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A INSUSTENTÁVEL ENGENHARIA DO DESEJO
Hipóteses sobre a produção pornográfica audiovisual
Douglas Rogério Anfra
Em certo sentido, a pornografia é a forma mais
política de ficção, pois aborda como usamos e exploramos uns aos outros, do
modo mais urgente e impiedoso.
J.G.Ballard
A ENGENHARIA DO DESEJO
Seriam as nossas fantasias mais
inconfessáveis a articulação de imagens fornecidas pelo repertório de uma
indústria do desejo ou seriam os produtos da indústria do sexo a coleta e
divulgação do segredo das camas divulgado à revelia?
De qualquer forma, na pornografia
há a sedução da imagem, que não atinge somente os meninos urbanos em fase de
maturação, mas ambos os sexos e imaginários. As criações mais intensas e tudo
aquilo que chocaria o repertório comum dos casais é posto e reposto com a sanha
de um tipo de iluminismo fora de hora que permite a revelação do irrevelável.
A quem se choca, a cena
pornográfica apresenta o sexo em suas formas mais diversas como algo natural,
mas que seria arcano à visão nublada pela moral. Vindo por todos os vãos, com
todos os meios e extensões. O corpo assim exposto é passível à idéia
transgressiva, material manipulável e disponível integralmente com tudo o que
se têm ao jogo armado dos corpos jovens e violentos. Nada mais humano que o
sexo sem limites. Esta instância apresentada que adere aos desejos
inconfessados e assume a carapuça de um impulso natural.
No entanto, algo acontece quando
se apresenta o resultado da transgressão erótica do corpo. Primeiro, o ritual
burguês e romântico da cena amorosa que enlaçaria os casais é desfeita, depois,
é realizada a dissolução da igualdade na comunhão amorosa fincada no contrato
pela transgressão mútua e, enfim, aparece a repetição de um repertório
facilmente reconhecido, dividido em categorias cada vez mais reduzidas e
definidas.
Partes de corpos interagindo em
tipos definidos de ação premeditados, prêt-à-porter
partilhados em massa que seguem um roteiro pré-definido. Basta ler a embalagem
ou o nome do arquivo a baixar na internet. Falemos desta representação
específica que não se assume.
A PRÉ-HISTÓRIA DO FILME PORNOGRÁFICO
O corpo mudou muito desde o tempo
em que aparecia imediatamente como objeto erótico. No primeiro momento em que
se apresentou, seguiu junto com as mudanças da arte um impulso pela
liberalização dos costumes. Haviam, é claro, as primeiras imagens de
representação do sexo (1), mas é quando surge a imagem em
movimento, ou propriamente o filme, depois do cinematógrafo, que estas imagens
passam progressivamente a ter como referência o que havia de engraçado no
choque propiciado pelos pioneiros da representação em massa do sexo.
As curtas representações iniciais
como “Les Époux Vont au Lit”, de
Eugène Pirou, não deixavam adivinhar o que viria, pois, assim como as produções
pouco posteriores como o conterrâneo “O Bom Albergue” (2), de 1908, todos receavam a exposição direta e integral do corpo
nú até ser imaginado um espaço próprio e seguro que foi o bordel, cenário
dominante nos filmes posteriores assistidos sem vergonha e às escondidas, pois
mesmo que seja constrangedor encontrar alguém no cinema, isto seria natural de
acontecer no espaço do lazer de exceção da Vaudeville.
Tudo mudará nos anos sessenta com
o documentário sueco “Jag är Nyfiken”
(Sou curioso) cujo título no Brasil é revelador do quanto chocava seus
espectadores curiosos: “Eles nos chamam desajustados”(- porquê desajustados ?).
É interessante notar que para ter início a exposição da cena completa do sexo e
não mais sua representação indireta, adota-se o naturalismo (e, de certa forma,
o vouyerismo) na forma de um documentário sobre o comportamento. Como se
restasse ao corpo, reservado de sua exposição enquanto elemento social ser
retratado como natureza, como algo capturado de modo desprevenido. Muito da forma
da pornografia posterior terá algo do distanciamento com que a jovem Lena Nyman
beija o pênis flácido de seu namorado neste filme (3).
A VIRADA DOS ANOS 70
Apesar da produção pornográfica
nos anos setenta ter interiorizado a forma das demais produções cinematográficas
ditas sérias como a duração, o distanciamento na filmagem, a representação e o
enredo, ela se tornou um tipo de paródia que visou chocar os valores
enxergando-se como um tipo de transgressão, participando das demais
transformações dos hábitos.
Sua difusão comercial se inicia
neste período nos EUA quando se adotam medidas que garantem maior liberdade à
produção e as classificações que estratificavam as faixas etárias dos filmes,
abrindo o caminho para sua recepção no cinema, caminho diferente e posterior ao
da revista pornográfica, até então somente liberada nos países escandinavos
tidos como liberais e líderes no mercado pornográfico da época (4).
Constatam-se nestes primeiros
sucessos pornô dois limitadores à suas formas, que talvez fossem ligados à
recepção. De um lado, o cinema impedia algo curto e direto a quem se deslocava
para vê-lo na sala de projeção, por outro lado, a câmera impedia o
enquadramento tão próximo ao atual. No entanto, podem-se observar alguns
detalhes.
Por exemplo, de dois casos
paradigmáticos como Deep Throat
Garganta Profunda e The Devil in Miss
Daisy O Diabo na Senhorita Daisy, fiquemos com o primeiro. Deep Throath é
um autêntico livre empreendedor numa nova área de sucesso (5), nada mais americano. De
custo baixíssimo, filmado em 1972, é simplesmente o filme pornográfico de maior
sucesso de todos os tempos. A batalha dos seus produtores e diretores contra
Nixon que tentou proibí-lo, foi tomada como uma luta entre a América liberal e
a conservadora, sendo até mesmo lembrada quando posteriormente deram o nome do
informante do caso Watergate de
Garganta Profunda.
Seu enredo é o de um filme de
humor que ri de si mesmo, colocando o pornô, mesmo constrangido, no vasto
catálogo do fun. Linda Lovelace, no
papel de Linda (6) é uma mulher que experimentou de tudo sem conseguir ter
um orgasmo até que descobre graças a um orgasmólogo, o Dr. Young (Harry Reems) (7),
que somente “ouviria os sinos” (referência ao orgasmo) realizando felações
profundas, pois teria nascido com uma deformação muito particular, o clitóris
no fundo da garganta.
É interessante a cena que
prenuncia o futuro da representação do sexo no cinema quando conversa com sua
amiga Helen (Dolly Sharp) e esta lhe recomenda a consulta com o Dr. Young
enquanto um jovem que mal se vê, sem nome e que não aparece nos créditos
realiza nela uma cuidadosa cunilíngua mostrando com que facilidade se pode
gozar.
Comparar esta produção com o que
adveio posteriormente ainda gera desconforto em quem participou desta
mobilização de inspiração reichiana em nome da verdade do sexo e contra a
repressão dos costumes eróticos, como representado no desencontro entre este
tempo e a atualidade no filme “Le
pornographe” de Bertrand Bonello. Além disso, o sucesso desta produção faz
destacar sua efemeridade, pois nunca mais se repetiu com outro filme
pornográfico. De qualquer modo, é possível pensar hoje num expectador de filmes
eróticos que preste atenção no seu enredo até o ponto em que pudesse notar seus
gracejos humorísticos?
Para isto será necessário o
nascimento de dois gêneros distintos, o filme erótico e, no Brasil, a
pornô-chanchada, ambos envoltos em enredos suporte cuja revelação do corpo e a
insinuação da cena erótica já bastavam para a criação do enlace erótico na
fantasia do espectador. Por sua vez, a pornografia se torna cada vez mais
distante de tais enredos ao assumir uma proposta mais radical de penetrar
constantemente o enredo cada vez menos secreto dos corpos.
O FILME PORNÔ DOS 80 ATÉ HOJE
É visível que sua história tomou
outro rumo, uma história que mostra como o meio com que se faz o filme e se
assiste muda o modo de se fazer filmes determinando seu conteúdo. Afinal, duas
outras mudanças que repercutiram nos filmes são técnicas.
A primeira é menos óbvia a quem
assiste. A mudança da câmera que permitiu o recorte do corpo em close, pois a
diminuição da câmera permite a aproximação até a derradeira entrada no próprio
corpo com o qual passa a interagir.
A câmera, ao mesmo tempo em que
passa a pôr-se em cena sem gerar um efeito de distanciamento (como causou ao
surgir na novelle vague ou no
documentário), passa a afirmar mais um efeito de transgressão em cena, pois
aparece em conflito contra qualquer coisa que pudéssemos tomar como “clima” ou
enlace erótico, mesmo que ficcional dos atores na cena.
Ao mesmo tempo em que a câmera
aparece, desaparecem progressivamente os atores homens, restando apenas seus
genitais, o que só não acontece com a atriz e isto porque a face dela é
importante para outro ato de transgressão recorrente, a ejaculação em sua face,
como se no enredo do filme se efetuasse um ataque ou uma vingança da força
contra a beleza.
A segunda modificação formal e
técnica foi a possibilidade de se ver o filme em casa graças ao vídeo cassete,
o que tornava a recepção privada. Os anos oitenta criaram suas divas, as
principais sereias deste canto privado dos filmes, com destaque à atriz
húngara, depois naturalizada italiana e deputada de seios à mostra eleita pelo
“Partido Radical” (8) Cicciolina (nome fictício, artístico e
político de Ilona Staler).
Com a mudança da recepção pública
para a privada puderam ter início as exposições mais radicais do corpo e dos
desejos humanos mais secretos . A citada estrela Cicciolina inicia a divulgação
de cenas mais radicais intermediadas por imagens de “bestialidade” com cavalos,
cenas com fezes e outros eventos tolerados graças ao seu semblante doce,
tornando os meandros das taras privadas mais palatáveis.
Seria demais dizer que ela abriu
a caixa de pandora, pois, contra o filme pornográfico “com história”,
estabeleceu-se a definição do filme pela tara específica que já descreve o ato,
o que se viu em produções, na época, menores. Os filmes de Cicciolina tinham
nomes pomposos ou eufemísticos como “A ascensão da imperatriz romana” (9)
e “Banana com chocolate” (10), nunca algo literal como Anal com
Fezes I, ou similares que conquistariam sua reputação nos anos 90.
No entanto, notemos, ela teve
nome, um corpo inteiro e uma personalidade ainda que fictícia, não sendo apenas
um fragmento de seu corpo, pois, apesar de expor muito seus seios, eles
aparecem com o resto. A redução metonímica do corpo do desejo em fragmentos
assumiu a característica que vinculava o expectador ao seu produto audiovisual
de conteúdo sexual. Em determinado momento, passaram a emergir nas categorias
dos filmes o catálogo de excentricidades, patologias e taras assumidas como
naturais no espaço da cama, onde tudo era aceitável, apesar de velado por culpa
da moralidade (ao menos era o que se acreditava seguindo o repertório
Reichiano).
As seções veladas das vídeo
locadoras que se enchiam de sócios envergonhados deram lugar à internet quando
ocorreu uma explosão do desejo de participar do espetáculo, de se tornar objeto
de desejo, de chocar e ressignificar os hábitos sexuais em novas categorias
enquanto gostos separados. No entanto, pareceu ser necessário manter o normal e
a culpa, ainda que só para transgredi-la, ou que outro motivo haveria para a
manutenção dos filmes com história, enredo e, cada vez mais supérfluo, o esquema
inicial de sedução e enlace dos casais que se tornaria ele mesmo uma tara,
muitas vezes jogada para a categoria de “filmes pornográficos orientados para
mulheres”?
Progressivamente, a efusão de
filmes de pequena duração, amostragens gratuitas com recorte e focalização exclusiva em partes separadas do
corpo, foram justificados para a manutenção do anonimato que se somariam à
efusão de experimentos visando chocar pela exposição da imagem do sexo, mesmo
que o impacto da imagem do corpo erotizado fosse progressivamente anestesiado
pela sua naturalização em comerciais, filmes, novelas, histórias em quadrinhos,
etc.
Tudo isto levou, por um lado, à
radicalização do impacto como objetivo da exposição da imagem, como se a cena
amorosa houvesse efetivamente se descolado do sexo sublimado num tipo de
esporte que envolve relações de força para além da cena visando outro tipo de
relação que criasse efeitos no expectador. O sexo retratado visaria criar uma
máquina para um efeito nem sempre erótico, bastando, para isso, acompanhar um
dos maiores sucessos do You Tube.
O filme brasileiro “Two Girls and
one Cup” (11),
cuja ação envolve duas garotas entre fezes e regurgitação virou sensação quando
alguém teve a idéia de exibi-lo a outra pessoa e retratar suas reações.
Referências a este “jogo” apareceram em seriados de TV americanos e animações
seriadas para adultos. Este parece ser o resumo do jogo criado entre a
retratação, a reprodução e a exibição de filmes pornográficos atuais,
resultando num distanciamento inclusive do sexo. O foco agora é dado
diretamente ao impacto causado no espectador sendo a cena erótica um fundo de
onde de desloca a outra ação, a de se obrigar a ver este mesmo filme (12).
Quando percebemos que a indústria
do sexo e a própria representação espetacular do sexo podem funcionar mesmo sem
sexo, dizendo mais respeito a uma atitude sobre ele, podemos concluir com
certeza que sua exploração, exposição e a reprodução de suas formas vai muito
além da função iluminista que tentavam os manuais de Educação Sexual ou
Enciclopédias sobre o tema, mesmo que a pornografia muitas vezes se
justificasse como uma extensão radical das pesquisas do Dr. Kinsey (13),
que permitiram a muitas senhoras americanas tratar do tema com normalidade.
No entanto, qualquer um dos seus
espectadores e produtores passará a evocar esta defesa no interesse de
preservar uma pretensa inocência do produto para garantir um resquício de
experiência para o expectador, colocando a pornografia como uma diversão entre
muitas que deve preservar a relação do espectador com o filme próximo ao da
contemplação natural ou encantada, algo da ambigüidade do sagrado/maldito que
Mauss descrevia a respeito do sacrificado (14), mesmo que saibamos do mercado que
representa e do que implica.
Mas se a pornografia vai para
além do sexo, o que sobraria do conteúdo humano da pornografia, o corpo?
AS INFINITAS MANIPULAÇÕES DO CORPO
É facilmente percebida a
diferença entre a pornografia de períodos anteriores e a atual no que toca ao
corpo e isto porque há uma ligação entre a experiência do sexo fora da
pornografia e a que se dá nela. O corpo não é mais imediatamente erótico e teve
de se modificar para poder tornar aceitável sua representação, colocando-se
como algo de elaborado.
Por que o corpo nu na pornografia
expulsou os pêlos do corpo das atrizes e atores tornando a superfície de sua
pele similar ao plástico, com brilho e liso, manipulável e elástico a ponto de
ser forçado às peripécias mais radicais entre volumes os mais incomuns? Será
isto reflexo da própria sociedade que talhou igualmente o corpo da modelo de
biquínis e lingerie, ou terá aí a participação da indústria do sexo?
Basta notar a rápida mudança que
se experimenta ao longo das décadas chegando ao que vemos hoje. Alguém poderia
argumentar que esta seria a marca de um desenvolvimento da civilização e da
sociedade que ao apreender a superfície do corpo como espaço de simbolização,
revelaria a interiorização de uma categoria socialmente partilhada. Tal forma
de se mostrar, aparentemente gostaria de se libertar das marcas da natureza
como o nosso parentesco com os animais atestado pelos nossos pêlos.
Deste modo, a superfície lisa nos
colocaria na categoria de símiles levados para outro plano de elaboração do
corpo, o que atestaria marcas culturais em mudança. Nada mais
natural, ou melhor, cultural, como o mostram as tatuagens que se tornaram
corriqueiras e pouco chocam hoje as madames da high society. O que há demais em
se tornar liso?
No entanto, colocamos que não
tratamos propriamente do corpo em si, mas do corpo apreendido pela indústria do
sexo, e, além disso, dentro deste contexto teríamos dois desdobramentos
possíveis, um seria o de que a pornografia apreende características
determinadas por mudanças sociais sendo apenas recortado e divulgado em escala
industrial.
O outro desdobramento, o que
prenderia o corpo dentro de um nível de erotismo socialmente determinado em
categorias, o que pode tornar a presença de pêlos na atriz e no ator pornô uma
dentre as suas possibilidades eróticas que se estratificam sem se negar. Esta
posição implica que se pode estratificar infinitamente as categorias do erótico
havendo até mesmo uma categoria específica para o que antes foi comum no corpo
(e talvez ainda o seja), sendo deslocado para uma “tara”, como o “hair”, a
presença de pêlos que sai de sua existência natural para ser aproximada ao
exótico, ao estranho.
O DESEJO DESENCARNADO
Como elemento de problematização,
fiquemos com a segunda intuição, a de que haveria alguma relação entre esta
mudança da exposição do corpo com base na produção pornô.
O distanciamento dos atores na
cena apresenta os atores pornôs como se fossem independentes não apenas um do
outro, mas do próprio ato sexual em si. Veja-se o semblante, como se fossem poses de
modelos, mantendo outro tipo de apresentação do corpo deslocado da cena sexual
em ação, não importa a intensidade e os orifícios envolvidos. Seria uma
afirmação da potência do Eu que resistiria a toda aquela articulação maquínica
que envolve os atores, a cena, o diretor, as luzes, que olha para a câmera como
se não estivesse ali, mesmo que ela se denuncie como presente à cena? (15)
Neste caminho há dois planos de
deslocamento em relação ao sexo. O primeiro, o do distanciamento do corpo
suplantando a forma orgânica e mesmo animal que ele é. O segundo, o
distanciamento da interação, mostrando-se o ator ou a atriz como superiores à
situação em que se inserem, como numa luta, um contra o outro, ou contra a
cena, o expectador e todo o entorno, mas sem que esta captação apresentasse uma
marca que pudéssemos aparentar com o distanciamento da forma cinematográfica,
como o efeito de opacidade que Bazin buscava ao criticar na montagem o falso
efeito de naturismo, o que acreditamos não poder ser posto pela cena
pornográfica, pois as diferenças do pornô são alegóricas e irônicas como a
própria representação.
Com efeito, falsos flagras e
cenas feitas com câmeras amadoras estimulam o desejo voyer, o desejo de
surpresa como aparece em diversas produções para a internet, ligados à
acessibilidade da reprodução de imagens que as novas câmeras portáteis permitem
aos casais. Estes se apresentem gratuitamente enquanto bens simbólicos para que
a indústria do espetáculo lucre com o salto mortal de seu ato sexual em
mercadorias, assim como a própria simulação destas cenas “reais” capturadas
pela indústria.
O ato sexual se torna esporte de
corpos inorgânicos apresentados enquanto saltos libertadores das prisões e
limitações de desejos representados não somente pelo tabu sexual, mas também do
próprio corpo (16) – mesmo que tal desejo em busca de libertação seja
pré-definido dentro de uma categoria de ação previamente descritiva (anal,
oral, bukake, public, etc.).
A internet aparece como um espaço
de circulação de imagens que permite a indexação de quaisquer categorias, ainda
que progressivamente elas se afinem, posto serem dadas ao imaginário e
convidadas a se libertar na realidade (ou no virtual), tornando-se novas
imagens postas em circulação na internet. Uma máquina de catalogação e
ordenação da pluralidade dos atos eróticos.
Se saber de tudo isto não basta
para distanciar de vez a força da presença ou a sugestão das imagens da
pornografia na vida sexual fora da tela, cabe perguntar porquê ela subsiste. Ou
ainda, conforme as questões levantadas por J.G. Ballard no ensaio introdutório
ao romance Crash :
A moderna tecnologia nos proporciornará
meios até hoje não sonhados de dar vazão a nossas próprias psicopatias ? Esse
direcionamento da nossa perversidade inata vai, presumivelmente, nos beneficiar
? Existe algum desdobramento lógico desviante mais poderoso do que aquele
fornecido pela razão ? (17)
Estas coisas só se responderiam
com uma pesquisa que soubesse como os corpos entram na pornografia, como se
situam lá e, mais ainda, o que ela significa para a recepção. Ou melhor, por
que, mesmo ironicamente, a imagem dura e plástica da pornografia mantém sua
circulação para além da indústria com casais que mandam imagens de si mesmos e
que, sem lucrar nada com isso, se entregam a tal impulso de “libertação” criando
complicações sociais para si mesmos ao pôr em circulação suas imagens
oferecidas livremente para outras pessoas, mas que são reproduzidas numa
indústria que lucra justamente com este impulso?
Aparentemente, para o caso do
receptor a situação é um moto-perpétuo. A relação com a imagem pornográfica
parece ser o da busca de uma imagem que sacie por si mesma o impulso por
sexualidade representado por uma imagem cada vez mais violenta. Aparentemente
seguiria o sentido libertador da ruptura de um tabu, visto pelo receptor não
como valor, mas como determinação externa que limita suas experiências. Rompido
este tabu, vem a saciedade momentânea do impacto que causa nos próprios valores
partilhados, vistos como externos, permitindo ao consumidor seguir em busca de
imagens ainda mais radicais (18). No resultado geral, isto acaba em
ansiedade por mais imagens, tédio com o processo e angústia com a repetição.
Na produção, resulta em condições
cada vez mais difíceis a pessoas que são trabalhadores sujeitados à produção da
pornografia inserida numa competição feroz de um mundo espetacular, apesar de
cada vez mais longe do glamour de imagens que ninguém mais vê do mesmo modo,
pois a internet dispõe criações pornográficas o tempo todo. Imagens da carne
cujos limites são abstraídos para a manutenção do sexo como evento
mecânico/inorgânico que violenta (19).
E, por fim, caberia ainda
perguntar se a produção pornográfica teria em seu processo de expulsão e
submissão do corpo em prol de algo criado exclusivamente pela indústria do
pornô algum parentesco com a expulsão do conteúdo humano da circulação de
mercadorias em geral. Ou
seja, se o corpo estaria sendo não apenas suprimido neste momento em que ainda
subsiste (20),
mas subsumido na produção de mercadorias imagéticas, de corpos eróticos
inseridos na lógica do capital que daria uma resposta própria à definição tanto
do que sejam corpos, quanto do que seja erótico.
Resposta que, apesar de circular
cada vez mais nas cabeças dos casais, tornou-se impossível de ser reproduzida
nas camas onde, a princípio, teria início e que é, além disso, detentora de uma
lógica própria que teria origem e finalidade para fora do sexo. Concluindo,
paradoxalmente, que o pornô apontaria para algo fora do sexo que ainda não
sabemos o que é, ou se estaríamos tratando ainda de indícios de uma outra forma
de sexualidade que ainda começa a se manifestar, uma sexualidade pós-humana.
NOTAS
1 Pode-se observar a interessante coleção de representações,
brinquedos e utensílios eróticos de André Pieyre de Mandiargues que representa
quase toda a pré-história ocidental da representação erótica no filme de
Walerian Borowczy, Une coletion particuliére, Vide:
http://www.ubu.com/film/borowczyk_collection.html. O destaque é o pudor do dono
da coleção que não se revela no filme e a forma elaborada de mostrar seus “jou
jous particuliers”.
2 Os filmes de burlesco e mesmo pioneiros da representação intensa
do sexo mereceriam um lugar à parte, pois apareceriam junto com o circo humano
de horrores (o freaky show) no meio da algazarra da Vaudeville. Lugar próprio
de um entretenimento de exceção onde o sexo era posto entre coisas e lazeres
considerados excêntricas.
3 Muitos denotam em relação ao impacto do filme na época uma
mudança de tabu, pois, o que chocava neste filme, a felação, hoje é considerado
trivial, enquanto a sodomia, que hoje carrega relativo tabu, seria na época
mais tolerável. Como sinal, tomemos as leis salazaristas, como a portaria
municipal nº 69.035 de 1953 que dizia respeito ao policiamento das zonas consideradas
quentes, nesta são atribuídos valores de multas para “atos atentatórios à moral
e aos bons costumes”: “1º – mão na mão (2$50); 2º – Mão naquilo (15$00); 3º –
Aquilo na mão (30$00); 4º – Aquilo naquilo (50$00); 5º – Aquilo atrás daquilo
(100$00). Parágrafo único – Com a língua naquilo 150$00 de multa, preso e
fotografado” Podemos subentender que, por algum motivo, a cunilíngua e a
felação eram neste caso muito mais penalizadas que a sodomia. Mas seria preciso
outra tese para explicar a diferença entre “aquilo na mão” e a “mão naquilo” e
suas diferenças de valores.
4 Nos anos 50 haviam muitos colecionadores de revistas
contrabandeadas, chamadas suecas, não escapando nem mesmo Carlos Drummond de
Andrade e Cecília Meireles.
5 Vide a respeito o documentário Inside Deep Throath In:
http://www.youtube.com/watch?v=s2cNTQMAtCM
6 A
respeito dizia-se que Linda Lovelace antes deste papel foi engolidora de
espadas num circo itinerante, emprego bem particular que permitiria
qualificá-la de uma manifestação extemporânea da da Vaudeville.
7 Provável referência ao psicanalista heterodoxo Wilhelm Reich e ao
seu livro de sucesso na época a Função do Orgasmo. A idéia principal é a de que
a repressão aos costumes no capitalismo seria dada pelo modo de vida repressivo
e necessário para manter a alienação. Frente a isto, propunha outras formas de
sociabilidade sexual para criar uma normalidade das funções sexuais que
pressupunham a capacidade regular de ter orgasmos. Os orgasmos eram pensados
como um tipo de descarga da energia sexual (orgônio) que ficaria acumulada, e
que ao serem regularizadas, levariam a uma sociabilidade mais comunitária e
menos alienada social e politicamente. Foi expulso da sociedade psicanalítica
internacional por causa de ser um dos primeiro psicanalistas a se admitir
marxista e a associar neurose e capitalismo, além disso também foi expulso do
Partido Comunista ao propor um programa de transição sexual e política, o
SEXPOL que envolvia o cuidado com a sexualidade dos adolescentes nas escolas (e
formas para que lá pudessem se aliviar). Do mesmo modo, foi condenado à prisão
nos EUA ao afirmar ter descoberto uma forma de acumulação da energia sexual que
também seria constituinte do universo, como um tipo de energia cósmica.
8 O Partido Radical é um racha à esquerda do Partido Liberal que
por vezes chegou a se aliar ao Partido Comunista Italiano. Sua plataforma
liberal não foi de todo pífia, defendendo campanhas contra a AIDS nas escolas
(enormidade na Itália), campanhas contra a energia nuclear, a favor dos
direitos humanos e contra, pasmem, a pedofilia, ou seja, ela tinha limites.
9 Rise of the roman empress. Dir.,
roteiro, Riccardo Schicchi. Itália, Paradise Video prodution, color, 85 min.,
1987.
10 Banane al cioccolato. filme italiano de 1986 de Riccardo
Schicchi.
11 Na verdade, o filme é o trailer de Hungry Bitches, rodado em
2007
12 George Clooney após a brincadeira feita pela revista Esquire
definiu a “experiência” de ver o filme 2 Gilrs and 1 Cup como um tipo de
rodeio, onde a questão é ver o quanto tempo se agüenta vê-lo. Vide:
http://www.esquire.com/features/george-clooney-2-girls-1-cup-0408-3 (s.l.) Ùltimo
acesso: 2008-06-05.
13 Dr. Alfred Charles Kinsey se notabilizou pelas pesquisas sobre
comportamento sexual humano inspirando junto com Wilhelm Reich a dita
“revolução sexual”. Tiveram importância principalmente seus dois livros sobre a
sexualidade masculina (Sexual Behavior in the Human Male de 1948) e feminina
(Sexual Behavior in the Human Female de 1953) que mostraram até hoje para escândalo
da sociedade americana que 92% dos homens e 62% das mulheres se masturbava (e
os demais mentem em pesquisas), e que 37% dos homens e 13% das mulheres já
tinham tido uma relação homossexual com orgasmo (onde aumenta ainda mais a
proporção das pessoas que mentem em pesquisas sobre sexo).
Também foi ofendido e questionado
por muitos órgãos de desinformação pública e da imprensa conservadora o que
sempre levanta suspeitas das acusações. Há um filme recente sobre ele: Kinsey –
Vamos falar sobre sexo.
14 Marcel Mauss e Henri Hubert. Sobre o Sacrifício. Cosac Naify,
São Paulo, 2005
15 Neste sentido, penso aqui numa outra leitura de autores do porn
chic como Chloé de Lysses, diferente daquela que vê no procedimento de
distanciamento em suas fotografias algo de uma crítica do fetiche da cena, como
Vladimir Safatle comenta em seu artigo sobre o livro Profanações de Giorgio
Agamben. Acredito que a autora prenuncia o mesmo espírito do pornô em busca do
distanciamento da cena sexual para um plano de naturalização da cena pornô,
desencantando e trazendo à cena o que era fora de cena.
16 É interessante neste sentido o caminho em busca do excesso do
excesso na formulação de Eliane Robert Moraes presente no livro de Jorge Leite
Júnior a respeito da pornografia hardcore, principalmente no capítulo V(P.
221-273) que fala não dos tipos adversos identificados à sexualidade limiar ao
tabu, mas a respeito das figuras plásticas do corpo que se indica na
pornografia contemporânea. Jorge Leite Júnior. Das maravilhas e prodígios sexuais.
A pornografia “bizarra’ como entretenimento. São Paulo, FAPESP/Annablume, 2006.
17 J.G. Ballard. Crash.São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
Introdução, p.9.
18 Neste sentido seguiria o snuff, o filme voyerístico de execuções
realistas de pessoas. O snuff pornográfico, subgênero de vídeos de mortes de
pessoas durante o intercurso sexual, levou tal impulso de busca de uma imagem
sexual radical a seu limite aparente, principalmente se lembrarmos que, apesar
de não se conhecer registros de snuffs sexuais verídicos, todos os seus
consumidores acreditavam serem verdadeiros. Isto permitiria levar o consumidor
passivo da pornografia à atividade criminosa fantasmática de cúmplice de
homicídio com motivação sexual. Algo além do sádico e do vouyer.
19 Ou que reeduca, pois podemos pensar o sexo entre as técnicas do
corpo capazes de se recomporem pelo hábito e pela mímese do comportamento de
outros corpos permitindo mudar suas
capacidades e limites como a elasticidade, a sensibilidade e a
motricidade do mesmo modo como Marcel Mauss pensou a respeito. Este libidinoso
antropólogo, ao observar as técnicas do uso do corpo em diversos aspectos como
o do corpo ao dormir, machar e nadar, inicia sua investigação a partir da
“revelação” com o “andar” (ou rebolar) das enfermeiras americanas, relembrando
onde haveria visto alguém andando daquele modo, lembra “que fora no cinema”(sem dizer que tipo de
filmes). E posteriormente, ao retornar à França, haveria constatado que as
francesas também passavam a caminhar daquela maneira e, deste fato, pensava que
“os modos de andar americanos, graças ao cinema, começavam a se disseminar
entre nós (franceses)”. Marcel Mauss. Sociologia e Antropologia. p.403-4.
20 Ainda que se possa observar na produção do cinema de animação
pornográfica a confirmação da tendência da expulsão do corpo físico da imagem
de representação pura do sexo na pornografia.
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Jag är nyfiken – en
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