Carta a Franz Kafka – Sobre a questão do estatuto e das sindicâncias*

Carta a Franz Kafka – Sobre a questão do estatuto e das sindicâncias*
 

Carta a Franz Kafka constando dos seguintes tópicos:
 

1.Pedido encaminhado da alteração de um texto resguardando seu espírito literal.
2.Sobre a tentativa infrutífera de homenageá-lo
3.Sobre a questão do que teria acontecido com Joseph K. em seu processo de sindicância.

4. Texto Sobre a questão das leis trazido para seu verdadeiro contexto
 

Caro Senhor Franz Kakfa 

Venho por meio desta, agradecer o favor de ilustrar alguns casos desta nossa instituição, a universidade e seu modo de organização, no entanto, sinto com pesar a perda de força da metáfora que gentilmente acrescentou aos fatos para universalizá-los, mas, para nosso contexto, peço a permissão para torná-los mais claros para os dias que seguem, pois alguma coisa parece mudar na ordem dos estamentos, encargos e processos. Soube que seria difícil trazer estas questões à tona, pois desde que seu amigo Brod retirou estes escritos do Baú, justamente aqueles que o senhor havia pedido para que se queimassem, como um segredo de amanuense, descobriu-se que tinha razão e a rapina se fez sobre seu corpo. Diriam que é crime recitar qualquer de seus escritos em público sem pagar uma taxa, ou mesmo transcrevê-los, enfim, descobrimos que o senhor todo, como todo aquele que escreve e publica é propriedade de alguém, estendendo-se este processo "Ad Aeternam Gloriam lex mercatoria". Estranho paradoxo que inspira: estando o senhor vivo, não era parte da norma institucional e queria mesmo destruí-la, estando morto teus restos a animam a cumprir-se, enquanto nós vivos dela também estamos fora como um peso morto. Disseram algo sobre um garoto curioso que desejou levar uma das partes de seu corpo que havia sobrado. Era um dedo. Os estudiosos de assuntos de apropriação como advogados despóticos teriam-no ignorado a princípio, mas, ao perceber o interesse do rapaz, prontamente se atiraram ao pedaço de seu dedo indicador direito. Alegam tentar vendê-lo para melhor preservá-lo transformando-o em patrimônio. O que não foi possível devido às manchas de tinta azul que o coloriam de modo irregular dando um tom abstrato que não combinaria com o conjunto da obra, conforme prescreveu um crítico. Houve quem dissesse que a tinta era de um corante venenoso. Certa vez, um outro homem que havia sido um crítico, disse que a caneta que portava era uma arma, a única que restava, acharam que apelou tentando resguardar certo valor ou inocentar-se do ato de que era julgado sem acusação formal, ou então, mais ainda, tentar extrair alguma dignidade na humilhante situação de não possuir nenhuma arma . O menino não. Ele sabia. De algum modo que ainda não entendemos, ele ouviu suas palavras quando disse que "as cadeias da humanidade torturada são feitas de papel timbrado". E mais, que estes papéis são formulários apoiados sobre o papel político da escrita e do veto, representada então por seu carimbo, o mesmo que lhe manchou as mãos. Hoje temos senhas e ficamos distantes uns dos outros coordenados por um grande computador central, não haveria mais resquícios físicos ou testemunhas dos processos. Em agradecimento, tentei inutilmente defender alguma data para lembrá-lo, mesmo que de modo discreto, tentando fazer este gesto confundir-se com outra data qualquer mais civil. Pensei no dia do funcionário público, o que trouxe certo aborrecimento. Um grupo de pessoas imaginou lembrar o dia do funcionário público pela morte de um dos grandes funcionários públicos deste país, podendo também, comemorar, a data. Então deste desejo festivo surgiu a dúvida que arrastou diversos partidos: se o presidente seria ou não um destes funcionários. Venceu que não, baseado no argumento de que haveria uma reiterada independência sua em relação ao Estado e aos trâmites. Pensaram então em comemorar a data com o aniversário de outros burocratas, casta local de numerosos escritores e poetas. Como haviam muitos, elegeu-se o preferido, que foi Carlos Drummond de Andrade (31 de outubro), que talvez conheça, mas foi cancelado pois sua memória era por demais associada a imagem de um homem sentado em Copacabana que teria virado bronze, ou um personagem tranqüilo e de olhar profundo flauteando por aí. Tal data foi vetada, diagnosticando o caso pragmaticamente como um mau exemplo, inspirando abertamente a falta não justificada. Porém não quiseram se desentender com os drumonianos passando esta data para uma comemoração mais apropriada, o dia do funcionário público aposentado. Já o que parecia ser um sucesso em relação ao outro processo aberto sobre a instituição de um feriado, esfumou-se (era véspera de feriado e não fizeram o devido protocolo) e o presidente da República instituiu o dia 28 de outubro oficialmente como o dia do funcionário público. Isto aconteceu porque naquele ano a data caía numa segunda-feira, prolongando o fim de semana. Dizem as más línguas que o presidente buscava o apoio da categoria, já o dia 17 de julho ficou registrado como o dia do funcionário público aposentado pois caía num domingo sem chamar a atenção e a ira da população para este setor tão odiado. Sobre o caso do senhor Joseph K., tive sucesso em obter maiores detalhes vindos de um amigo funcionário da instituição que cuidava do caso e posso adiantar alguns detalhes. A história pareceria confusa a não iniciados da Grande Ordem da Harmonia Administrativa que sobre nós desaba, mas seu trâmites não lhe são arcanos e sabe-se de absoluta normalidade em nosso contexto. Inclusive me assusta seu interesse que outros tomariam por suspeito. Parece que um dia abriram um processo sindicante contra a instituição que participava, não importa qual, mas o fato é que chegou o dia em que se suspeitou do descumprimento de uma norma por parte de seu conhecido e este foi colocado num ponto onde não conseguiu discernir o que fazer, pois foi posto na posição de que sem descumprir a lei, agiu e ao agir pensou fazê-lo preservando a instituição de que participava. No entanto, não percebeu que a própria instituição queria acabar com a lei mudando a si mesma a partir da instância cabível e competente, o que obviamente não era da alçada de Joseph K. Este, sem perceber, descumpriu uma lei que não era de sua alçada e que nem estava escrita o que teve efeito inverso obrigando a instituição a mudar duas vezes e continuar a ser a mesma de outrora. Sua atitude foi tomada como um protesto, o que não é contra a norma – dado nosso tempo democrático – mas uma série de conseqüências advém da quebra de hierarquia, mesmo invisível, sendo então aberto um processo de sindicância que não teria formalmente como concluir por nada contra a sua pessoa que não havia cometido crime algum, no entanto, esta questão é menor e diz respeito à instituição cabível para esta definir uma sentença a partir da ciência da imputabilidade em meio à diversas normas, estatutos, regimentos, etc, que foram criadas um sobre o outro que negando-se mutuamente e negando em alguns aspectos a lei federal, atribui e justifica instâncias decisoras capazes de julgamento. Nosso partido sabendo da causa marcou reunião, mas não pode incluir sua causa na pauta por causa de questões mais urgentes que demandariam o advogado que possuem. Isto tudo correria sem maiores problemas não fosse outro agravante, Joseph K. não era o verdadeiro sindicado, mas Josip K. que não foi encontrado na data que poderia validar o processo trazendo mais um agravante. Como o processo, ao passar de determinada data, prescreveria gerando grave aborrecimento e despesas inúteis, tomaram Joseph K. pelo acusado para garantir que deste modo a instituição não errasse e fizeram com que as acusações contra Josip fossem arquivadas e não o contrário. Isto foi garantido pelo fato de que a instância competente tinha de achar um acusado e condená-lo, mas como fazê-lo formalmente faria com que houvesse registros do erro, era preferível resolver o caso acima da instituição, no verdadeiro fundamento da força da lei que é a palavra de determinadas figuras reconhecidas do judiciário e dos altos funcionários desconhecidos em conversas informais que decidem acima das ambigüidades normativas que alguns garantem ser o fator que garante nossa harmonia. Todos ficaram satisfeitos com o resultado do processo exceto, é claro, aquele seu conhecido (perdoe, é amigo seu ?). Ainda assim, haviam alguns que afirmassem que quando recebeu a aplicação da sentença, a sombra de um sorriso apareceu em seu rosto aliviado pelo fim dos trabalhos processuais. Infelizmente um único problema se soma a este processo, pois, como um funionário inadvertidamente escreveu seu nome com um "p" a mais, este se perdeu em meio aos arquivos, não podendo ser mais encontrado, conforme afirma o setor de protocolo. Devo terminar antes que acabe o papel que está submetido a cotas dado o fato de nosso superior ter viajado em atividades oficiais, impedindo que se substituísse o papel comprado errado pelo prgão que seguiu estritamente as novas normas estaduais que atribuem por decreto um tipo único de papel que não se adapta às impressoras (antes disso não escrevi, pois, ao cortar os custos, proibiram comprar a tinta, porém, daquela vez por controle interno). Há quem atribua este fato ao interesse de mostrar a ineficiência do setor público frente ao privado onde as normas não existem, e, logo não são transgredidas, mas o papeis parecem ser os mesmos. O único que pode permitir através de favores as exceções que continuariam a operacionalidade do setor ou seu impedimento de modo correto e estritamente legal seria o diretor, a instância local acima da norma, mas este viajou recentemente para um lugar desconhecido distante das requisições.  Peço Humildemente desculpas pela longa Carta, mas difícilmente teria outra chance de falar convosco. Sem mais para o momento, segue esta carta com meus votos de estima e consideração  

Douglas A.  

Conforme dito, segue o texto com as correções: 

Sobre a questão do Estatuto** 

Em geral as nossas normas e o estatuto não são conhecidos, senão que constituem um segredo do pequeno grupo de burocratas que nos administra. Embora estejamos convencidos de que este antigo estatuto é cumprido com exatidão é extremamente mortificante ver-se regido por normas que não se conhecem. Não penso aqui nas diversas possibilidades de interpretação nem nas desvantagens que se derivam de que apenas algumas pessoas, e não toda a comunidade universitária, possam participar da interpretação. Talvez estas desvantagens não sejam tão grandes. O Estatuto é tão antigo que os séculos contribuíram para sua interpretação e esta interpretação já se tornou norma também, mas as liberdades possíveis a respeito da interpretação, mesmo que ainda subsistam, acham-se muito restringidas. Além do mais a Reitoria e o Conselho Universitário não tem evidentemente nenhum motivo para deixar-se influir na interpretação por seu interesse pessoal em nosso prejuízo, já que as normas disciplinares do Estatuto foram estabelecidas desde as suas origens por ela mesma; a qual se acha fora do Estatuto, que, precisamente por isso, parece ter-se posto exclusivamente em suas mãos. Isto, naturalmente, encerra uma sabedoria ? de quem duvida da sabedoria das antigas normas -, mas ao mesmo tempo nos é mortificante, o que provavelmente é inevitável. Além do mais, estas aparências de normas apenas podem ser na realidade suspeitadas. Segundo a tradição existem e foram confiadas como segredo à Reitora, mas isto não é mais do que uma velha tradição, digna de crédito pela sua antiguidade, pois o caráter destas normas exigem também manter em segredo sua existência. Mas se nós, estudantes, professores de todas as categorias e funcionários, seguimos atentamente a conduta da Reitoria desde os mais remotos tempos, e possuímos anotações das gerações anteriores referentes a isso, e as temos prosseguido conscienciosamente até acreditar discernir nos fatos inumeráveis certas linhas diretrizes que permitem concluir sobre esta ou aquela determinação histórica, e se depois destas deduções finais cuidadosamente peneiradas e ordenadas procuramos adaptar-nos de certo modo ao presente e ao futuro, tudo aparece então como incerto e talvez como simples jogo de inteligência, pois talvez essas normas que aqui procuramos decifrar não existam. Há um pequeno partido que sustenta realmente esta opinião e que procura provar que quando um Estatuto existe apenas pode rezar que: o que a Reitoria faz é o Estatuto. Esse partido vê apenas atos arbitrários na atuação da Reitora e rechaça a tradição popular, a qual, seguindo o seu parecer, apenas comporta benefícios casuais e insignificantes, provocando em troca graves danos, ao dar às três categorias uma segurança falsa, enganosa e superficial com respeito aos acontecimentos do futuro. Não pode negar-se este dano, mas a maioria esmagadora de nosso povo vê sua razão de ser no fato de que a tradição não é nem mesmo ainda suficiente, que portanto há ainda muito que investigar nela e que, sem dúvida, seu material, por enorme que pareça, é ainda demasiado pequeno, pelo que terão que transcorrer séculos antes de que se revele como suficiente. O obscuro nesta visão aos olhos do presente apenas está iluminado pela fé de que virá o tempo em que a tradição e sua investigação conseqüente ressurgirão de certo modo para pôr ponto final, que tudo será aclarado, que as normas e Estatutos apenas pertencerão à comunidade universitária representada pelas três categorias e o Conselho Universitário terá desaparecido. Isto não é dito por ninguém e de modo algum com ódio contra a Reitoria. Melhor, devemos odiar-nos a nós mesmos, por não sermos dignos ainda de ter uma Instituição Democrática. E por isso, esse partido, na realidade tão atraente sob certo ponto de vista e que não acredita, em verdade, em Estatuto ou norma alguma, não aumentou as suas fileiras, e isso porque ele também reconhece a Reitoria e o direito de sua existência.Em realidade, isto apenas pode ser expresso com uma espécie de contradição: um partido que, junto à crença nas normas, repudiasse a Reitoria como instituição e não os reitores ocupantes do posto, teria imediatamente toda a Comunidade Universitária a seu lado, mas um partido semelhante não pode surgir porque ninguém se atreve a repudiar a Reitoria e o Conselho Universitário. Sobre o fio deste cutelo vivemos. Um escritor resumiu isto certa vez da seguinte maneira: a única norma, visível e isenta de dúvida, que nos foi imposta, é a Reitoria e o Conselho Universitário, e desta norma haveríamos de nos privar a nós mesmos?

* publicado originalmente em http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2008/03/414272.shtml

** A partir do Texto em  http://www.e-text.org/text/Kafka,%20Franz%20-%20contos.pdf

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