide e a máquina. 9 A evocação de seus textos justifica-se em primeiro lugar porque a Revolução Eletrônica já está se explicitando e trocando a tecnologia mecânica pela tecnologia da informação. Em segundo lugar, porque, como grande escritor de ficção científica, Dick é levado a operar um deslocamento conceituai, como ele mesmo assinala, para escrever sobre o nosso mundo, mas o nosso mundo transforma­do naquilo que ele não é ou ainda não é.
A leitura de tais ensaios mostra que a situação descrita por Nishitani radicalizou-se, a ponto de não se saber mais onde se encontra o humano. "Hoje, observa Dick, a maior mudança que ganha terreno em nosso mundo é, provavelmente, a ten­dência do ser vivo para a reificação, e ao mesmo tempo a recíproca animação do mecânico. Já não temos categorias pu­ras do ser vivo e do ser inanimado. (…) Estou falando de nosso mundo real e não do mundo da ficção quando digo: Um dia teremos milhões de entidades híbridas (…). Vamos ter de que­brar a cabeça para defini-las verbalmente como ‘homem’ versus ‘máquina’. A questão real é e será: À entidade compósita comporta-se de modo humano? (…) O ‘homem’ ou ‘ser hu­mano’ são termos que devemos compreender e usar corretamente, mas eles não se referem à origem ou a qualquer onto­logia e sim ao modo de ser no mundo (…)"10.
O comentário de Dick aponta para uma intensificação da mecanização do homem e para um aprofundamento da relação perversa entre homem e natureza. Por outro lado, constatando a perda do humano e tentando encontrar onde este ainda se refugia, o escritor descobre que ele se afirma no mais puro egoísmo, no desejo de expressar uma vitalidade cada vez mais amea­çada pelo avanço da dominação fundada na racionalidade tecnocientífica. Numa palavra: Dick descobre que o humano se manifesta num comportamento "selvagem", o comportamento de um sujeito que persegue a satisfação de seus desejos negando a mecanização e a ordem que a sustenta. Com efeito, como não perceber o niilismo do que Dick preconiza ao escrever: "(…) a ética mais importante para a sobrevivência do verdadeiro indi­víduo humano seria: engane, minta, escape, trapaceie, esteja em outra, forje documentos, construa dispositivos eletrônicos aperfeiçoados na sua garagem que sejam capazes de despistar os dispositivos usados pelas autoridades"?
Os ensaios de Dick parecem confirmar a análise de Nishitani, segundo a qual a mecanização da vida humana e a transformação do homem num sujeito completamente não-racional, perseguindo seus desejos são faces da mesma moeda. Por outro lado, também parecem corroborar a observação do filósofo japonês de que o progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao do progresso da moralidade da conduta humana. O mais fascinante, no entanto, é dar-se conta de que a satisfação do desejo desse sujeito que tenta escapar da mecanização se faz cada vez mais intensificando o próprio pro­cesso de mecanização. Isso já despontava na recomendação feita por Dick. Mas creio que a melhor maneira de entender o que se passa verifica-se no campo da reprodução humana. O desejo de ter um filho por parte de indivíduos que não podem ou não querem tê-lo pelas vias biológicas "normais" pode ser satisfeito atualmente graças aos avanços tecnocientíficos da chamada reprodução assistida. Como diz Lori Andrews12, "os anos 60 trouxeram o sexo sem procriação; os 80 trouxeram a procriação sem sexo". O leque de opções para a satisfação desse desejo amplia-se ininterruptamente: das inseminações artificiais à possibilidade de clonagem humana, passando pêlos bebês de proveta, os bancos de esperma, as barrigas de aluguel, a comercialização de ovos e embriões e as promessas da engenharia genética para a geração da "criança perfeita". Ora, a abertura desse campo está criando situações inéditas. Na Inglaterra, uma jovem deseja conhecer a experiência da imaculada concepção porque identifica-se com a Virgem Maria, enquanto um casal de gays e um casal de lésbicas desejam constituir um novo tipo de família. Na Itália senhoras de idade desejam ser mães. Clientes japoneses viajam para contratar barrigas de aluguel no exterior porque a atividade é ilegal em seu país. Nos Estados Unidos, diversos bebés gerados por mães substitutas vêm sendo abandonados porque nasceram com o sexo errado; ao mesmo tempo, disputas judiciais colocam aos juizes a responsabilidade de ter de decidir quem é a mãe: a mulher que forneceu o óvulo ou aquela que portou e pariu a criança? Em todo o mundo as concepções tradicionais de vida, de morte, de procriação, de filiação, de parentesco estão sendo implodidas e é grande a controvérsia em torno do momento em que o material humano passa a ser pessoa.
Na Europa e nos Estados Unidos os juristas começam a se defrontar com os efeitos da combinação perversa entre meca­nização do humano e constituição de um sujeito não-racional perseguindo seus desejos. Num livro interessantíssimo, o advogado Andrew Kimbrell expõe, através de um inventário de casos julgados pêlos tribunais americanos, os dilemas éticos e os problemas jurídicos suscitados pelo engenheiramento e a comercialização da vida. Sua leitura deixa a impressão de que o Direito vem sendo atropelado pelo desenvolvimento tecnocientífico, que lhe cria situações novas para as quais lhe faltam parâmetros. 13 Por sua vez, Catherine Labrusse-Riou demonstra que o reconhecimento jurídico do direito das pessoas está sendo posto em xeque pelas dificuldades de distinguir as pessoas das coisas (caso do embrião in vitro ou congelado e caso do comatoso ou do estado vegetativo, que embaralham as fron­teiras e as representações da vida e da morte); de distinguir os sexos (fenômeno do transexualismo, que embaralha as fron­teiras entre homens e mulheres, provocando a indiferenciação sexual); de distinguir o homem do animal (caso das experimentações biotecnológicas que misturam genes humanos e animais, criando por exemplo um rato que desenvolve uma orelha humana, ou uma ovelha que produz proteína humana no seu leite, graças ao engenheiramento de células humanas em seu corpo); e, finalmente, de distinguir o homem da máquina (caso da inteligência artificial)14.
    Tudo isso parece indicar que na verdade, com a perda do humano, o próprio sujeito de direito entrou em crise. Com efeito, num artigo contundente Bernard Edelman acaba chegando a conclusões muito próximas das elaboradas por Nishitani a respeito da soberania da ciência e do triunfo do "espírito" do progresso tecnocientífico. Entretanto, o jurista o faz através de uma crítica do próprio humanismo jurídico, com o intuito de se perguntar se o Direito pode ser um recurso para preservar a humanidade do homem nos tempos atuais15.
Antes de mais nada, Edelman considera que o Direito nada pode esperar do humanismo porque a evolução tecnocientífica encarregou-se de descartá-lo. No seu entender, o humanismo do século XIX foi uma tentativa de coabitação da filosofia com a ciência na qual pretendia-se, por um lado, proteger a essência do homem, isto é, sua humanidade, e por outro conceber essa essência do ponto de vista científico. O tempo, entretanto, encarregou-se de mostrar que isso era uma ilusão, na medida em que a ciência colocou o humanismo a seu serviço para a consecução de seu próprio fim, que nada tinha de humanista. Corno isso se deu? Edelman estima que isso ocorreu através da "loucura" do direito subjetivo.

"Tradicionalmente, diz ele, o direito subjetivo é a expressão do poder reconhecido pelo Direito ou pelo Estado ao indivíduo. No sistema dos Direitos humanos, o sujeito de direito ocupa o centro, do mesmo modo que o homem, antes de Copérnico, ocupava o centro do universo. Por isso, o sujeito é, ao mesmo tempo, o fim do direito e sua origem. O fim do direito, na medida em que tudo converge para ele, sua origem, na medida em que, sem o reconhecimento de sua existência, o direito não teria mais objeto. Isso significa que, no sujeito, o direito exprime sua essência, e em sua defesa reconhece-se a maior ou menor democracia de um dado sistema social. Esse é o espírito que anima a Declaração dos direitos do homem e do cidadão"16.

Entretanto, na própria Declaração, essa centralidade, absoluta do sujeito era relativizada pela liberdade reconhecida aos outros sujeitos. Assim, além do postulado de um sujeito todo-poderoso, a sociedade dos Direitos humanos também postulava o reconhecimento de uru outro todo-poderoso, O conceito de limite era portanto subsumido pelo conceito de reconhecimento. Desse modo, "o sistema dos Direitos huma­nos teria resolvido o conflito entre o individualismo indomado e o direito, já que esse individualismo não repousa sobre uma restrição legal dos impulsos mas sim de uma limitação desses impulsos através do reconhecimento dos de outrem"17.
Ora, constata Edelman, atualmente esse equilíbrio desa­pareceu: "Não só o sujeito aumentou sua potência porque a ciência lhe forneceu os meios, como também o outro não exerce mais o papel de fronteira ou de limite. Tudo se passa como se o direito subjetivo tivesse perdido seus contornos e que sua selvageria originária pudesse, então, manifestar-se livremente; tudo se passa como se estivéssemos diante de um sujeito ‘desenfreado’ (…). (…) a destruição da idéia de natureza natural acarretou um desenvolvimento extraordinário dos direitos subjetivos. Como a natureza não exercia mais o papel de limite, o sujeito pôde se expandir no artifício de uma onipotência absoluta. De modo correlato, a supressão do outro como limite produz uma liberação do mesmo tipo na ordem social. (…) O liberalismo, em sua forma absoluta, funda-se num tal narcisismo, e por sua vez permite sua expansão. Quando um sistema funda-se sobre desejos ilimitados – ir à lua, reproduzir-se de modo idêntico, escapar das dores da maternidade, escapar da angústia, ‘enxertar’ seu cérebro num computador… – e instaura um mercado desses desejos, o liberalismo que o inspira é ao mesmo tempo ‘amoral’ e estimulador daquilo mesmo que o nutre"1. Em tal contexto, e para que isso ocorra, o direito subjetivo precisa ser desatado, desenfreado e acolher nele mesmo uma selvageria indomada. A tecnociência fornece essa possibilidade porque o que a caracteriza é precisamente a ausência de limites, isto é, a abolição de todas as fronteiras, a abolição de todos os interditos. A tecnociência autoriza a realização dos mais loucos desejos de conquista: o desejo de tudo fazer e de tudo saber. A abolição de fronteiras, diz Edelman, surge como a transgressão do próprio humano, que se formula assim: não reconheço a ninguém o direito de deter o meu desejo, ou, pior ainda: o direito está aí para permitir a realização do meu desejo. Desabrido, desenfreado, o direito subjetivo acaba se voltando contra a própria humanidade do homem, na medida em que concede ao sujeito, no campo da tecnociência, a possibilidade de tornar-se sujeito absoluto.
Pode o Direito limitar a "loucura" do direito subjetivo, a fim de preservar a humanidade do homem? Edelman acredita que sim. E, para demonstrá-lo, o jurista toma como exemplo o caso de um biólogo que pede aos tribunais a liberdade de utilizar "material humano". Nesse caso, para responder, o juiz deve classificar esse "material" na categoria das coisas ou das pessoas; e sua classificação nesta ou naquela categoria produz efeitos. Ora, a razão de tal classificação só se refere ao próprio direito e a nenhum outro campo do conhecimento. "Assim, escreve Edelman, basta que o direito proclame, contra qualquer evidência científica, que uma célula humana é uma coisa, basta que, contra qualquer evidência, ele proclame que um útero é um objeto de locação, para que a célula seja patenteável e o útero seja submetido a um contrato de locação. Em outras palavras, a classificação jurídica não visa a verdade, não tem nada a ver com o verdadeiro e o falso e nem pretende dar conta de uma rea­lidade objetiva. Ela implica num julgamento"19.
Qual é o sentido dessa classificação? A resposta de Edel­man é categórica: para o direito, classificar é traçar limites segundo seu próprio ponto de vista, instaurar fronteiras entre o lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, entre o possível e o impossível. Se o juiz considerar o "material humano" como coisa, tal qualificação não tem nada a ver com a definição científica, mas antes decorre de um julgamento sobre um agregado de células que lhe atribuirá um estatuto na ordem jurídica. Assim, se disser que uma célula é urna coisa, vai fazê-la entrar numa história da "coisa humana", junto com o escravo e o corpo da cortesã, por exemplo; isto é: um estatuto relacionado com a propriedade, o direito de herança, etc. Para o Direito, classificar é, portanto, traçar limites; mas, acima de tudo, traçar limites que regulem os impulsos do sujeito, que o impeçam de tornar-se todo-poderoso, que refreiem a sua vontade. Por isso mesmo, Edelman considera que o Direito está em permanente conflito com o direito subjetivo; afinal, a realização do narcisismo absoluto implícito no direito subjetivo significaria o fim do próprio Direito.
Vimos com Nishitani que a racionalidade econômica do mercado, a racionalidade tecnocientífica e um sujeito completamente não-racional perseguindo seus desejos constituem um processo perverso e niilista que acarreta a perda do humano. Vemos agora, com Edelman, que, no campo jurídico, tal processo se exprime através de um direito subjetivo que transgride até a humanidade do homem; vimos, ainda, que o Direito se encontra em permanente conflito com o direito subjetivo. Em meu entender, tudo leva a crer, então, que o Direito se encontra tensionado por duas tendências contraditórias. De um lado, se o processo perverso prosseguir de modo ilimitado, acaba implodindo o próprio Direito através da "loucura" do direito subjetivo. De outro lado, para continuar existindo, o Direito precisa afirmar a sua razão de ser, a sua normatividade, e es­tancar essa "loucura", traçando limites para o mercado e para a atividade tecnocientífica. Ora, como tem se expressado essa tensão no campo jurídico? A primeira tendência tem se reali­zado através da desregulação do mercado e da universalização dos direitos de propriedade intelectual, que confere à ciência e à tecnologia uma liberdade inaudita. A segunda tendência vem se manifestando através do trabalho dos juristas que ten­tam construir um Direito não-humanista para defender os interesses da natureza e dos cidadãos em seu conjunto, para além dos interesses individuais privados, como bem mostra o jurista francês François Ost, ao escrever: "Depois de dois séculos de insistência sobre as prerrogativas individuais, chegou o momento de perceber que uma sociedade só é viável quando as tarefas são assumidas coletivamente pêlos cidadãos: nesse sentido, (…) propomos uma nova maneira de entender os direitos coletivos." 20

 

NOTAS


1 KODAMA, F. Analyzing Japanese high technologies: The techo-paradigm shift, Londres, Pinter Publishers, 1991.
2 Idem, p. l e 2.
3. Ibid., p. 3 e 121.
4 BUCKMINSTER-Fuller, R. Criticai path, Nova York, St. Martin’s Press, 1985.
5 NISHITANI, K. Religion and Nothingness, Berkeley, University of Califórnia Press, 1982. Trad. e Intr. Jan van, p. 79s.
6 Idem, p. 81-82.
7 Ibid., p. 83-84.
8 Ibid., p. 85-86.
9 DICK, Philip K. "The Android and the Human", "Man, Android, and Machine", in: The shifting realities of Philip K. Dick: Selected literary and philosophical writings, Ed. & Intr. Lawrence Sutin, New York, Pantheon Books, 1995.
10 Idem, p.212.
11 Ibid., p.194-195.
12 Citado por KIMBRELL, A. THE HUMAN BODY SHOP – THE ENGINEERING AND MARKETING OF LIFE, Penang (Malaysia), The Third World Network, 1993, p.68
13 Cf. nota anterior.
14 LABRUSSE-RIOU, C. "La vérité dans lê droit dês personnes", in Edelman, B. et Hermitte, M.-A., « L’Homme, la Nature et lê Droit », Paris, Christian Bourgois. Ed., 1988, p 159-198.
15 Edelman, B. "Critique de 1’Humanisme juridique", in Edelman, B. et Hermitte, M.-A., op. cit., p. 287s.
16 Idem, p. 295.
17 Ibid., p. 297.
18 Ibid., p. 297-298.
19 Ibid., p.303.
20 OST, F. “Derecho, tecnología, Medio Ambiente: Um Desafio para las Grandes Dicotomías de la Racionalidad Ocidental” In: Revista de Derecho Público, n. 6, Santa Fe de Bogota, Universidade de Los Andes, Facultad de Derecho, Junio de 1996, p. 11.

 

 

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