Quando os estudantes entram na cena política

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Quando os estudantes entram na cena política [1]

 

 Puedo
decir que nos han traicionado? No. Que todos fueron buenos? Tampoco. Pero alli
está una buena voluntad, sin duda y sobretodo, el ser así.

César Vallejo, Trilce, canto LVII

 

 Maio de 68 traz muitas questões. O que fez com
que os estudantes saíssem repentinamente das Universidades em todo o mundo e se
mobilizassem como sujeitos políticos no sentido de uma luta orientada por
bandeiras diferentes das pautas liberais e de esquerda de até então e, mais
ainda, numa luta anticapitalista?

 

Esta pergunta é difícil e há um
mar de livros sobre o tema surgidos de questões que apareceram dos dois lados
das barricadas.

 

 O
Estudante é uma força subversiva?

 

Se pensarmos nas atividades do
estudante que não diretamente o estudo, vemos como o seu papel político muda ao
longo da história. Na Universidade de Paris, em 1432, já se notava a tentativa,
até hoje infrutífera, de proibição de uma atividade extra-curricular bem
famosa, o trote. Pensar nesta atividade é interessante porque apesar de ser
desde sua origem contra ou paralela à instituição, ela se mantém dentro das
balizas da ordem institucional (e mesmo as pressupõe), afirmando-a com maior
intensidade.

 

Chamado Bejaunus, o calouro era comparado a um animal (Bejaunus quer dizer bico amarelo) e sua entrada ao reino dos homens
era intermediada pela purgatio
(purgação), uma série de humilhações equivalentes ao trote de hoje. A violência
mantinha a hierarquia de uma sociedade dividida em estamentos.

 

Mas nenhum trote estudantil foi
tão radical quanto o da Alemanha, onde mortes eram freqüentes e as odes aos
nacionalismos e ao militarismo inspiraram os jovens alemães. Com afinco, estes
jovens se dedicaram às tarefas viris do engajamento militar tanto contra as
nações inimigas, quanto contra os levantes populares e insurreições dentro da
nação, além de cederem os quadros que se alistaram no grande matadouro que foi
a 1ª Guerra Mundial. Pelotões inteiros formados por estudantes foram
massacrados durante à guerra, mas isto não os impediu de posteriormente
aderirem às Freikorps, futuras Seções
de Assalto (as S.A.).

 

 De outro lado, sabe-se que em geral as
tendências científicas e ideológicas da universidade são incorporadas pelo
estudantado, pois estes formam sua consciência a partir das referências que a
universidade lhes fornece, representações de mundo partilhadas, mas históricas.

 

Assim, para as esquerdas,
compostas majoritariamente por intelectuais e trabalhadores combatidos pelo
Estado, se esperava qualquer coisa dos estudantes enquanto grupo social, menos
uma mobilização anti-capitalista de matiz libertária.

 

 A Crise
das Sociedades Avançadas, Abastadas e Ordenadas

 

Para ensaiar uma resposta à
questão da militância estudantil em 68, pensemos nos dois contextos que os
intérpretes do episódio localizam diferentemente nos EUA,na Europa e no Brasil.

 

Ninguém no período achava que
aconteceria o que aconteceu. A Europa se desenvolvia no Estado de Bem Estar
Social, políticas de forte intervenção do Estado garantiram amplos direitos em
muito impulsionadas pelo medo da vitória do comunismo nestes mesmos países onde
os militantes socialistas lutaram bravamente contra o nazismo.

 

 No entanto, os trabalhadores estavam
aburguesados, as pessoas consumiam bem, o que poderia haver de errado?

 

 Havia guerra fria, a intervenção americana e a
soviética, mas nada disso parecia estimular os estudantes a reagir e estes
davam antes sinal de viver num mundo bem administrado. Nesta época, um
sociólogo famoso havia realizado um estudo sobre a reprodução das classes
sociais e suas marcas de distinção na universidade e nada parecia adiantar algo
que fugisse da determinação econômica e social. No entanto, repentinamente, as
universidades explodiram e os trabalhadores a seguiram.

 

Mas haviam pressões até então
ignoradas. Não estava em questão para os estudantes destes países identificados
a uma ampla esquerda sem partidos a escassez ou a necessidade material, mas a
qualidade da vida cotidiana e a necessidade da libertação da experiência na
tentativa de controlar o seu próprio destino, o que se notava pelos grafites,
hoje famosos.

 

O filósofo Herbert Marcuse cunhou
uma expressão para isso: "mais-repressão", isto é, algo como uma
relação entre a mais-valia, o trabalho que fica com quem contrata o
trabalhador, e a repressão que recebemos além daquela necessária para a
realização das atividades orientadas pela civilização, servindo para nosso
controle ao administrar a insatisfação por meio da alienação. Isto foi dito num
dos livros mais divulgados e menos lidos da história, Eros e Civilização, onde
juntava num mesmo raciocínio a crítica da economia-política e psique.

 

Este desajuste não era só do
capitalismo, mas de toda a civilização, e só poderia ser mudado com uma
transformação radical da sociedade que não se esgotasse na planificação da
produção, mas que fosse uma melhora da vida humana.

 

 Outros autores que serviram de baliza para o
período foram Guy Debord e Raoul Vaneigem. Estes deram forma radicalmente
anti-capitalista ao anseios libertadores do período, resultando na crítica ao
que chamam de sociedade do espetáculo, uma crítica da separação da consciência
da própria sociedade entre sua produção e circulação. O que parecia uma mera
crítica aos meios de comunicação de massa se mostrou uma teoria da revolução.

 

Pautas aparentemente pequenas
ganhavam repercussão para além do que aparecia como demanda imediata, o que
incendiou grandes mobilizações em torno da reapropriação da política, e foi a
partir daí que novas vozes apareceram com força, como o feminismo, o movimento negro
e até mesmo as questões ligadas à saúde. Do mesmo modo, a crítica da sociedade
no capitalismo avançado feita em 68 também mostrou suas vítimas no terceiro
mundo, governado por regimes autoritários, como aqueles que assolavam a América
Latina e o Sudeste asiático.

 

A esquerda estudantil brasileira e o projeto nacional

 

No Brasil o contexto era muito
diferente. Os intelectuais progressistas, conforme os postulados da teoria da
dependência acreditavam que só o socialismo desenvolveria o país, isto é, que
só a democracia realizaria economicamente aquilo que o capitalismo produziu nas
sociedades desenvolvidas.

 

Neste caminho, os estudantes,
distanciados de sua origem social, se organizavam em torno de projetos
progressistas sob a influência da Ação Popular ou do Partido Comunista
Brasileiro, realizando programas culturais significativos e acreditando poder
exercer influência política em torno de um projeto de desenvolvimento nacional,
democrático e popular que nunca se cumpriu, postergando a realização do socialismo.

 

Aqui, longe da idéia de
revolução, acreditava-se que era necessária uma transição democrática por
etapas com o apoio de uma burguesia progressista e anti-imperialista (que se
mostrou inexistente). Para tanto, os estudantes se engajavam em campanhas
cívicas como a do Petróleo e as reformas universitárias que tentaram garantir à
duras penas a representação paritária (conquistada em Córdoba, na Argentina, em
1911). No entanto, o AI-5 repentinamente interrompeu esta transição, que não
prosseguiu com a abertura.

 

Muitos estudantes se engajaram
contra a ditadura buscando o retorno da democracia num difícil contexto, o que sentiu
também a Universidade, pois muitos destes estudantes que viriam a sofrer
horrores inimagináveis eram os melhores alunos de suas áreas.

 

Ao mesmo tempo, prosseguiu-se uma
tentativa de modernização dos costumes e relações familiares, onde muitos
acharam um paralelo com o que acontecia na Europa, mas sem vivermos num
capitalismo desenvolvido.

 

Como resposta o regime militar
passou progressivamente a criar espetáculos a partir de manifestações
populares, como o Futebol, o carnaval e as novelas como forma de manter a
população distraída das questões políticas provando que o desenvolvimento
econômico era possível sob um regime autoritário, isto é, sem democratizar-se a
sociedade. Este foi mais um duro golpe para as forças progressistas que
acreditavam que a modernização do Estado implicava em democracia.

 

Com isso fez-se com que as
gerações que nos precedem vivessem um período de desenvolvimento e consumo sem
participação política, e é por isso que, após a abertura, os estudantes
herdaram tantas questões irresolutas e a alienação da maioria deles em relação
às questões políticas da Universidade.

 

A amarga herança de 68

 

Pensando nas questões suscitadas
pelo Maio de 68 europeu e americano, é difícil imaginar algo mais heterogêneo.
Se por um lado as mobilizações contestatórias não foram vitoriosas, suas pautas
foram assumidas pela esquerda e pela direita. A esquerda partidária assume as
pautas das minorias, mesmo que discorde do contexto de onde surgiram suas
manifestações, seja por terem sido espontâneas e, por isso, indisciplinadas e
não controladas, seja porque interpretem o período como uma possibilidade
revolucionária com "crise de direção" (isto é, onde não mandavam) e
que por isso não atingiu o sucesso de uma transformação conforme suas
deliberações congressuais.

 

Outros críticos assumem que o
capitalismo assumiu todas as reivindicações do período, com exceção, talvez, da
legalização das drogas. A publicidade naturalizou a sexualidade e se utiliza do
distanciamento irônico e conciso, parecendo que não estamos mais numa sociedade
que reprime, mas uma que obriga a gozar.

 

Não devemos comemorar ou ficar
melancólicos por 68, mas lembrar que as questões políticas envolvem sempre a
reflexão crítica renovada. Daquele período em que pediam para que a imaginação
subisse ao poder, de tão distante de nosso contexto, podemos somente
imaginá-lo. Mas uma lição poderia ainda ter certa relevância no Brasil, a de
que os estudantes não devem lutar para libertar as forças produtivas, o que
apenas reforça a própria técnica e a gestão ao substituírem a política pelo
controle, mas devem lutar pela emancipação política do Homem, reaprendendo, nos
dias de hoje, o que é transformar a vida em algo digno.

 

"Exigir que a produção
científica do ensino superior seja democratizada, não é pesquisar os meios de
obter uma eficácia maior ou uma organização melhor da produtividade. O impulso
das forças produtivas, que esta exigência de democratização acredita provocar,
é uma contradição com a noção, cada vez menos aceita, de aumento da
produtividade, esta moral da produção destinada a estabelecer o sistema. Por
conseqüência, este impulso sustentado das forças produtivas não reside na
crença das capacidades de produção rápida de sentido, mas na emancipação da
força produtiva viva Homem em vista de lhe permitir determinar e se apropriar
do processo de produção global de sua existência."[2]

 

………………………………

[1] Versão do texto disponível em: http://www.caoc.org.br/bisturi/bisturi_mai08.pdf

[2] Extrato de uma resolução
sobre o ensino superior, adotada pela 22ª Conferência dos delegados do SDS
[Sozialistischer Deutscher Studentenbund], citado em "La revolte des
étudiants allemands", p. 205.

 

Douglas Anfra

 

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