33 TESES *
[SOBRE AS TAREFAS DA LUTA SOCIALISTA APÓS O FASCISMO]
HERBERT MARCUSE
O manuscrito que intitulo "33 Teses" foi encontrado no arquivo Max Horkheimer, sem título, com um "H. Marcuse. Febr. 1947" escrito à mão, no canto superior direito. No centro da página está escrito "Teil I" (Parte I) O manuscrito contém 33 teses sobre a situação do mundo de então e que deveriam ser uma contribuição para um possível relançamento do periódico do Instituto Zeitschrift für Sozialfonchung. Apesar de uma carta a Horkheimer de 17 de outubro de 1947 (ver página 343) indicar que Marcuse estava trabalhando nas teses, este manuscrito não foi encontrado. Estamos assim publicando o esboço de fevereiro de 1947, encontrado no arquivo Horkheimer. Agradecemos a Gunzelin Schmid Noerr por permitir o acesso a este documento. Estas teses foram traduzidas para o inglês por John Abromeit.
33 TESES
1 Após a derrota militar do fascismo de Hitler (que foi uma forma prematura e isolada de reorganização capitalista), o mundo está se dividindo em um bloco neofascista e outro soviético. O que ainda resta das formas democrático-liberais ficará comprimido entre os dois blocos ou será absorvido por eles. Os Estados nos quais a antiga classe dominante sobreviveu econômica e politicamente à guerra se tornarão fascistizados num futuro previsível, enquanto os outros entrarão para o bloco soviético.
2 As sociedades neofascistas e soviéticas são inimigas econômicas e de classe e uma guerra entre elas é provável. Mas ambas são, em suas formas essenciais de dominação, anti-revolucionárias e hostis ao desenvolvimento socialista. A guerra pode forçar o Estado soviético a adotar uma "linha" nova e mais radical. Este tipo de mudança seria superficial e sujeito a revogação; se bem-sucedida, seria neutralizada pelo crescimento massivo do poder do Estado soviético.
3 Sob estas circunstâncias, só há uma alternativa para a teoria revolucionária: criticar impiedosa e abertamente os dois sistemas e sustentar, sem concessões, a teoria marxista ortodoxa contra ambos. Diante da realidade política, esta posição seria impotente, abstraía e apolítica, mas quando a realidade política como um todo é falsa, a posição apolítica pode ser a única verdade política.
4 A possibilidade de sua realização política é, em si mesma, parte da teoria marxista. A classe operária e a práxis política da classe operária, e as relações de classe em processo de mudança (no nível nacional e internacional) continuam a determinar o desenvolvimento conceituai da teoria, assim como são, por sua vez, determinadas por ele – não pela teoria sem práxis, mas por aquela que "se apodera das massas". A realização não é nem o critério nem o conteúdo da verdade marxista, mas a impossibilidade histórica da realização é irreconciliável com ela.
5 A posição mencionada na tese #3 reconhece a impossibilidade histórica de sua realização. Fora do bloco soviético não há movimento operário "capaz de uma revolução". Os social-democratas se tornaram mais do que meros burgueses. Os grupos trotskistas estão divididos c desamparados. Os partidos comunistas não estão dispostos (atualmente) a fazer a revolução, sendo portanto também incapazes de fazê-la, mas são a única organização de classe anticapitalista do proletariado e assim a única base possível para a revolução (atualmente). Ao mesmo tempo, porém, são as ferramentas da política soviética e, como tais, hostis à revolução (atualmente). O problema está na unidade, dentro dos partidos comunistas, de forças potencialmente capazes de uma revolução, com outras hostis à revolução.
6 A total subordinação dos partidos comunistas à política soviética é, em si mesma, o resultado de relações de classe modifica das e da reorganização do capitalismo. O fascismo, como forma moderna da ditadura de classe do capital, mudou completamente as condições da estratégia revolucionária. O capital criou (não só nos Estados fascistas) um aparato terrorista com um poder tão marcante e uma presença tão onipotente que as armas tradicionais da luta de classes do proletariado parecem impotentes contra ele. A nova tecnologia de guerra e sua rígida monopolização e especialização tornam inviável o armamento do povo. A identificação aberta do Estado com a economia e a integração da burocracia sindical ao Estado trabalham contra as greves políticas, especialmente a greve geral – talvez a única arma contra o capital fascistizado. Este fato faz que o único meio possível de se opor com sucesso ao massivo aparato político-militar do capital seja construir e implementar um contra-aparato militar e político, pelo menos igualmente poderoso, ao qual a estratégia revolucionária tradicional esteja subordinada. A União Soviética poderá ser vista como este tipo de contra-aparato.
7 Se os governantes da União Soviética ainda estão ou não interessados na revolução era algo secundário no contexto deste argumento. O argumento foi mantido, mesmo quando se presumiu que não havia mais nenhum vínculo subjetivo entre o poder soviético e a revolução. O poder soviético seria, assim foi dito, inevitavelmente forçado a um conflito cada vez mais explosivo com os Estados capitalistas – mesmo que estes só estivessem representando e buscando os interesses nacionais. A União Soviética seria o objeto mais perigoso e sedutor da política imperialista do capital e como tal o inimigo que mais cedo ou mais tarde seria forcado a pegar em armas. A oposição contra o capital seria a base para uma futura reunificação entre a revolução e o sovietismo – assim como a atual aliança do capitalismo com o sovietismo é a base para a separação entre a revolução e o sovietismo.
8 Esta justificativa da linha comunista é aberta à objeção de que a educação em uma política anti-revolucionária e nacional torna a classe operária irremediavelmente incapaz de promover uma revolução – mesmo que seja mera "tática". Cria "interesses particulares" que têm sua própria dinâmica e vêm a determinar a tática. Mina a consciência de classe e reforça a submissão ao capital nacional. Opõe-se à unidade entre economia e política e subsume as relações de classe aos ditames políticos.
9 A rejeição da justificativa política da subordinação da estratégia revolucionária ao sovietismo é apenas o primeiro passo para fazer que os problemas retomem à sua esfera real – o das relações reais de classe. A linha comunista, por trás de sua própria justificativa política, aponta para estas relações: é a expressão e o resultado de uma mudança estrutural dentro da classe operária e na sua relação com as outras classes. A transformação da forma de dominação do capital (sobre a qual se baseia a justificativa política da linha comunista) também deveria ser compreendida em termos desta mudança estrutural.
10. Ela encontrou sua expressão mais óbvia no fato de a social-democracia ter vitoriosamente sobrevivido ao fascismo (cuja ascensão ao poder facilitou), de ter mais uma vez monopolizado todo o movimento organizado de operários fora dos partidos comunistas, de os partidos comunistas estarem se tornando, eles próprios, mais social-democráticos e de, até agora, nenhum movimento revolucionário de operários ter surgido do colapso do fascismo de Hitler. Assim, a social-democracia parece ser a expressão adequada do movimento operário não-comunista. A social-democracia também não se radicalizou; em vez disto, seguiu essencialmente sua política pré-fascista de cooperação de classes. O movimento operário não-comunista é um movimento operário aburguesado [verbürgerlicht] (no sentido objetivo) e as vozes dos operários contra os partidos comunistas são vozes contra a revolução, não apenas contra o sovietismo.
11 Não se pode explicar o aburguesamento ou a reconciliação de grande parte da classe operária com o capitalismo apontando-se a (crescente) "aristocracia operária". A aristocracia operária e os fatores que a tornam possível com certeza tiveram um papel decisivo no desenvolvimento da social-democracia, mas a profundidade e a amplitude do aburguesamento vão bem além do nível da aristocracia operária. Na Alemanha e na França, os agentes do aburguesamento no período pós-fascísta não são de modo algum os expoentes principais da aristocracia operária. A profundidade e a amplitude do aburguesamento também não podem ser explicadas pela dominação da burocracia sobre o aparato organizativo (de partidos e sindicatos). O aparato organizativo foi desmantelado pelo fascismo, mas o vácuo que o fascismo deixou atrás de si não foi preenchido por um contramovimento, sendo antes esta mesma burocracia que está de volta no poder.
12 Uma das tarefas mais urgentes da teoria é investigar o aburguesamento em todas as suas manifestações. Repetindo: o aburguesamento deve ser visto como um fenômeno de classe objetivo, não como a vontade insuficiente dos social-democratas de fazer a revolução ou como sua consciência burguesa, mas, antes, como a integração econômica e política de grande parte da classe operária ao sistema do capital, como uma mudança na estrutura da exploração. A base desta investigação pode ser encontrada nas referências de Marx à mais-valia extra e à posição monopolizadora de certos produtores e esferas de produção. O desenvolvimento resulta, por um lado, na fusão direta do Estado com o capital e, por outro, na regulamentação estatal-administrativa da exploração, que leva à substituição do livre contrato de trabalho por contratos coletivos públicos obrigatórios. Estes fatores definem os limites dentro dos quais a integração econômica da classe operária está se efetuando. Com ela, a porção (quantitativa e qualitativa) do produto social que cabe à classe operária está crescendo de tal maneira que a oposição ao capital está se transformando em ampla cooperação.
13 No curso deste mesmo desenvolvimento, o peso total da exploração recai sobre os grupos que ocupam uma posição marginal ou alheia dentro da sociedade, os "de fora", excluídos da parte integrada da classe operária e de sua solidariedade e, em caso extremo, os "inimigos". São os "desorganizados", "operários sem qualificação", trabalhadores rurais ou migrantes, minorias, colonizados e semicolonizados, prisioneiros etc. Aqui a guerra deve ser vista como um elemento essencial do processo capitalista como um todo: a reprodução voraz do capital monopolista através do saque dos países conquistados e do seu proletariado; criação de concentrações externas de exploração excedente e empobrecimento absoluto. O fato de a pilhagem voraz fazer uso da mais avançada tecnologia moderna e atingir países capitalistas altamente desenvolvidos reforça o poder do capital monopolista e seu Estado vitorioso a um grau jamais visto.
14 A identificação econômica e política da parte integrada dos trabalhadores com o Estado capitalista vem acompanhada de uma integração e identificação "cultural" não menos decisiva. A tese da legitimidade da sociedade existente, que, mesmo deficientemente, afinal mantém e abastece o todo, deveria ser aplicada a todas as esferas da vida social e individual. Sua validade tem sido fortemente confirmada pela refutação óbvia de seu oposto no desenvolvimento da revolução russa. O fato de a primeira revolução socialista bem-sucedida ainda não ter levado a uma sociedade mais livre e feliz contribuiu imensamente para a reconciliação com o capitalismo e objetivamente desacreditou a revolução. Estes acontecimentos permitiram que a sociedade existente surgisse sob uma nova luz e a sociedade existente compreendeu como usar isto em seu proveito.
15 O fenómeno da identificação cultural exige que o problema do "cimento cultural" (Kitt) seja discutido sobre uma base mais ampla. Um dos mais importantes fatores aqui envolvidos é o nivelamento das forças anteriormente vanguardistas-oposicionistas com o aparato cultural do capitalismo monopolista (a transformação e aplicação da psicanálise, arte moderna, sexualidade etc. no processo de trabalho e lazer). Antes e acima de tudo, os efeitos do "Kitt" dentro da classe operária deveriam ser investigados: "gerenciamento científico", racionalização, o interesse do operário no aumento da produção (e, com isto, a intensificação da exploração), reforçando os sentimentos nacionalistas.
16 A estratégia comunista da ditadura de partido é a resposta ao aburguesamento da classe operária. Se a revolução só pode ser levada a cabo pela classe operária, que, no entanto, foi alienada de sua tarefa por meio de sua integração ao sistema do capital, então a revolução pressupõe a ditadura da "vanguarda" revolucionária sobre a classe operária integrada. Isto torna a classe operária objeto da revolução que só pode passar a ser sujeito por intermédio da manipulação e organização do partido. A ditadura comunista sobre o proletariado se torna o primeiro passo para uma ditadura do proletariado.
17 A única alternativa seria a inversão objetiva do aburguesamento, o rompimento da integração causado pelas manifestas contradições do capitalismo, e que necessariamente também minariam a base econômica sobre a qual o capital mantém a integração. Mas nas crises que virão o capital surgirá fascistizado ou, mais uma vez, como capital fascista: em seu ápice, a classe operária americana já está amplamente enfraquecida, sua organização esfacelada e o aparato militar e policial onipresente. Se a Inglaterra tiver um desenvolvimento independente, então o socialismo sindical anti-revolucionário formará ali uma sociedade de classe média que tornará o aburguesamento ainda mais perfeito. A França ainda tem a possibilidade de desenvolver-se em qualquer uma das três vias: a fascista, a socialista sindicalista, ou a soviética. E a Alemanha permanecerá subjugada no futuro próximo, como objeto destas três forças. As contradições em desenvolvimento no capitalismo tendem ao fascismo ou ao socialismo de Estado anti-revolucionário -não à revolução.
l7a O socialismo sindicalista dominante na Inglaterra (e que começa a surgir na Alemanha) ainda não é um socialismo de Estado. As socializações parciais, que são efetuadas basicamente por razões "econômicas" (aumento de produtividade, racionalização, capacidade de competir, centralização da administração) ou como punição política, permitiram que as posições decisivas do capital (indústria de aço e ferro, indústria química na Inglaterra) permanecessem intactas. O estágio do socialismo de Estado não é atingido até que o governo tenha assumido e legalizado o controle da indústria como um todo e tenha encampado a propriedade do capital privado. O governo, o Estado – não os produtores unificados, a classe operária.
18 A tendência social do socialismo de Estado é anti-revolucionária. O poder sobre os meios de produção foi transferido para o Estado, que exerce esse poder por meio do emprego do trabalho assalariado. O Estado também assumiu o papel de direção do capital como um todo ("Gesamtkapitalisten"). Os produtores diretos não controlam a produção (e com ela seu destino) mais do que no sistema do capitalismo liberal-democrata. Permanecem subordinados aos meios de produção. A dominação dos humanos mediada pêlos meios de produção continua a existir. O interesse universal, para o qual a economia planejada é projetada e implementada, é o aparato existente da produção, a forma existente da divisão social do trabalho (nacional e internacional) e as necessidades sociais existentes. Estas não foram fundamentalmente alteradas; supõe-se que a mudança deva ocorrer gradualmente, como conseqüência do planejamento. Mas deste modo o socialismo de Estado mantém a base da sociedade de classes. A abolição das classes, a transição para uma sociedade livre pressupõe a mudança que o socialismo de Estado estabelece como sua meta. A diferença no tempo significa uma diferença qualitativa.
19 O aparato de produção que se desenvolveu sob o capitalismo, impelido pelo trabalho assalariado dentro da forma existente da divisão do trabalho, perpetua as formas existentes de consciência e necessidades. Perpetua a dominação e a exploração, mesmo quando o controle do aparato é transferido para o Estado, isto é, para o universal, que é, ele mesmo, um aparato de dominação e exploração. Antes da revolução, o universal não é um fator no socialismo: sua dominação não é mais livre nem necessariamente mais racional do que a do capital. O socialismo significa um universal determinado: o das pessoas livres. Até que a sociedade comunista desenvolvida se torne real, o universal só poderá tomar a forma da dominação da classe operária revolucionária, porque somente esta classe pode negar todas as classes, só ela tem o poder de abolir as relações existentes de produção e todo o aparato que vem com elas. A primeira meta da ditadura comunista sobre o proletariado (ver #16) deve ser a de submeter o aparato de produção ao proletariado: a república conselhista.
20 Esta meta e toda a política que a acompanha não constam atualmente do programa de nenhum partido comunista. É incompatível com a social-democracia. Na situação existente, é sugerida apenas como pura teoria. Esta separação entre teoria e prática é uma exigência da própria prática e permanece voltada para ela. Isto significa, negativamente, que a teoria não se alia com qualquer grupo ou constelação anticomunista. Os partidos comunistas são e continuarão sendo o único poder antifascista. Sua denúncia deve ser puramente teórica. Sabe-se que a realização da teoria só é possível através dos partidos comunistas e que ela precisa da ajuda da União Soviética. Esta consciência deve estar contida em todos os seus conceitos. Mais: em todos os seus conceitos a denúncia do neofascismo e da social-democracia deve superar a da política comunista. A liberdade burguesa da democracia é melhor do que a arregimentacão total, mas foi literalmente comprada por décadas de exploração prolongada e pelo retardamento da liberdade socialista.
21 A própria teoria se vê diante de duas tarefas principais: a análise do aburguesamento (#12-15) e a construção do socialismo. Os motivos que levaram Marx a omitir este tipo de construção devem ser reconsiderados à luz do dano causado pelas construções espúrias e semi-socialistas. A construção do socialismo se vê diante da tarefa de repensar a teoria das duas fases ou a diferença entre socialismo e comunismo, que domina a discussão atualmente. Esta teoria já pertence ela mesma ao período do aburguesamento e da social-democracia, como uma tentativa de levar este fenômeno para a concepção original e resgatar esta última contra ele. Pressupõe que a sociedade socialista irá "emergir" da capitalista e que a sociedade capitalista caminhará para o socialismo. Aceita, para a primeira fase, a continuação da subordinação do trabalho à divisão do trabalho, a continuação do trabalho assalariado e a dominação do aparato produtivo. Permanece orientada para a necessidade do progresso tecnológico. Pode reforçar o ponto de vista perigoso que, no tocante ao desenvolvimento das forças produtivas e à eficiência, o socialismo é um capitalismo intensificado e que a sociedade socialista tem de "superar" o capitalismo.
22 A teoria das duas fases ganhou justificativa histórica na luta da União Soviética contra o mundo capitalista à sua volta e na necessidade de "construir o socialismo em um só país". Justifica a não existência do socialismo nesta situação. Além disto, é falsa. Ao aceitar a racionalidade capitalista, utiliza as armas da antiga sociedade contra a nova: o capitalismo tem melhor tecnologia e maior riqueza (tecnológica); esta base permite que o capitalismo promova uma vida melhor. A sociedade socialista só pode imitar e superar isto se abrir mão da dispendiosa experiência de abolir a dominação e imitar e superar o desenvolvimento capitalista da produção e a produtividade do trabalho, isto é, a subordinação do trabalho assalariado ao aparato de produção. A transição para o socialismo se torna rebus sic stantibus1 sem sentido.
23 Ao contrário disto, a teoria das duas fases só pode projetar uma mudança para o futuro. Seu valor é mínimo para os operários europeus e americanos nas garras da ideologia sindicalista; o positivismo triunfou aqui também. E o valor se torna menor, quanto mais a "primeira fase" durar. Sua extensão cria um espírito de submissão e acomodação nos operários afetados, os quais mantêm eles próprios a perpetuação da "primeira fase" e extinguem os desejos revolucionários. Sob estas circunstâncias, o fim da "primeira fase" e a transição para o comunismo pode surgir apenas como um milagre ou como o trabalho de forças externas estrangeiras (ver #7).
24 A construção do socialismo deveria colocar sua diferença, não sua "emergência" a partir do capitalismo no centro da discussão. A sociedade socialista deveria ser apresentada como a negação determinada do mundo capitalista. Esta negação não é a nacionalização dos meios de produção, nem seu melhor desenvolvimento, nem o padrão mais alto de vida, mas antes a abolição da dominação, da exploração e do trabalho.
25 A socialização dos meios de produção, sua administração pêlos "produtores imediatos", permanece a precondição do socialismo. É sua primeira característica de destaque: onde não está presente, não há sociedade socialista. Mas os meios socializados de produção ainda são os do capitalismo: são a dominação e a exploração coisificadas. Não apenas no sentido puramente econômico. O que se produziu com eles traz a marca do capitalismo: também está estampada nos bens de consumo. E claro que uma máquina é apenas uma máquina; só o processo de trabalho assalariado a transforma em capital. Mas como capital, os meios de produção existentes também formaram as necessidades, os pensamentos e sentimentos das pessoas, e determinaram o horizonte e o conteúdo de sua liberdade. A socialização como tal não modifica nem o horizonte, nem o conteúdo: se a produção continuar ininterrupta, o que havia antes do momento da socialização também será reproduzido. As necessidades habituais continuam a influenciar as novas condições e os meios socializados de produção. A socialização dos meios de produção torna-se socialismo somente na medida em que o próprio modo de produção se torne a negação do modo de produção capitalista.
26 Isto inclui, para começar, a abolição do trabalho assalariado. A administração estatal-burocrática dos meios de produção não acaba com o trabalho assalariado. Este não é o caso até que os próprios produtores administrem diretamente a produção, isto é, eles próprios determinem o quê, quanto, e por quanto tempo algo será produzido. Este passo, sob as condições da economia moderna, equivale provavelmente à transição para a anarquia e a desintegração. E exatamente esta anarquia e desintegração talvez seja o único modo de quebrar a reprodução capitalista no socialismo, criar o intervalo ou mesmo o vácuo no qual a mudança de necessidades, o nascimento da liberdade possa ocorrer. A anarquia testemunharia a abolição da dominação e a desintegração eliminaria o poder do aparato de produção sobre o ser humano ou, pelo menos, significaria uma maior oportunidade para a negação total da sociedade de classes.
27 Quando os operários tomarem a produção em suas próprias mãos (e não se submeterem imediatamente, mais uma vez, a uma nova burocracia dominadora), talvez venham a abolir primeiro a escravidão do salário, isto é, diminuir as horas de trabalho. Podem também decidir o que produzir, o que parecer mais importante para eles nas várias localidades. Isto levaria automaticamente à dissolução da economia nacional em sua forma integrada; o aparato de produção se desintegraria em partes separadas e em muitos casos a maquinaria técnica permaneceria sem uso. Um movimento de volta iria se iniciar, o que iria libertar a economia nacional da economia internacional, mas também traria pobreza e aflição. Mas a catástrofe sinaliza que a antiga sociedade já deixou realmente de funcionar: ela é inevitável.
28 Isto significaria que o salto para o socialismo acarretaria um salto para um padrão de vida inferior ao do alcançado cm paises capitalistas. A sociedade socialista começaria em um nível tecnologicamente "ultrapassado" de civilização. O critério de partida da sociedade socialista não é tecnológico – é o progresso na realização da liberdade dos produtores, que se expressa em uma mudança qualitativa nas necessidades. A vontade de abolir a dominação e a exploração surge como desejo de anarquia.
29 O início do socialismo em um nível "ultrapassado" de civilização não é um "atraso". Difere do início da sociedade soviética pelo fato de o retrocesso não ser uma necessidade econômica (determinada pelo nível técnico de produção), mas antes um ato de liberdade revolucionária, uma interrupção consciente da continuidade. O atual aparato de produção e distribuição é suspenso pêlos trabalhadores, não é plenamente utilizado e talvez até parcialmente destruído. Se o proletariado não pode simplesmente "tomar" o aparato do Estado, então o mesmo é verdadeiro para o moderno aparato de produção. Sua estrutura exige uma burocracia especializada e diferenciada, que necessariamente perpetua a dominação e a produção em massa, o que leva necessariamente à padronização e à manipulação (arregimentação).
30 O problema de evitar uma burocracia de Estado socialista deve ser visto como um problema econômico. A burocracia tem suas origens sociais na estrutura (tecnológica) do aparato de produção; a remoção desta forma heterônoma pressupõe a mudança desta estrutura. Uma educação socialista geral certamente tornaria as funções especializadas intercambiáveis e assim romperia a forma heterônoma de burocracia, mas este tipo de educação não pode ter sucesso em uma burocracia estabelecida de dominação. Precisa preceder a burocracia operante – não substituí-la. Este tipo de educação só é possível quando o aparato de produção heteronomamente estruturado é submetido aos produtores a fim de que adquiram "experiência". A autoridade racional, que deve conduzir esta experiência, deve permanecer sob o controle direto dos produtores.
31 A desintegração revolucionária do aparato de produção capitalista também desintegrará as organizações de trabalhadores, que se tornaram parte deste aparato. Os sindicatos não são apenas órgãos do status quo, mas também da manutenção do status quo nas novas formas do Socialismo de Estado e do sovietismo. Seus interesses estão ligados ao funcionamento do aparato de produção de que se tornaram sócios (de segunda classe). Podem trocar de senhores, mas precisam de um senhor para compartilhar seu interesse na orientação domesticadora dos trabalhadores organizados.
32 Enquanto os sindicatos em sua estrutura e organização tradicionais representam uma força hostil à revolução, o partido político operário permanece o sujeito necessário da revolução. Na concepção marxista original, o partido não desempenha um papel decisivo. Marx supunha que o proletariado é impelido à ação revolucionária por si mesmo, baseado no conhecimento de seus próprios interesses, assim que as condições revolucionárias se façam presentes. Entretanto, o capitalismo monopolista encontrou formas e meios de nivelar econômica, política e culturalmente [gleichschalten] (#12-15) a maioria do proletariado. A negação deste nivelamento antes da revolução é impossível. Os fatos confirmaram a correção da concepção leninista do partido de vanguarda como sujeito da revolução. É verdade que os partidos comunistas atuais não são este sujeito, mas também é verdade que somente eles podem tornar-se o sujeito. Somente nas teorias dos partidos comunistas está viva a memória da tradição revolucionária, que pode mais uma vez tornar-se a memória da meta revolucionária; só sua situação se encontra tão fora da sociedade capitalista que pode tornar-se novamente uma situação revolucionária.
33 A tarefa política consistiria então em reconstruir a teoria revolucionária dentro dos partidos comunistas e em trabalhar na práxis apropriada a ela. A tarefa parece impossível hoje. Mas talvez a relativa independência em relação aos ditames soviéticos exigida por esta tarefa esteja presente como uma possibilidade nos partidos comunistas da Europa Ocidental e da Alemanha Ocidental.
* in: Marcuse, H: TECNOLOGIA, GUERRA E FASCISMO, Edunesp.