NOTAS SOBRE O PENSAMENTO CONSERVADOR NOS ANOS 30: PLÍNIO SALGADO – Marilena Chauí

Plínio Salgado

Notas sobre o pensamento conservador nos anos 30: Plínio Salgado
Marilena Chaui
A inteligência brasileira, org. Reginaldo Moraes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante (orgs.), ed. Basiliense, 1986


 Alguns estudos recentes sobre a intelligentsia brasileira durante os anos 20 e 30 (tomando, no caso dos anos 20, a Semana de Arte Moderna e a criação do PCB como marcos fundamentais, e no caso dos anos 30, a "revolução" de 30 como referência principal) destacam os temas que serão constantes no período, embora seu sentido varie segundo as orientações políticas adotadas pêlos diferentes intelectuais ou grupos de intelectuais. Entre esses temas, os mais freqüentes seriam: 1) a "descoberta" do Brasil real pela intelligentsia, que passa a combater o Brasil legal, formal e irreal; conseqüentemente, 2) o nacionalismo como afirmação do Brasil real; e 3} a idéia de que a análise científica (o cientificismo) é instrumento para conhecer essa realidade (a fundação da Escola de Sociologia e Política em São Paulo; da SEP, futuramente AIB, também em São Paulo; do Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro; a fundação da Faculdade de Filosofia de São Paulo, em 1934, etc. atestam o fenômeno); 4} a necessidade de criar elites pensantes e dirigentes para salvar ou mesmo para criar a Nação por meio do Estado; 5) a modernização econômica e social do país, entendida ora como industrialização, ora como agrarismo racional. Em linhas gerais, de 1920 a 1937, os intelectuais se preocupam com dois problemas maiores e que constituem os elementos para o nacionalismo: o desconhecimento da realidade brasileira pêlos brasileiros e a necessidade de livrar-se de modelos políticos, teóricos e culturais importados. De modo geral, o campo ideológico no qual os intelectuais se moverão é constituído por três pares de dicotomias: indústria natural x indústria artificial; país real x país legal; idéias nacionais x idéias importadas. No pensamento conservador e autoritário, a série natural, real e nacional se opõe à série artificial, legal, importada, havendo uma sobreposição dos termos que acabam por identificar-se. No caso de Plínio Salgado, a oposição é sobredeterminada por um juízo de valor: natural, real e nacional é o Bem; artificial, legal e importado é o Mal – o "monstro", como ele diz frequentemente.
 À esquerda e à direita, os intelectuais dão a si próprios a tarefa de criar ou de despertar a consciência nacional, de demonstrar a inadequação entre as instituições e a realidade, de produzir uma política científica e racional e de operar uma revolução social, política e cultural. O tema da revolução será uma constante, mas seu sentido, evidentemente, não será o mesmo, tudo dependendo do modo como é diagnosticada a "crise brasileira", do modo como é projetada a "salvação nacional" e dos agentes designados para essa tarefa. De qualquer modo, porém, uma coisa é comum a todos: a suposição de que a compreensão da crise, sua superação e a revolução dependem exclusivamente de uma elite pensante ou de uma vanguarda política. Os progressistas falarão na necessidade de "civilizar o Brasil"; os conservadores, na necessidade de recuperar as tradições, a ordem e a disciplina que a modernidade liberal destruiu. Nos dois casos, porém, há um ponto em comum: tanto a "civilização" quanto a tradição exigem uma concepção orgânica da sociedade e da política, organicidade que depende da recriação da Nação e da instauração de um Estado centralizado, mesmo que às custas de um "governo forte". Assim, o tema da revolução — seja como progresso civilizatório, seja como fim da sociedade de classes, seja como retorno à tradição — é inseparável de dois outros: a crítica do liberalismo e a afirmação da ignorância das massas (o que abre uma dualidade que será retomada pelo populismo entre o povo "real" e o povo "ideal").
 Não nos cabe aqui examinar o tratamento diversificado dessas questões pêlos vários grupos intelectuais e políticos em presença, mas apenas o modo como um líder conservador, Plínio Salgado, as abordou.
 Jarbas Medeiros (A Ideologia Autoritária no Brasil —1930-1945, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1978) considera que há cinco grandes períodos no pensamento de Plínio Salgado: 1) o misticismo condoreiro e o nacionalismo tupi; 2) a influência européia entre 1930 e 1932, ou o impacto do fascismo; 3) a tradução da doutrina para a ação política, com a transformação da AIB em partido político; 4) de 1937 a 1945, passagem do doutrinador e líder político ao missionarismo cristão, fundado na democracia cristã proposta pelas encíclicas papais; 5) inserção do integralismo como "mentalidade" e "estado de espírito" na reconstrução liberal-democrática do país, entre 1945 e 1946.
 Na primeira fase, mais literária do que política, marcada pela Semana de Arte Moderna, pelo verde-amarelismo e pelo movimento da Anta, Plínio Salgado trabalha com a imaginação, visando despertar a consciência das classes médias rurais e urbanas para as misérias e contradições do país — é uma fase nativista, romântica, espiritualista, indianista, anticosmopolita e antiliberal, invocando as novas gerações para a tarefa de salvação do país. Na segunda fase, os temas anteriores, nos quais prevalecem as imagens da pobreza digna, do pecado da riqueza como do luxo introduzido pelo automóvel e pelo jazz, da grandeza mítica dos tupis e dos bandeirantes, consolidam-se como crítica ao materialismo liberal e marxista e encontram saída numa proposta marcada pelo exemplo dos fascismos europeus; é uma fase primordialmente doutrinária que prepara o Manifesto de Outubro de 1932, criador da AIB como partido político. Na terceira fase, a doutrina integralista se transforma em ação partidária de construção do Estado Forte, com centralização política e descentralização administrativa, Estado de tipo corporativo fundado em três pilares: Deus, Pátria e Família. A quarta fase, sob o peso do Estado Novo, que colocou a AIB na ilegalidade e seu líder no exílio (em Portugal), abandona a ação política e ideológica e retorna à tarefa doutrinária cristã, que, na verdade, nunca fora abandonada, mesmo quando Plínio Salgado propunha e fazia análises "científicas" da realidade brasileira. A última fase, curiosamente, aceita a institucionalização liberal-democrática para o Brasil como saída contra a ditadura do Estado Novo — nessa fase, a derrota internacional do nazismo e do fascismo pesa sobre a posição política de Plínio Salgado, o qual, entretanto, jamais abriu mão do "ideal salazarista" para o Brasil. Aliás, a fase de democracia cristã, que sustenta a fase final, é elaboradda sobretudo em seu exílio em Portugal.
 Vamos encontrar em Plínio Salgado todos os temas que mencionamos acima. Evidentemente, seu romantismo espiritualista e cristão torna problemática sua adesão à explicação científica da realidade brasileira, e seus textos oscilam entre a afirmação da necessidade de criar uma consciência nacional e o apelo ao sentimento nacional — a solução de compromisso consistirá em colocar a consciência nacional do lado das elites pensantes e o sentimento nacional do lado da massa (Psicologia da Revolução). Também esse espiritualismo cristão dificulta suas análises do capitalismo liberal e do marxismo, as duas formas do "materialismo" moderno, segundo ele. Como a oposição se estabelece entre o Espírito e a Matéria, em sentido cristão, esta última resvala para a fraqueza da carne e para o pecado, levando-o a falar numa "Civilização da Máquina" como grande Moloc, no jazz como culto a Baal, nas cidades como novas Babel, etc. Na crítica ao capitalismo liberal, a oposição entre capital e trabalho, por exemplo, aparece como oposição entre o luxo pecaminoso e a pobreza digna, mas também como aspiração dos trabalhadores ao luxo capitalista, que destrói a vida comunitária e familiar, pautada na simplicidade. Dirá que a família foi substituída pelos clubes. Na crítica ao marxismo, a materialidade do materialismo dialético nunca é tomada a partir das lições de produção, mas como matéria física e biológica, como evolucionismo naturalista e como ateísmo. A crítica à democracia liberal, considerada por ele como inadequada ao Brasil, não visa o formalismo da liberdade e da igualdade, mas a ausência de disciplina e de ordem, a presença de facções partidárias que dissolvem a unidade e a organicidade social, e sobretudo a luta das classes, estas entendidas não a partir das de produção, mas como categorias profissionais que deverão organizar-se em sindicatos e estes em corporações, para alcançar a "harmonia social". Isto é, a substituição da democracia liberal pela democracia cristã consiste em passar de uma visão conflitiva de interesses regulados pelo Estado para uma visão de colaboração das classes sob o controle do Estado centralizado.
 Na fase inicial e na fase final, o pensamento de Plínio Salgado se apresenta principalmente como doutrinário e pedagógico, razão pela qual ele escreverá em O Integralismo perante a Nação: "O integralismo exerceu sua ação no Brasil sob três formas: 1) desenvolvendo intenso esforço cultural, através de cursos, conferências, centros de pesquisa e de estudos de problemas nacionais e humanos; 2) organizando-se no sentido da maior eficiência de um magistério moral e cívico de preparação da juventude e de um ministério social objetivando ampla assistência às classes populares; 3) instruindo o povo brasileiro acerca do que lhe convém saber de sua tradição, de suas realidades, de suas possibilidades, de seu futuro, o que se fazia por meio de jornais, revistas e comícios urbanos e penetração dos oradores nos campos e pequenas cidades do interior" (O Integralismo perante a Nação, Ed. das Américas, s. d., p.60).
 Colocar um partido político na qualidade de "magistério" (embora Plínio Salgado insista sempre em que a transformação da AIB em partido político foi algo transitório e não essencial, algo necessário para fazer frente ao PC, que teria sido o único partido nacional no Brasil, e para fazer frente às oligarquias regionais) não há dúvida de que é vê-lo como sempre foi, isto é, um partido ideológico, uma prática informada por uma doutrina prévia. É afirmar a dimensão doutrinária da AIB. Reale escreveu: "O Integralismo é a doutrina que não crê em soluções fragmentárias para a questão social e prega a necessidade do Estado forte para garantir o equilíbrio entre as várias classes; que faz do Estado um realizador de fins morais e sustenta a necessidade de uma política voluntarista, capaz de acompanhar e dirigir a marcha rápida dos acontecimentos humanos, pondo sempre a realidade acima das teorias; que faz do Estado a síntese das aspirações nacionais e o coordenador das atividades individuais, mas não faz do Estado um fim absoluto e exclusivo, um tabu; que combate o individualismo porque o homem só vale integralmente como membro de uma coletividade e como expressão de um grupo, mas se afasta do comunismo que aniquila o indivíduo, tornando-o um meio, um instrumento; que só compreende o internacionalismo como resultante dos valores específicos de cada povo, de cada Nação; que não admite a demagogia popular e a mentira do sufrágio universal, mas foge igualmente da ditadura e do cesarismo que sufocam a liberdade em nome de um interesse de qualquer ordem; que não desconhece os imperativos da Tradição, mas não faz deles pontos de chegada e sim marcos de uma contínua evolução; que não se baseia na consideração exclusiva dos valores econômicos, mas em todos os valores espirituais e materiais do homem (Miguel Reale, "Súmula do Integralismo", in Perspectivas Integralistas, pp. 135-136).
Traduzindo:
• soluções fragmentárias para a questão social: solução da luta de classes; necessidade do Estado forte, mas Estado com fins morais, síntese de aspirações e coordenação de práticas contra o Estado liberal, fraco, e contra o Estado comunista, tabu;
• uma política voluntarista: de uma vanguarda partidária e de um chefe cuja vontade acompanha os acontecimentos;
• realidade acima das teorias: liberalismo e comunismo são teorias e não correspondem às necessidades brasileiras;
• combate ao individualismo — isto é, ao liberalismo — e ao comunismo — isto é, ao coletivismo;
• combate à demagogia popular e ao sufrágio universal: ou seja, à democracia liberal;
• fuga das ditaduras e do cesarismo: isto é, nem Vargas, nem Mussolini, nem Hitler;
• tradição como ponto de partida e não de chegada: ou seja, conciliar ordem e progresso;
• consideração de valores econômicos, espirituais e materiais: o homem integral (social, individual, espiritual, material, político) não é o indivíduo do liberalismo nem coletivismo comunista, porque em ambos pesam apenas as determinações econômicas.

 As colocações inteiramente pela via do negativo — isto é, o que o Integralismo não é e não quer — só se completam pela colocação da via positiva, ou seja, pelo que o Integralismo propõe. Escreve Plínio Salgado: "O Integralismo considera a autoridade como força unificadora que assegura a convergência e equilíbrio das vontades individuais e realiza o aproveitamento das energia da nação em razão do bem coletivo. O Integralismo considera a sociedade como a união moral e necessária dos seres vivendo harmoniosamente segundo seus superiores destinos. O Integralismo compreende o Estado como uma instituição essencialmente jurídico-política, detentora dos princípios da sabedoria para realizar a unidade integral da nação, coordenando e orientando numa diretriz única todos os grupos materiais que a constituem e todas as forças vitais que a dinamizam. Na concepção integralista, o Estado reveste-se da suprema autoridade político-administrativa da nação controlando e orientando todo o seu dinamismo vital, subordinando-se, porém, aos imperativos da hierarquia natural das coisas, da harmonia social e do bem comum dos brasileiros. Fiscalização direta do Estado sobre o cinema, o teatro, a imprensa, o rádio e todos os veículos de pensamento que estão hoje atentando contra a liberdade, forçando o povo a submeter-se aos caprichos de capitalistas internacionais, de burgueses materialistas, de espíritos anárquicos e de agentes de Moscou; auxiliar todos os empreendimentos artísticos, proteger o cinema nacional, sanear a imprensa, elevando-a e libertando-a de interesses particulares que a oprimem. Uma vez formado o Estado Integral, este não poderá permitir que se formem quaisquer forças que possam ameaçar a independência ou a integridade moral, econômica ou territorial da nação". Plínio Salgado, "Diretrizes Integralistas", in O que é Integralismo, pp. 110 a 127; foram citados itens diversos e que estarão presentes no Manifesto de Outubro de 1932.
 Com algumas variações, o Estado Novo tentará realizar à maneira de Vargas esse programa. Note-se que a definição do Estado como realidade jurídico- política vem de Reale, mas é contrabalançada pela definição do Estado como realidade moral subordinada à hierarquia natural, à harmonia social e ao bem comum, idéias tomistas de Plínio Salgado.
 Podemos acompanhar o ideário integralista de Plínio Salgado sob dois ângulos: no doutrinário e no da convocação à ação política. No primeiro, encontramos uma análise da realidade brasileira que torna inevitável o caminho escolhido pelo segundo como sua conseqüência necessária. Basicamente, a oposição entre os dois Brasis, o sertanejo rude, bárbaro e aventuroso, guardião das tradições, e o litorâneo, burguês, impor-ludo, legal, formal, liberal de fachada e deletério, permite um jogo entre a defesa dos valores nacionais míticos e a crítica do liberalismo e do perigo comunista, jogo que, por seu turno, permite a afirmação dupla de que há e não há a nação: há a nação como tradição selvagem e como sentimento nacional, e não há a nação em decorrência da fragmentação liberal (entenda-se: república federativa, oligarquias regionais, burguesia e proletariado), de sorte que a passagem do sentimento nacional à realidade nacional se fará pela criação de uma consciência nacional que criará, pela ação pedagógica e política, o Estado Nacional. O Estado está, assim, encarregado, simultaneamente, de criar a nação ("despertemos a nação", escreve Plínio Salgado) e de exprimi-la. O fato de que o elemento de unidade seja o Sertão e o de desagregação seja o Litoral significa, passando da geografia à economia política, que a nação deverá ser essencialmente agrária — o agrarismo (o "rumo à terra!", sempre proclamado por Plínio Salgado) aparece com várias conotações: 1) como destino (a extensão do território, a fertilidade do solo e a ausência das fontes de energia para a indústria — os povos sem hulha nem carvão, diz Plínio Salgado); 2) como forma de afirmar a identidade nacional (a nação agrária em igual posição internacional face às nações industrializadas); 3) como preservação contra os riscos dissolventes da civilização industrial (os monstros da Era da Máquina e da civilização capitalista); 4) como garantia espiritual contra o materialismo burguês e proletário. Há um jogo de imagens sugestivo a esse respeito. Plínio Salgado escreve, em 1931, que o país está passivo e inerte sob as forças internacionais que o sugam e dissolvem. Está efeminado. Será preciso, diz ele, reencontrar a virilidade, o princípio masculino da nação. O masculino fecunda, o feminino gesta. A "volta à terra" significa, por um lado, a maternidade inesgotável do solo, mas por outro lado, a agricultura sob orientação e controle estatais, princípio masculino ou viril para a terra. (Duas observações: por um lado, essa imagem da masculinidade e da virilidade do agrarismo é uma adaptação local do ideal de virilidade fascista; por outro lado, é bom lembrar, na mesma ocasião, Oswald de Andrade preconizando o retorno ao matriarcado… Aliás, ainda no plano das imagens e diferenciando Oswald e Salgado, há a oposição entre o tupi e o tapuia. Salgado escreve que somos uma nação tupi, que o tupi como realidade material ou empírica aceitou morrer para sobreviver eterna e imortalmente como essência do espírito brasileiro (forma de racionalizar e sublimar a colonização mantendo o ideal romântico das origens — o tupi, escreve Salgado, é o espírito da unidade e devemos evitar o tapuia, que é desagregador e dissolvente. Ora, Oswald, depois do "tupi or not tupi", proclama a civilização tapuia e a antropofagia…)
 Vamos abordar apenas os conteúdos doutrinários do pensamento de Plínio Salgado para destacar a simbiose entre o pensamento cristão conservador e o autoritarismo político. Faremos isto tomando como referência um texto de Plínio Salgado – O que é o Integralismo – e um tema mobilizador em termos políticos – a imagem da crise.
 Plínio Salgado insiste, desde seus primeiros textos que um dos males da civilização contemporânea , liberdade. A liberdade significa ausência de disciplina, de ordem, de respeito à hierarquia e à autoridade naturais e constituídas. Essa liberdade, originada com as abstrações do liberalismo, tem como conseqüência não só o enfraquecimento das instituições e dos costumes, a dissolução da família, mas também a luta das classes, abandonadas à sua própria sorte por um Estado fraco. O integralismo, evidentemente, não será contrário à liberdade, mas só poderá admiti-la sob o controle da autoridade e da disciplina. A recomposição das instituições (em particular da família) e dos costumes depende da educação moral e cívica e esta depende de que haja um Estado capaz de promovê-la. A criação desse Estado regenerador será tarefa política do Integralismo, mas, para compreender o porquê de sua necessidade, é preciso compreender a realidade presente. Essa compreensão baseia-se na análise das duas concepções de vida existentes: a concepção materialista e a espiritualista,, existentes em todas as sociedades desde o início dos tempos e sempre em luta uma contra a outra. Quando prevalece a concepção materialista, desaparecem todos os valores morais e espirituais e prevalece apenas o amor pelo dinheiro e pela riqueza, que produz indisciplina, desordem e licenciosidade. Reinam a competição e os conflitos. Quando prevalece a concepção espiritualista, a religião estimula valores espirituais e morais de solidariedade entre os homens, fortalece a família e o sentimento pátrio, eliminando desordens e conflitos. O liberalismo e o comunismo, mediados pelo anarquismo, constituem formas exemplares da concepção materialista da vida. O liberalismo suprime a religião e divorcia Estado e sociedade, de modo que anulando os cimentes orgânicos entre os homens cria a luta de classes, deixa o capital sem segurança e o trabalho desprotegido, impõe a concorrência e a competição sem qualquer instituição que as regule, forja a ficção dos partidos políticos e a mentira do sufrágio universal, instaura a selvageria nas relações entre os seres humanos e desemboca na anarquia, no caos e na ruína. O socialismo, por ser ateu, é tão materialista quanto o liberalismo e é a conseqüência direta do próprio liberalismo. Para corrigir o individualismo liberal, cai no coletivismo totalitário, onde o Estado substitui Deus, escravizando os homens aos seus interesses, que são puramente materiais, isto é, econômicos. Numa palavra, a concepção materialista da ida é aquela que privilegia os aspectos econômicos da vida social, em detrimento de todos os outros.
 O caso do Brasil é lastimável porque aqui o liberalismo (primeiro sob a influência de Portugal, depois sob a influência da Inglaterra) sequer foi resultado de uma proposta social, econômica e política nacional, mas pura importação e pura imposição de modelos externos por parte do explorador e do colonizador. Os financistas (da City e depois de Wall Street) tornaram-se proprietários do Brasil graças à cumplicidade da burguesia industrial e comerciante dos centros urbanos, fascinada pêlos modelos europeus, liberal de fachada, cosmopolita, individualista e atéia, que jamais percebeu o Brasil como nação e o dividiu entre proprietários, chamando essa divisão de federação. A associação desses proprietários com o capital inglês e depois com o americano resultou não só na competição desvairada entre eles – com o nome de partidos políticos – mas também na luta contra os trabalhadores, para prejuízo nacional. A única resposta possível dos trabalhadores era importar também uma concepção materialista, a comunista e a anarquista, para lutar contra os burgueses. Pois foi essa situação caótica que a revolução de 1930 tentou enfrentar, impondo um freio à luta das classes por meio de um Estado centralizado que diminuísse o poder liberal, o poder das oligarquias e a política dos governadores. Contudo, Plínio Salgado duvida do caráter revolucionário dessa revolução, pois ela não trouxe uma concepção espiritualista da vida para substituir a materialista, mas apenas uma visão materialista menos individualista e menos indisciplinada, podendo ser considerada uma política da própria burguesia liberal. Somente o Integralismo apresenta uma proposta revolucionária, porque somente nele há uma concepção espiritualista da vida. O Integralismo se baseia nas idéias de: 1) indivíduo integral (espiritual, moral, político e econômico); 2) de sociabilidade natural e sagrada trazida pela família, de harmonia social trazida pela organização das classes sociais em corporações e das corporações em centros de colaboração interclasses (classe em sentido profissional); 3) de hierarquia natural e moral como fundamento da autoridade, de tal forma que o pai é a autoridade natural sobre a família, o Estado é a autoridade natural e moral sobre a sociedade e Deus é a autoridade necessária sobre tudo; 4) de organicidade social e política (a integração das partes sendo necessária por natureza, funcional quanto à forma e estatal quanto ao conteúdo), organicidade encarnada no Estado nacional como expressão jurídica, política e moral da nação. A concepção espiritualista se traduz,  assim, pela volta ao "natural": Terra (agrarismo), Nação (nacionalismo), Pátria (corporativismo cívico), Família (organicismo), Deus e Estado (hierarquia e disciplina). Esse espiritualismo definirá a revolução integralista como revolução espiritual, feita pela IDÉIA de uma nova civilização, que reporá o Espírito num mundo sem espírito.
 O ideário de Plínio Salgado se move sempre no campo das dicotomias: matéria-espírito, natural-artificial, nacional-estrangeiro, cidade-campo, sertão-litoral, real-formal, ordem-caos, liberdade-disciplina, não sendo casual que tivesse escrito um livro sobre A Aliança do Sim e do Não, onde examina todas essas dicotomias do lado materialista para mostrar que liberalismo e comunismo são as mesmas respostas, apesar da aparência de oposição. O "verdadeiro" não ao materialismo será o espiritualismo integralista, isto é, a escolha de apenas um dos lados das várias dicotomias, pensamento dicotômico e abstrato só poderá integrar os vários elementos dos diferentes pares se puder redefini-los segundo uma imagem que os compatibilize — a tarefa ideológica consistirá justamente nessa redefinição dos termos para que a imobilidade da tradição se compatibilize com o movimento . (essa a tarefa principal do conceito de espírito e de revolução espiritual); para que a naturalidade da nação se compatibilize com a artificialidade jurídica do Estado (essa a tarefa da idéia de município como reunião de famílias e de sociedade como reunião de corporações); para que a regressão agrária se compatibilize com o progresso econômico gerador da independência nacional (essa a tarefa da idéia de uma economia voltada para o bem comum e para as necessidades de cada um, neutralizando a defesa da propriedade privada dos meios de produção, fazendo-a passar do contexto liberal para o da democracia cristã), etc. Há um arranjo ininterrupto das idéias, de sorte a mantê-las modernas (seguindo os ditames científicos da época) e mantê-las no interior do conservadorismo cristão (como seu fundamento neutralizador). Um dos procedimentos favoritos de Plínio Salgado para realizar essa operação consiste em passar da linguagem supostamente analítica e científica para a linguagem literária moralizante: nesta, as classes sociais, por exemplo, se dissolvem em "tipos humanos" (bons ou maus), a economia se dissolve em juízos de valor contra a máquina e o luxo, a política se dissolve em diatribes contra o maquiavelismo e a incompetência dos governantes e partidos, etc.
 Ou seja, cremos que no caso de Plínio Salgado o pensamento conservador se realiza pela passagem da análise sócio-política para a avaliação religiosa e moral da realidade social e política, pela passagem de algumas tentativas de análise sociológica e histórica para uma psicologia social filosofante inteiramente vazada numa religiosidade em luta contra o positivismo. Isto é, entre duas atitudes ideológicas conservadoras — a positivista e a católica —, Plínio Salgado oscila sem cessar entre ambas. Cremos ser essa oscilação uma das forças curiosas de seu discurso do ponto de vista da persuasão. O discurso tende a ser persuasivo porque reforça, sob a aparência da análise científica, o ideário conservador das classes urbanas e rurais que se sentem fundamentadas para pensar o que pensam, ao mesmo tempo que a persuasão opera ainda noutro nível, pois a linguagem religiosa do pregador inflamado reforça os sentimentos (ou melhor, os ressentimentos) de seu ouvinte ou leitor. Oscilando entre a "demonstração" e a "pregação", o pensamento de Plínio Salgado tem grande poder mobilizador. Essa capacidade mobilizadora se manifesta de modo privilegiado no tratamento do tema preferido dos conservadores: a crise.

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