3. O expediente da "liberação emocional"
A individualidade espontânea e não-manipulada que o locutor simula é sublinhada por um padrão de conduta particular, que ele não só exibe mas recomenda a seus ouvintes. O emocionalismo consciente e enfático é parte de sua técnica. Em várias ocasiões ele repete que "quase chorou" ao receber cinco centavos como ajuda de uma pobre e velha viúva. Embora toda a construção de sua pessoa o vise como um líder, ele conspicuamente rejeita qualquer atitude de dignidade. Precisamente este abandono da dignidade parece ser um dos mais efetivos estímulos da propaganda fascista. Hitler mesmo sempre foi propenso a explosões cheias de pompa e histeria: uma de suas frases favoritas era "Eu preferiria atirar em mim mesmo a …" Nas falas de Thomas, o expediente da liberação emocional é derivado de sua postura religiosa, de sua tendência evangélica e fundamentalista, oposta ao presbiterianismo oficial.
"Vocês sabem como agradeço a Deus por eu ter aberto meu coração nestes três últimos anos. Vocês sabem como isso é uma coisa formidável para um presbiteriano, criado para suprimir as manifestações exteriores de seu coração . Escutem, presbiterianos, episcopais e todas as escolas de estoicismo: soltem seu coração ! Oh, eu sei o quanto é difícil. Vocês sentem como eu o senti. Vocês tem medo do fanatismo [1]. Existe porém um lugar certo para a expressão do seu amor por Deus. Vocês não precisam ser fanáticos. Relembrem do que nos disse Santo Agostinho:: ‘Se você soltar seu coração, você caminhará para Deus’. Bata um pouco de palmas. Relembre o Velho testamento, relembre onde ele diz que as árvores bateram palmas para Sua alegria. A natureza inteira louva o criador ! Nenhum ser humano vai ver de novo o desabrochar sob o sol daquela flor maravilhosa. Animal algum jamais vai sequer percebe-la,, pois ela está louvando e sorrindo para Deus. Toda a Terra é plena em glória. Os profetas proclamaram bem alto que a terra se enche de glória para o Senhor. Não é pois maravilhoso conhecer a Deus ? É maravilhoso conhecer o Cristo." (9/7/35)
Em passagens como essa, Thomas sem querer revela suas verdadeiras intenções: seu emocionalismo serve de modelo para as condutas que ele deseja ver imitadas e desenvolvidas por seus ouvintes. Ele deseja que eles gritem, gesticulem, liberem seus sentimentos. Eles não deveriam se comportar tão bem e ser tão civilizados. Abrigado sob o manto do êxtase cristão, existe pois o encorajamento do paganismo, da liberação orgiástica dos impulsos emocionais e da regressão à natureza informe, que tão bem funcionou na propaganda nazista. Logo que se põe abaixo as defesas contra o choro e a autocomiseração, pode-se bem expressar os sentimentos reprimidos de ódio e fúria. A movimentação religiosa dos fanáticos pode ser consumada no pogrom. Ademais, quanto mais o locutor encoraja os ouvintes a derrubarem as barreiras do autocontrole, mais facilmente eles deixam se sujeitar a sua própria vontade em favor da do locutor e podem seguir cegamente para onde ele deseje que eles se dirijam.
Observa-se com freqüência que o fascismo se alimenta da falta de gratificação emocional existente na sociedade industrial e que ele dá ao povo a satisfação irracional que lhe é negada pelas condições econômicas e sociais vigentes. O expediente da liberação emocional corrobora essa postulação. O conceito todavia tem de ser qualificado em alguns aspectos para se encaixar na realidade. Em primeiro lugar, realidade e ideologia não devem ser confundidos. As satisfações irracionais oferecidas pelo fascismo são em si mesmas planejadas e entregues de uma forma totalmente racional. A manipulação que aí tem lugar é uma espécie de técnica psicológica, tomada emprestada da fábrica moderna e aplicada à toda a população. Trata-se de uma irracionalidade extremamente pragmática e é altamente característico que Thomas e os agitadores alemães a anunciem como se fosse uma espécie de pílula que torna a vida mais agradável. Conservar o ponto em mente é importante na medida em que o aspecto racional da propaganda fascista irracional (mas também, por exemplo, dos aspectos escapistas da cultura de massa moderna) é tão óbvio que ele pode produzir alguma resistência contra a permanente falta de sinceridade da propaganda. Adicionalmente essa resistência poderia ser usada pela contrapropaganda. A contrapropaganda poderia apontar a sobriedade ardilosa que se esconde detrás das palavras embriagadas. Atacá-las dessa forma poderia colocar os fascistas diante de um dilema inescapável, porque a propaganda fascista não pode evitar o racionalismo existente dentro da esfera da liberação emocional. O agitador fascista precisa dar conta das pessoas como elas são, sensatas e práticas, e por isso só consegue levá-las a tomar atitudes irracionais se logra fazê-las se sentir "sensíveis" de um modo compatível com as exigências de sua economia psicológica.
Em segundo lugar, as satisfações irracionais manipuladas são espúrias: manipulação é algo intrinsecamente oposto àquela liberação que ela põe em movimento. Ademais, a propaganda fascistas não pode tocar nas raízes da frustração emocional existente em nossa sociedade por causa de suas próprias finalidades, ao encorajar o emocionalismo pelas palavras. Não há nenhum prazer ou alegria reais mas só a liberação do sentimento de infelicidade e a consecução de uma satisfação regressiva com a imersão do eu em uma comunidade. Em resumo, a liberação emocional proposta pelo fascismo é apenas um sucedâneo da realização de desejos. O exemplo mais drástico disso é o expediente que consiste em aplicar um entusiástico "é maravilhoso" a tudo e, assim, à nada. Quando Thomas reitera as maravilhas do clima, o florejar e a beleza da paisagem do sul da Califórnia lança mão de um truque que não é diferente daquele do evangelista negro, já que as belezas que ele louva e oferece como objeto de emoção cega pouco tem a ver com o mundo social de seus ouvintes e ainda menos com os seus próprios objetivos. Pode-se suspeitar que essas referências aos recursos emotivos da natureza são parte de um esquema destinado a distrair as pessoas de seus reais problemas.
Em terceiro, a mobilização do emocionalismo não é um expediente imposto desde cima aos ouvintes. Pressupõe certa disposição entre eles. Por isso, a astúcia do agitador bem sucedido consiste sobretudo em sondar as disposições que ele pode usar de isca para atingir seus objetivos. O fundamento do desejo de escapar a rigidez dos controles psicológicos internos tem de existir nos próprios ouvintes e por isso é preciso desenvolver uma idéia adequada dessa base bastante sólida. A criação dessa idéia resulta porém do mesmo processo de racionalização do qual as pessoas procuram escapar. As pessoas desejam "ceder", deixar de ser indivíduos, no sentido tradicional de uma unidade autosustentada e autocontrolada, porque isso é necessário. As referências negativas ao estoicismo e aos controles internos requeridos pelas ordens tradicionais feitas por Thomas não são acidentais. O estoicismo é parte da atitude do indivíduo independente da livre competição existente à época liberal. A capacidade de controlar a si mesmo reflete a capacidade de competir com os demais e determinar economicamente e também psicologicamente seu próprio destino. Atualmente, quando essa independência começa mais e mais a desaparecer, também começa a desaparecer o autocontrole. As forças sociais às quais cada indivíduo está sujeito são tamanhas que ele tem de ceder não apenas economicamente, tornando-se um empregado (ao invés de continuar sendo uma unidade social auto-sustentável) mas também psicologicamente, devido à uma pressão social e cultural que ele só consegue suportar convertendo-a em sua própria causa. Ele precisa se comportar de maneira conformista e adequada, mais do que como personalidade integrada e unificada. O indivíduo se torna pois mais duro, na medida em que é ensinado a pensar mais e mais pragmaticamente mas, também, mais maleável, na medida em que o impacto do mundo social como um todo e da tecnologia industrial em particular enfraquece sua resistência. Quanto mais ele deixa de ser um ego, um eu, menos ele deseja e é capaz de satisfazer as exigências de autocontrole. A histeria é a expressão extrema de uma configuração psicológica que se espalha rapidamente pelo todo da sociedade e que, como tal, é o objeto do mecanismo da liberação emocional. O estoicismo é motivo de escárnio porque os indivíduos não podem ou não querem mais ser estóicos; isto é, porque a compensação final para o controle interno da vida emocional – uma existência estabelecida firmemente em si mesma e segura – não prevalece mais. Assim, o efeito do expediente da liberação emocional não é tanto evidenciar as reações às quais ele se refere mas, antes fazê-las socialmente aceitáveis e levantar o que resta dos velhos tabus para que as pessoas possam sentir que fazem a coisa certa ao abandonar seus autocontroles. Este mecanismo de afirmação social de atitudes que já operam no interior do sujeito, mas que eles sentem estar em descompasso com as regras que lhes foram ensinadas durante a juventude, é um elemento intrínseco a toda propaganda fascista e anti-semita.
[1] Hitler falou várias vezes sobre seu "amor fanático pela Alemanha".